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Escracho de professor racista em Bolonha:

Na terça, o coletivo estudantil de Bolonha HoboOccupato e outros ativistas escracharam o professor Angelo Panebianco, pixando a porta de sua sala e os muros da faculdade de ciência política. Dirigida “contra os barões da universidade”, o estopim do protesto foi um artigo desse professor, publicado no jornal Corriere della sera. Sob o título “Hipocrisias demais sobre os imigrantes, o professor argumenta, entre outras pérolas, que “o único critério sobre o que se pode fundar uma política racional de imigração, por mais árido ou ‘mesquinho’ pareça a quem não tenha apreço pela ética da responsabilidade, é portanto aquele da conveniência, da nossa conveniência.” Noutras palavras, Panebianco se comporta como aqueles compradores de escravos que, nos portos coloniais, inspecionavam os dentes dos recém-chegados para decidir quais estariam em condições de trabalhar para os brancos colonizadores.

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Porque Angelo Panebianco é racista

Por Anna Curcio, em Commonware, 15/01/14 | Trad. UniNômade Brasil

Digamos a verdade:, estamos nesta altura a tal ponto mal-acostumados com comentários racistas circulando cotidianamente pelos meios de comunicação, com os argumentos mais disparatados, que quase não ligamos mais. Mas, apesar disso, existem determinados momentos quando o discurso racista se desnuda até o ponto de tornar-se insustentável. Nessas horas, quando a raiva e a indignação estão por cima, não dá pra evitar tomar a palavra. É certo que a precarização e a exploração da vida comprimem frequentemente as nossas às margens do possível, onde acabamos sobrepujados pela cotidiana lei da sobrevivência e suas necessidades. Mas, como se sabe, o que é demais nunca é o bastante.

Dito isto, quando leio a declaração de Angelo Panebianco, ao comentar a legítima e sacrossanta contestação feita por estudantes bolonheses, e depois o editorial de segunda do jornal Corriere della sera, me vejo obrigada a por de lado os meus surtos e acessar o computador. Não o faço, não somente, em solidariedade aos trabalhadores e trabalhadoras imigrantes que foram eficaz e cinicamente compilados pela filosofia como “hipocrisias demais sobre os imigrantes”, nem simplesmente por um puro sobressalto ético. Tomar a palavra contra o racismo imperante, para mim, quer dizer sobretudo combater a exploração e a precarização de todos os dias. Porque as lutas, bem mais que os professores universitários, me ensinaram que combater o racismo quer dizer lutar para mudar o estado de coisas. Mas avancemos com ordem.

Nas declarações emitidas no jornal da manhã de terça-feira, 14 de janeiro, enquanto se afastava da faculdade de Ciência política de Bolonha, onde estava em curso a contestação, Angelo Panebianco alegou, a título de defesa, que o editorial do Corriere della sera não “tratava evidentemente dos refugiados”, mas dos “fluxos de força trabalho”. Assim, se até o momento era possível não ver, e assim podermos distrair-nos com outras premências, com essa declaração a ordem do discurso assumia a sua forma mais precisa. Eis ali, ressaltada, a matriz profundamente racista, não deixando que ainda outra vez pudéssemos contornar o racismo e calar sobre esse tema. A matriz de fundo do discurso de Angelo está rapidamente dada: para os refugiados, não vale a pena desperdiçar análises em páginas de um jornal prestigiado, basta um bocadinho de compaixão chorosa e lágrimas de crocodilo derramadas nos dias seguintes de massacres invariavelmente anunciados; por sua vez, essa da “força trabalho” é, na verdade, uma matéria bem mais substantiva e, diferentemente de miseráveis silenciosos e tutelados pelas leis internacionais que não podem sequer ser postos pra trabalhar, chama à causa maior e mais nobre da organização do trabalho e da produção… O racismo, não me cansarei de repeti-lo, não é um vício ideológico dos vários Panebiancos espalhados pelo país, nem uma patologia social que acometa a classe dominante, o racismo é um potente dispositivo de organização do trabalho, imediatamente contextualizado na produção capitalista.

Isso que Panebianco faz no editorial contestado e, depois, na réplica também publicada pelos jornais é produzir distinções, invocar explicitamente “intervenções seletivas” em matéria de imigração, apenas para, a seguir, dedicar-se a estabelecer uma hierarquia entre imigrantes “bons” e “maus”. Os primeiros são os que se integram, dispostos a anular a própria identidade social e cultural em nome do primado da branqueza e de um sistema de relações verticais. E sobretudo os que aceitam sem pestanejar formas ferozes de exploração sobre o trabalho. É por isso agora que, sem hesitação, digo que Panebianco é racista. E é racista porque recorre ao princípio da raça — que não é nenhum atributo biológico, mas constructo social de marginalização e discriminação, que evoca o pertencimento nacional, a religião e, mais em geral, comportamentos que se presumem naturais, não só a cor da pele — para construir segmentos separados e, entre eles, disputando internamente no bojo da força trabalho: uma verdadeira e própria taxonomia racial por meio do que quanto mais embaixo se esteja, quanto mais seja considerado “mau”, tanto mais poderá ser explorado e subremunerado no mercado de trabalho. Um princípio verdadeiramente simples de entender. Tão simples quanto politicamente problemático, uma vez exposto em alto e bom tom. E é por isto que a estratégia das elites políticas, neste país e não só, é sempre essa: embaralhar as cartas, oscilar entre “acolhimento” e “conveniência”, entre refugiados e “clandestinos”, entre imigrantes “bons” e “maus”.

Ora, é sabido que o problema não é Angelo Panebiando enquanto tal, ou melhor, o problema não é somente Angelo Panebianco, o problema real que as declarações do professor bolonhês ocultam tem a ver com um sistema global de poder. Este não tem cor política, mas sustenta e legitima, de modo bipartido, o racismo: como dispositivo de exploração que acompanha e sustenta o capitalismo desde os seus albores. Por isto, ademais, a tentativa de Panebianco de desmarcar-se das críticas dos estudantes, observando que estava sendo acusado simultaneamente de neoliberalismo e fascismo, não funciona, porque o racismo, como constante do capitalismo, não distingue entre fascismo e neoliberalismo. Pinochet e os Chicago boys eram ao mesmo tempo fascistas, neoliberais e racistas. E os estudantes evidentemente sabem disso melhor do que ele, pelo menos que, ao professá-lo, não se deixe isso passar em branco.

Relegar o racismo a outros momentos históricos ou outras latitudes é com certeza mais conveniente do que discuti-lo em sua atualidade. A atualidade nos indica um sistema de exploração difusa e estrutural, que o racismo alimenta e o torna possível, em seus diversos graus. Um dispositivo intrínseco à produção capitalista que examina todas e todos, racializados e não. O racismo é, dito de outra forma, a síntese mais infame e violenta de uma exploração que todas e todos conhecemos e vivemos. É por isso, então, que combater o racismo não é mera solidariedade, mas uma luta comum que nos espreita de perto, talvez mais do que às vezes pensávamos.

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NOTA DO TRADUTOR

O escracho é um método de ação direta praticado em países que viveram ditaduras, como Brasil e Argentina, geralmente contra torturadores e apoiadores dos regimes, mas vem ampliando o escopo. Na Espanha, por exemplo, já foi usado contra altos gerentes financeiros, responsabilizados pessoalmente pela crise. Por aqui, o professor Paulo Ghiraldelli foi alvo de um protesto desse tipo (http://www.youtube.com/watch?v=xwp7IoRMjt8), por estudantes da UFRRJ inconformados com a postura elitista do docente.

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