UniNômade

1977: o ano do fim do futuro

Por Franco Berardi (Bifo) | Trad. UniNômade

postpunk

desenho: Stefano Tamburini

Quando se fala de 1977, vem à mente uma série de associações de ideias, imagens, lembranças, conceitos e palavras que, às vezes, são incoerentes entre si.

Aquele foi o ano em que irrompeu um movimento de estudantes e jovens operários, que se exprimiu de maneira muito intensa nas cidades de Bolonha e Roma, na Itália. Em alguns ambientes, o ano de 1977 evoca um tempo ultrajante de violência, os anos de chumbo, o medo nas ruas e nas escolas. Noutros ambientes, 1977 significa, ao contrário, um tempo de criatividade, a expressão feliz de necessidades sociais e culturais, auto-organização de massas e comunicação inovadora. Como podem conviver essas duas visões, por vezes na mente das mesmas pessoas?

1977 foi um ponto de toque, ou melhor, de recorte, o ponto em que se encontraram (ou talvez se separaram, o que dá no mesmo) duas épocas diferentes. Por isso, foi o momento em que emergiram duas visões incompatíveis, duas percepções dissonantes da realidade. Nesse ano, a história de um século atingiu a sua maturidade, o século do capitalismo industrial e das lutas operárias, o século da responsabilidade política e das grandes organizações de massa. Ali começa a se descortinar a época pós-industrial, a revolução microeletrônica, o início da lógica de rede, a proliferação de agentes de comunicação horizontal e, portanto, a dissolução da política organizada, a crise dos estados-nação e dos partidos de massa.

Não devemos esquecer que 1977, além de ter sido o ano dos movimentos de contestação criativa nas universidades e bairros italianos, também foi muitas outras coisas, nem todas elas alinhadas na mesma direção e tampouco debaixo dos mesmos signos. Aquele foi o ano do nascimento do pós-punk, o ano do jubileu da Rainha da Inglaterra contestado pelo Sex Pistols, que puseram a capital britânica de pernas para o ar por dias e dias, com música e barricadas e o grito que marcaria as próximas duas décadas: “no future”. Mas foi também o ano em que, nas garagens do Vale do Silício, garotos como Steve Wozniak e Steve Jobs, hippies libertários e psicodélicos, conseguiram criar a interface user friendly [2], que em poucos anos proveria um acesso cada vez mais abrangente e popular à informática e, mais tarde, à internet.

1977 foi também o ano em que Simon Nora e Alain Minc escreveram uma carta informativa ao Presidente da França, Valery Giscard d´Estaing, intitulada “L´informatisation de la société” [3], na qual são esboçadas as transformações sociais, políticas e urbanísticas previstas para a época seguinte, como consequência da introdução no trabalho e na comunicação das tecnologias digitais e da telemática (isto é, da informática a distância, a conexão em rede dos computadores, a internet).

1977 também foi o ano em que foram processados os rebeldes da Gangue dos Quatro: Chiang Ching, Wang Hung-Wen, Yao Wen-Yuan e Chiang Chung-Chao. Os quatro ultramaoístas de Xangai foram levados presos a Pequim e ali condenados a penas longuíssimas de reclusão, porque representavam, aos olhos do grupo dirigente denguista [4], a utopia de uma sociedade igualitária, na qual as regras econômicas seriam anuladas em favor de uma primazia absoluta da ideologia. A utopia comunista começa a sua longa crise precisamente ali onde havia sido levada às suas consequências mais extremas e sangrentas, ali onde a Revolução Cultural Proletária tinha desencadeado as tendências mais radicais e intransigentes.

Mas é também o ano quando, em Praga e Varsóvia, se desencadeiam as primeiras ações de dissidência operária em meio ao socialismo real. Os dissidentes tchecoeslovacos, naquele ano, assinaram a conhecida Carta 77. Foi o ano também em que Yuri Andropov (então diretor da KGB) escreveu uma carta ao cadáver ambulante de Leonid Breznev (secretário-geral do PCUS e autoridade máxima da União Soviética), em que diz que se a URSS não for capaz de recuperar-se com rapidez de seu atraso no campo das tecnologias da informação, o socialismo vai afundar de vez.

Portanto, aquele ano de 1977 não pode ser compreendido apenas se olhando para o álbum italiano, que vamos encontrar recheado das fotos de jovens de cabelo comprido com a cara coberta por máscaras ou camisas tapando o rosto. E não se pode entendê-lo se nos restringirmos a ouvir somente os slogans truculentos do período, em parte ideológicos, em parte estranhamente surrealistas.

Em 1977, é virada a página do século 20, assim como, em 1870-71, nas ruas ensanguentadas de Paris, a Comuna virou a página do século anterior e mostrou com que luzes e sombras o próximo se anunciava no horizonte. Devemos tentar levar em conta toda essa complexidade quando falamos do acontecimento italiano de 77, aquele movimento autônomo e criativo, porque somente a partir dessa complexidade poderemos entender o que aconteceu para além das crônicas das ruas, das manifestações, dos enfrentamentos, dos coquetéis molotov, para além do debate sobre a violência, para além da repressão brutal com que o estado e a esquerda arremeteram contra o movimento até criminalizá-lo por inteiro e empurrá-lo em parte para os braços do terrorismo brigadista.

A passagem ao pós-industrial

Para isso, em primeiro lugar, devemos nos fixar na mudança estrutural produtiva que afetou as sociedades ocidentais a partir dos anos 70 e que vai se fazendo cada vez mais profunda, rápida e estremecedora nas duas décadas seguintes. Trata-se de uma transformação determinada pela difusão das tecnologias microeletrônicas (e depois, pela digitalização), mas também pela crescente desafeição dos operários industriais pelo trabalho de fábrica. “Desafeição” é uma palavra-chave para compreender a situação social e a cultura ao redor do que se formou o movimento de 77. Desafeição ao trabalho é a fórmula com que era definida (por parte do establishment jornalístico, patronal e sindical) a tendência presente entre os operários, sobretudo os mais jovens, que se realizava num conjunto de pequenas táticas de recusa: alegar falsamente doença, pedir uma licença ou sistematicamente trabalhar pouco e mal.

Os empresários comentavam que a “desafeição” era a principal causa da queda dos índices de produtividade. E de fato, assim eram as coisas.

“É hora, é hora, trabalha só uma hora” [5].

“Trabalho zero, salário inteiro/toda a produção à automação” [6].

Esses eram alguns dos slogans que os jovens operários autônomos mais “extremistas” lançavam em meados dos anos 70 nas fábricas italianas, como na automobilística da Fiat de Mirafiori, na Petroquímica de Porto Marghera ou na Siemens de Milão. Tratava-se de slogans rudimentares, elementares, mas detrás deles se ocultava uma mudança cultural e, também, uma reflexão política que nada tinha de simplória. O significado daqueles slogans, daquela desafeição, era de fato, o do fim da ética do trabalho e o correspondente fim da necessidade social do trabalho industrial. Eram os anos em que a tecnologia começava a tornar possível uma substituição gradual do trabalho operário. E eram os anos em que a recusa do trabalho abria o caminho para a cultura juvenil e a teorização por grupos como Poder Operário e Luta Contínua, que encontraram certo eco nas fábricas do norte da Itália, especialmente no biênio de 1969-70.

O movimento de estudantes e jovens proletários que se alastrou em 1977, das universidades aos círculos do proletariado juvenil e aos bairros, retomava os slogans e a hipótese da recusa do trabalho e os convertia num elemento de separação profunda, traumática, em relação à tradição política e cultural da esquerda.

A ética do trabalho, sobre o que havia sido fundada a experiência do movimento operário tradicional, começava a desmoronar. Em primeiro lugar, na consciência dos jovens operários desejosos de liberdade, ócio e cultura. A seguir, nas próprias possibilidades tecnológicas propiciadas pela mudança do sistema produtivo. A redução do tempo de trabalho necessário, graças à introdução de tecnologias automáticas, e o processo de recusa do trabalho são convergentes e, em certo modo, interdependentes. A partir dos anos 1960, os operários fabris tinham começado a mostrar uma crescente insubordinação sindical, política e comportamental. O rechaço do trabalho alienado se difundia ao passo que a classe operária de fábrica começava a conhecer formas de vida mais ricas, na esteira da escolarização, da maior mobilidade, da difusão popular de uma cultura crítica. Depois de 1968, a insubordinação operária se encontrou com o movimento dos estudantes e do trabalho intelectual e os dois fenômenos se amalgamaram, em alguns casos, de maneira quase deliberada.

A recusa do trabalho industrial, a reivindicação de espaços cada vez mais amplos de liberdade e, portanto, de absenteísmo, insubordinação, sabotagem, luta política organizada contra os patrões e contra os ritmos de trabalho, tudo isso marcou a história social dos primeiros anos da década de 1960, até vir a explodir na forma de autênticas insurreições pacíficas dos operários contra o trabalho industrial, como ocorreu na primavera de 1973, quando os operários do automóvel se rebelaram em toda a Europa, a partir da fábrica da Renault, da Opel de Russelsheim e de Colônia, até o complexo automobilístico da Fiat Mirafiori em Turim, que durante alguns meses foi ocupada por juveníssimos operários que, com seus cordões vermelhos ao redor do pescoço, uivavam como índios pela fábrica. Os índios metropolitanos, essas hordas de contestadores culturais que se disseminou pelo ano de 77 na universidade, surgiram nas fábricas da Fiat, em meio à recusa da miséria assalariada e do embrutecimento provocado pelo trabalho industrial. Porém, ao mesmo tempo, ia se desenvolvendo a procura por procedimentos produtivos cada mais mais automatizados, com o uso integrado da microeletrônica e sistemas flexíveis. Os operários queriam trabalhar menos, enquanto os engenheiros investigavam tecnologias orientadas à redução do tempo de trabalho necessário, à automação da produção. Entre o final dos anos 70 e começo dos 80, ambas as tendências afinal se encontraram. Mas, lamentavelmente, se encontraram já sob o signo da reação capitalista e da revanche antioperária, e não sob o signo do poder operário e da auto-organização. O movimento operário não havia conseguido traduzir os protestos em auto-organização do processo produtivo.

E então chegaram os anos da contraofensiva. Em vez de reduzir o tempo de trabalho socialmente necessário e liberar o tempo de vida do trabalhador, o capital conseguiu, nos anos de reestruturação e de afirmação do neoliberalismo, destruir a organização operária, por meio da demissão daqueles que participavam das vanguardas. Iniciava-se assim a operação de redução quantitativa e política da força operária. Iniciava-se assim a contrarrevolução liberal. Porém, no próprio interior dessa passagem, se situa o movimento de 77, que se apresentou conscientemente, declaradamente, como um movimento contra o trabalho industrial.

“É hora, é hora, trabalha só uma hora”, gritavam os autônomos criativos para responder ao slogan sindical: “É hora, é hora, poder a quem lavora [trabalha]” [7]

O movimento de 77 posicionou o não trabalho, a recusa do trabalho, justamente no centro da dinâmica social e da inovação tecnológica. Apesar disso, não conseguiu traduzi-lo numa ação política consciente e organizada. A inovação tecnológica trouxe consigo uma gigantesca reestruturação ao longo dos anos 80 e 90. Mas essa reestruturação teve um caráter antioperário, antissocial e pôs em marcha o processo de devastação da sociedade, acelerado nos anos 90 e que segue acelerando até hoje. Por que o movimento não foi capaz de traduzir a sua vocação social e as suas intuições culturais numa ação política em longo prazo, para impulsionar a auto-organização da sociedade e do processo produtivo? Essa é uma questão sobre o que precisamos nos deter.

As razões pelas quais o movimento não foi capaz de traduzir a sua intuição antilaboral num programa político factível foram duas. A primeira razão dessa incapacidade, é preciso buscá-la no caráter intimamente contraditório do movimento, o que deriva do fato dele enxergar a si próprio ao mesmo tempo como o último movimento comunista do século 20 e como o primeiro movimento pós-industrial e, portanto, pós-comunista. A segunda razão reside na repressão a que foi submetido: uma repressão violenta e prolongada, cujas características devem ser analisadas com maior profundidade.

Mas vejamos as coisas uma depois da outra.

Os estudantes e os jovens operários que se mobilizaram nos primeiros meses de 1977 já traziam na bagagem o acúmulo de vários anos organizando-se em mil formas novas (centros do proletariado juvenil, rádios livres, comitês autônomos de fábrica ou de bairro, coletivos autônomos nas escolas etc). Eles exprimiam comportamentos e necessidades que já tinham pouco ou nada que ver com as necessidades e os comportamentos do proletariado industrial tradicional. A reivindicação mais forte tinha um cunho existencial. A qualidade de vida, a reivindicação de uma existência de realização plena, a vontade de liberar o tempo e o corpo das amarras de ter de trabalhar na indústria. Esses eram os temas fortes, as linhas ao longo do que se exprimiam e se acumulavam a insubordinação e a autonomia. Apesar disso, a representação ideológica predominante no interior do movimento era a que chegava, linearmente, dos movimentos revolucionários do século 20, da história do comunismo da Terceira Internacional. Ainda que o leninismo estivesse bastante sob questionamento naqueles anos, a ideia predominante ainda era de um movimento revolucionário destinado a derrubar a ordem burguesa e construir, de alguma maneira (bastante imprecisa, decerto), uma sociedade comunista. Mas esse tipo de representação já não quadrava com a realidade de movimentos que estavam concentrados na conquista de espaços e de tempos, e que se manifestavam cada vez menos no plano político e cada vez mais no existencial.

O modelo dialético (derrubar, abolir, instaurar um novo sistema) não correspondia em absoluto à realidade de lutas, que funcionavam, ao contrário, de um modo mais dinâmico, como conflito aberto e redefinição do próprio terreno do enfrentamento. Por  sua própria composição, essas lutas não podiam nem pretendiam almejar uma espécie de ataque final contra o coração do estado, como numa revolução destinada a derrubar de modo dialético a ordem. Consequentemente, a defasagem entre representação ideológica e a realidade sociocultural desse setor a que aqui chamamos de proletariado juvenil foi a causa principal de sua incapacidade em traduzir a ação contestadora num processo de auto-organização social em longo prazo, para consolidar a criação de laboratórios de experimentação política, cultural, tecnológica. Pois nos perguntávamos: com que objetivos estamos nos mobilizando? Para uma revolução comunista clássica, com a derrubada do estado e a tomada final do poder político? Somente alguns acreditavam que algo assim pudesse fazer algum sentido, mas de fato esse horizonte político não chegou a ser abandonado explicitamente. O horizonte político em todo caso não foi redefinido.

O movimento de 1977 baseado em Bolonha foi, nesse sentido, o ponto da máxima consciência do citado problema. Porque o movimento bolonhês abandonou,  de maneira escancarada e para entrar na polêmica, qualquer leninismo residual e o modelo historicista de revolução. Mas o movimento, entretanto, não conseguiu ser consequente até o fim, até o ponto de romper (como talvez devia ter feito) as suas relações com os componentes do movimento que, pelo contrário, insistiam, ainda que de maneira contraditória, num projeto de tipo leninista e revolucionário.

Houve uma outra razão decisiva para o baque que o movimento sofreu. Foi a repressão que o regime político do Compromesso Historico [8] desencadeou contra os estudantes, os operários autônomos, os jovens em geral, e depois contra os intelectuais, os professores, os escritores, contra as rádios livres, as livrarias, contra todo centro de vida intelectual inovadora que existia no país.

O refluxo intelectual desolador que afetou a Itália no começo dos 80 devastou os campos da arte, da ciência, da universidade, da pesquisa, do cinema, silenciou o pensamento político. Esse refluxo se deveu, precisamente, ao extermínio cultural que o estado democristão-estalinista pôs em marcha, primeiro em 1977, na sequência em 1979 [9].

O movimento de 77 continha, desde o começo, uma ambiguidade profunda. Não era a ambiguidade banal entre violentos maus e criativos bons. Era a sobreposição de duas concepções do processo de modernização e de autonomização social.

Por um lado, existia o movimento criativo que colocava no centro da ação política as mídias, a informação, o imaginário, a cultura, a comunicação, porque pensava que o poder se organizava principalmente por esses lugares e não na esfera da grande política de estado ou da grande política revolucionária.

Por outro lado, estava a autonomia organizada, convencida que o estado tinha o papel decisivo e que se lhe devia opor uma subjetividade estruturada na forma política clássica, para tomar-lhe o poder.

O movimento deveria ter amadurecido mais, fortalecido as suas estruturas produtivas e comunicativas, deveria ter-se transformado num processo generalizado de auto-organização da inteligência coletiva. Esse havia sido, pelo menos, o projeto proposto ao movimento em junho de 1977 num número da revista A/traverso com o título “A revolução terminou e vencemos” [10]. A proposta consistia em construir um movimento de engenheiros “descalços”, em ligar tecnologia, ciência e zonas temporárias liberadas. Era uma visão minoritária dentro do movimento de 1977, mas um número crescente de pessoas, de jovens pesquisadores, de estudantes e artistas, começava a entrever a possibilidade de um processo de auto-organização do saber e da criatividade.

A Rádio Alice e as demais rádios do movimento representaram uma primeira tentativa de articular tecnologia, comunicação e inovação social.

Mas tudo isso ainda aparecia ligado, certamente, a uma retórica do tipo novecentista, a uma retórica guerrilheira.

Estava em jogo o destino social da inteligência tecnológico-científica e da inteligência criativa e comunicativa. A consciência dessa passagem começava a formar-se naqueles anos. Neles, aparecem os livros em que se manifesta a consciência de uma transição social, tecnológica e antropológica. Em 1973, o livro de Daniel Bell, O advento da sociedade pós-industrial, enquanto Jean-François Lyotard publica A condição pós-moderna, em 1978. Em 1976, Jean Baudrillard escreve A troca simbólica e a morte [11].

O movimento bolonhês, com efeito, teve uma forte ligação com os momentos altos da pesquisa filosófica e alimentou, ele próprio, alguns desdobramentos da reflexão na França, Alemanha e Estados Unidos. Essa ligação teve facetas diretamente políticas (tais como a organização do congresso internacional contra a repressão em Bolonha, em setembro de 1977), mas também, em prazo mais longo, facetas de caráter diretamente filosófico, interpretativo, conceitual.

Os untorelli [NT: nome com que se chamavam, em epidemias de peste negra na Europa, as pessoas que tinham as portas untadas para marcá-las como infectadas]

Assim, 1977 pode ser descrito como o ponto de separação entre a época industrial e das grandes formações políticas, ideológicas e estatais, por um lado, e a seguinte, a época proliferante de tecnologias digitais, de difusão molecular dos dispositivos transversais de poder, por outro lado.

Nesse marco, é preciso entender a relação conflitiva entre o movimento e a esquerda cujos rituais e ideologias ainda eram uma herança da história passada da época industrial. Essa separação pode parecer apenas mais uma entre tantas e intermináveis disputas doutrinárias e políticas dentro do movimento operário que superlotam todo o século 20 [12]. Mas não é o caso aqui. Pois não se tratava de ainda outra discussão dogmática, em que se disputava a hegemonia sobre o movimento comunista. Porque este estava ossificado em premissas que a geração de 1977 liquida por completo, no momento mesmo em que se constitui como um movimento. Em primeiro lugar, é abandonada a premissa segundo o que o trabalho operário seria a base de toda identidade política da esquerda. O movimento de 1977 se concebe explicitamente como um movimento pós-operário, e recusa a ética do trabalho que havia fundado a história cultural do movimento comunista ao longo do Novecentos.

Muda, portanto, a referência subjetiva, e muda paralelamente a análise da sociedade capitalista, de suas modalidades de funcionamento. Deleuze propõe interpretar a grande transição que se desenha como passagem das sociedades disciplinares às sociedades de controle. As sociedades disciplinares são as modernas, que Michel Foucault descreve. São sociedades em que se disciplinam os corpos e as mentes, se constroem grandes caixas: a fábrica, a prisão, o hospital, o manicômio, a cidade monocêntrica. Nessas sociedades, a repressão tem um caráter institucional e centralizado, pois consiste na imposição de regras e estruturas estáveis. A sociedade que vai ganhando forma nas últimas décadas do século 20 tem um caráter completamente diferente das que, com Foucault, podemos chamar sociedades disciplinares. A nova sociedade passa a funcionar à base de controles inscritos no próprio genoma das relações sociais: automatismos informáticos, tecnológicos, automatismos linguísticos e financeiros.

Aparentemente, essa sociedade garante o máximo de liberdade a suas componentes. Nela cada um pode fazer o que bem entende. Já não há imposição de normas rígidas. Já não pretende disciplinar os comportamentos individuais nem os itinerários coletivos. O controle agora está infiltrado no dispositivo do cérebro humano, nos dispositivos que tornam as relações possíveis, a linguagem, a comunicação, a troca. O controle está em todas as partes, não mais politicamente centralizado. O movimento de 77 percebe esse campo problemático e não é por acaso que, precisamente nesses anos, se começa a desenhar com clareza a passagem do pensamento estruturalista ao pós-estruturalista, se assim podemos chamar o pensamento rizomático e proliferante que tem a sua mais significativa expressão no Anti-Édipo de Deleuze e Guattari [13]. Imaginações esquizoides substituem as representações disciplinares de tipo paranoico. O movimento de 77 não pretende se obcecar com a centralidade política do estado, do partido, da ideologia. Prefere dispersar a sua atenção, a sua ação transformadora, a sua comunicação por territórios que são muito mais crispados e erosivos: as formas de convivência, as drogas, a sexualidade, a recusa do trabalho, a experimentação de formas de trabalho com motivação ética, a criatividade.

Por todas essas razões, o movimento escapa definitivamente da referência conceitual e política do movimento operário à inspiração da Terceira Internacional, seja a sua variante reformista na figura do Partido Comunista Italiano (PCI), seja em sua variante revolucionário-leninista de organização de luta. O movimento de 1977 já não tinha nada que ver com essas velhas histórias. E, apesar disso, aquelas velhas histórias lhe passaram fatura, o cercaram com as suas velharias, relíquias e obsessões.

O PCI da época do Compromesso Historico tratou de isolar o movimento por meio de uma estratégia de marginalização cultural prolongada. A tradição estalinomaoísta perseguiu-o com o terror, a militarização, a chantagem e, finalmente, com a epidemia de arrependimento. A partir desse ponto de vista, é preciso dizer, sem se alongar muito, que 1977 (em especial o bolonhês), foi o primeiro episódio de 1989 [14].

Foi em Bolonha em que se iniciou o processo definitivo de desmantelamento da burocracia estalinista que, depois do Memorial de Yalta de Togliatti em 1964 [15], havia se reciclado como burocracia reformista mas sem abandonar a sua vocação de esmagar a dissidência, de expulsá-la, de caluniá-la, mistificá-la, reprimi-la. Em Bolonha, em março de 1977, muitos pensavam que o principal inimigo era o PCI. Os comunistas o constatavam com incredulidade, como se fosse um escândalo denunciar o seu poder.

A dureza desse enfrentamento deve ser entendida na perspectiva de uma mudança cultural profunda. Pois o movimento de 1977 colocava em questão os dois pilares sobre o que tinha sido fundada a cultura do partido comunista.

Em primeiro lugar, a ética do trabalho, o orgulho do produtor que reivindica profissionalismo, ofício, autogestão. O movimento opunha a isso a recusa do trabalho, o absenteísmo, a desafeição e a perspectiva de uma decadência gradual do valor histórico e produtivo do trabalho operário.

Em segundo lugar, o movimento punha em xeque a identificação entre classe operária e estado, bem como a adesão profunda à instituição estatal, considerada pelo PCI como elemento fundamental da identidade democrática. O movimento preferia afirmar a obsolescência tendencial do estado, o seu esvaziamento e a sua redução progressiva a pura e simples máquina repressiva. O fetichismo da forma-estado característico do grupo dirigente do PCI estava, além disso, vinculado à teorização leninista em sua versão terceirointernacionalista. Ainda que Marx jamais tenha postado o estado num pedestal. Foi o partido de Lênin, uma vez tendo alcançado o poder, quem identificou o estado operário ao ideal histórico e político do poder operário. Retrospectivamente, podemos afirmar que a identificação entre estado e poder operário era uma das mais profundas mentiras da teoria e prática estalinistas, e uma das pegadas mais indeléveis da tradição terceirointernacionalista e comunista.

Essa problemática apareceu em Bolonha, ainda que em forma atenuada e reformada. A santificação do estado como forma indiscutível a que deveria ser reconduzida toda mediação social estava longíssimo do espírito libertário do movimento. Nesse sentido, o movimento (em especial o bolonhês) teve uma dupla responsabilidade cultural. Por um lado, contribuiu para mitigar a religião estatalista da esquerda. Por outro lado, abriu o caminho, de algum modo, ao liberalismo que nos anos 80 se estendeu pela cultura e a economia, especialmente depois das vitórias de Thatcher no Reino Unido e Reagan nos Estados Unidos.

Quando os estudantes se puseram a contestar os mandarins acadêmicos, descobriram que em boa parte se tratava de mandarins dependentes do contracheque do PCI. Os jovens operários de Emília se depararam com os patrões que, em muitas casos, eram filiados ao PCI. Quando os operários da Fiat atacaram as políticas patronais e reivindicaram a sua autonomia, se depararam com a defesa da Agnelli [16] por Giorgio Amendola, o velho dirigente estalinista napolitano reconvertido a um reformismo autoritário. Por todas essas razões, o movimento viu no PCI um inimigo e não um interlocutor.

Nos anos anteriores, se tinha insistido muito, na Itália e no estrangeiro, sobre a natureza específica da experiência comunista italiana. Dizia-se que o PCI era um partido mais democrático que os partidos irmãos da Europa Oriental ou da França. Com certeza, mas somente até certo ponto. Era certo que assim era no começo dos anos 60, antes da invasão soviética da Tchecoeslováquia (1968). No final dos anos 60, porém, no PCI, se abriu uma dialética cultural que ressaltava a novidade do movimento estudantil. Mas nesse momento o debate já não conseguiu mobilizar a cúpula, nem a direção central, nem as ideologias fortes que guiavam o partido-colosso. Nos 70, então, o PCI se encerrou na torre de marfim da “autonomia do político”. Depois do golpe de estado no Chile (1973), o então secretário-geral do PCI, Enrico Berlinguer, pensou que não havia mais outro caminho senão, o do compromisso político com a Democracia Cristã. Quando viu crescer o movimento autônomo e, sobretudo, quando viu que o movimento atacava o baluarte bolonhês do PCI, reagiu chamando depreciativamente os contestadores de untorelli [17], e prometeu que jamais conseguiriam conquistar o bastião do partido na cidade.

Mas a previsão de Berlinguer foi desmentida largamente pelos fatos. O movimento de 77 pôs em marcha uma dinâmica de corrosão que pode hoje ser lida ao lume do que viria a acontecer doze anos mais tarde, em 1989, em toda a Europa. Desde 77, o número de filiados ao PCI começa a cair de modo inexorável. Mas a esquerda não via outra coisa que não a política, e não conseguiu ou não quis enxergar o que começava a mover-se nas profundezas do ventre da sociedade. Não soube ver as dinâmicas culturais profundas que procediam da cultura americana. Tampouco pôde prever as dinâmicas tecnológicas e as transformações produtivas que delas se derivariam. Em lugar de seguir a evolução da sociedade, a esquerda se erigiu como guardiã da continuidade do mesmo sistema político. Nisso reside a analogia entre o 77 bolonhês e o que depois foi o 89. O 77 foi o anúncio de 89 precisamente porque reivindicou a autonomia do devir social molecular (tecnológico, produtivo, cultural, comunicativo) ante a rigidez molar do político, do estado e do partido.

Information to the people

“Informação ao povo” foi um dos slogans que nasceu do movimento da contracultura na Califórnia dos anos 60. No caldo efervescente da costa ocidental dos EUA, cresceram Steve Wozniak e  Steve Jobs, fundadores da Apple Computer, inventores da filosofia e prática que estão na base da disseminação da informática, a interface user friendly, o espírito de rede e o código aberto/open source. O ano de patenteamento da marca Apple é, que coincidência!, 1977. Nesse ano, se produz na Itália a explosão de uma forma inovadora de comunicação, a das rádios livres e da transmissão ao vivo dos acontecimentos na rádio. O nascimento das rádios livres é consequência de um acontecimento jurídico, de dezembro de 1974. Nesse mês, o Tribunal Constitucional italiano estabeleceu a inconstitucionalidade do monopólio estatal do éter, e indiretamente firmou o direito de transmissão para qualquer cidadão ou associação. O próprio Tribunal, nessa sentença, reclamava a necessidade de uma regulação para o uso do éter.

Nesse vazio legal, alguns começaram a entrever a possibilidade de construir estruturas de informação completamente livres, desligadas de qualquer instituição estatal ou política, bem como de qualquer interesse comercial, econômico ou especulativo. E era mesmo possível. O custo de instalação de uma emissora radiofônica nessa época era irrisório. Inclusive para os estudantes ou os jovens operários, era possível conseguir as poucas centenas de mil liras necessárias para comprar uma transmissor, um equipamento de alta fidelidade e um mixador. Foi assim que nasceu a Rádio Alice, a primeira rádio livre capaz de colocar em marcha um processo de auto-organização criativa, e por à disposição do movimento um instrumento simples e eficaz de informação. A Rádio Alice nasceu em 9 de fevereiro de 1976. Desde os primeiros dias de emissão, suscitou uma onda de indignação entre a opinião pública bem-comportada. O Resto del Carlino, o jornal diário bolonhês ultraconformista, denunciou que “Rádio Alice transmite menagens obscenas”, enquanto o PCI insinuava que havia algo por trás da rádio, “interesses escusos”. Mas não havia nenhum financiador. A rádio se financiava com aportes voluntários dos redatores, que no começo eram uma dezena mas que, em poucas semanas, alcançaram um número incalculável. Na Alice, não havia programação fixa para cada dia, salvo um boletim político emitido em horas mais ou menos regulares e algumas emissões um tanto peculiares, como lições de yoga pela manhã e longas sessões de música ao vivo e poesia que se prolongavam até altas horas da noite.

A Rádio Alice, como A/traverso, a revista maodadaísta que começou a ser publicada em maio de 1975, foi o signo explícito e declarado de uma vontade de sair dos esquemas linguísticos do movimento operário tradicional,  para experimentar linguagens provocativas e diretas que se inspiravam no surrealismo e no dadaísmo, e que propunham técnicas de agitação próprias da cultura hippie: o chiste, a ironia, a difusão de notícias falsas, a mistura de tons líricos e histéricos na comunicação política, a mistura de um horizonte histórico com acontecimentos menores da vida cotidiana. Sexualidade e drogas se converteram pela primeira vez em assunto de discussão pública e ativismo. Não devemos esquecer que esses foram também os anos em que aparecem e grande proporção na cena cultural, primeiro nos Estados Unidos, depois na Europa, o movimento feminista e o movimento gay. São os anos em que o consumo de drogas, até então um fenômeno absolutamente marginal, se converte num elemento característico das vivências estudantis e juvenis.

Ao mesmo tempo, o pensamento filosófico, em especial na França, repensa em termos de microfísica o horizonte do poder e da liberação. A subjetividade já não é identificada ao modo monolítico próprio da ideologia, da política, do pertencimento social, senão mediante toda uma microfísica das necessidades, do imaginário, do desejo. A noção de microfísica social foi introduzida na discussão por Michel Foucault e, posteriormente, desenvolvida por Deleuze e Guattari no Anti-Édipo. A noção de sujeito é substituída pela de subjetivação, para indicar que o sujeito não é algo dado, socialmente determinado e ideologicamente consistente. Em seu lugar, devemos ver processos de atração e imaginação que modelam os corpos sociais, fazendo com que atuem como sujeitos dinâmicos, mutantes, proliferantes. A História da loucura, de Foucault, o Anti-Édipo, de Deleuze e Guattari, e Fragmentos de um discurso amoroso, de Roland Barthes [18], foram livros ao redor do que se desenvolveu naqueles anos um enorme interesse. Esses livros acabaram por converter-se em pontos de referência para o discurso político, apesar deles não portarem um programa político em si próprios. Esses livros, em vez disso, propunham um estilo, um estilo nômade, não identitário, flexível porém não unificável, criativo porém não competitivo. O movimento bolonhês, em particular, nutriu a sua linguagem e os seus comportamentos com as palavras que saíam daqueles livros e por isso desenvolveu antecipadamente uma ideia de movimento enquanto agente simbólico, como coletivo de produção midiática, como sujeito coletivo de enunciação, para usar uma expressão de Guattari.

Durante todo o século do movimento operário, o problema da produção cultural havia sido colocado em termos puramente instrumentais, em termos de contrainformação, de restabelecimento da verdade proletária contra a mentira burguesa. A cultura era considerada (segundo as teses do materialismo histórico) como uma superestrutura, um efeito determinado pelas relações de produção. O pensamento pós-estruturalista francês finalmente pôs em crise essa visão mecânica.

Tomando como referência a ruptura impingida pelo pós-estruturalismo francês, a revista A/traverso avançou uma dura batalha contra o materialismo histórico e o seu mecanicismo. A Rádio Alice sempre rechaçou ser identificada como um instrumento de contrainformação. Para começar, a Rádio Alice não era um instrumento. Era um agente comunicativo. Não estava a serviço do proletariado ou do movimento, pois era, ela própria, uma subjetividade do movimento. E, sobretudo, não pretendia restabelecer uma verdade negada, oculta ou reprimida. Não existe uma verdade objetiva a que corresponda a uma dinâmica profunda da história. A história é precisamente o lugar em que se manifestam verdades contraditórias, produções simbólicas, todas elas igualmente falsas e igualmente verdadeiras.

A lição desencantada da semiologia de Umberto Eco e do pós-estruturalismo de Foucault e de Deleuze-Guattari se infiltrou com fecundidade nas teorias e práticas das rádios do movimento e, pouco a pouco, rachou o edifício da ortodoxia. A cultura deixou de ser considerada uma superestrutura, para ser entendida como uma produção simbólica que participa da formação do imaginário, quer dizer, o oceano de imagens, sentimentos, expectativas, desejos e motivações, sobre o que se funda o processo social, com as suas mudanças e viradas.

A batalha da mediascape

O movimento bolonhês intuitivamente antecipou a função decisiva dos media numa sociedade pós-industrial. Essa presciência foi mérito, entre outros, do DAMS bolonhês [19], a escola surgida precisamente naqueles anos, onde ensinavam pessoas lúcidas como Giuliano Scabia, Umberto Eco ou Paolo Fabbri. Em certo sentido, podemos dizer que o movimento de 77 foi também um laboratório de formação para milhares de operadores da comunicação que, nas décadas seguintes, participaram da grande batalha da comunicação travada de 1977 até hoje. Essa batalha acabou por sobredeterminar a luta política, de modo a produzir uma figura como Berlusconi, rei da televisão que virou rei da república que, de fato, é uma república monárquica.

A batalha terminou em desastre. Depois da sentença do Tribunal Constitucional italiano que tornou possível a liberdade de emissão, enquanto nós fazíamos as primeiras rádios livres, a esquerda nos advertia, desconfiada: “agora vocês estão abrindo essas suas rádios democráticas caseiras, mas amanhã chegará o grande capital e se assenhoreará do sistema midiático”. Assim soava, mais ou menos, a reprovação vaticinada pela esquerda, em especial, pelo PCI. Na época, pensava-se que acabaria sendo Rizzoli, à época proprietário de vários jornais, quem construiria um império midiático no terreno aberto naqueles anos, mas no final quem fez isso foi mesmo Berlusconi. A brecha aberta pelas pequenas rádios livres permitiu a ele criar Milano 5, que depois se converteu no Canal 5.

Tinha razão então o PCI?, que defendia o caráter estatal da informação e nos alertava dos perigos da liberalização, pois pavimentava a estrada para o grande capital? Não. Não tinha razão o partido. Tinha-a o movimento das rádios livres. Porque a liberdade de informação, além de ser um bem em si próprio, é também um processo inevitável e iniludível, pois não se pode estancar o fluxo proliferante das informações. O movimento de 1977 tinha intuído a evolução das relações entre comunicação e sociedade, e graças a isso pôde transformar-se num gigantesco laboratório de produção comunicativa. Aquele movimento, sim, era o antídoto contra o perigo Berlusconi, o antídoto antecipado contra a chegada da ciberditadura. Mas isso não aconteceu. Em março de 77, se produziu uma insurreição dramática e ao mesmo tempo alegre, e em setembro se realizava o congresso contra as repressões.

Março foi colorido e feliz, criativo e inteligente.

Setembro foi cinzento e rancoroso, ideológico e agressivo.

O movimento de 1977 tinha encontrado a rua bloqueada por pequenos tanques de guerra e centenas de jovens terminaram na prisão. A esperança de março se converteu na tenebrosa e desesperada determinação de setembro.

O terrorismo veio depois, assim como a heroína. Chegaram de mãos dadas com a derrota, para eliminar o único adversário possível do ciberfascismo italiano. Hoje escrevemos estas páginas num clima completamente mudado. Por enquanto, e não sabemos ainda por quanto tempo, o ciberfascismo ganhou a batalha. Personagens ridículos dominam a cena da política nos ameaçando com potenciais desastres.

A paisagem da mídia de hoje (duzentas mil vezes mais fechada do que em 77) está estruturada conforme as mesmas linhas que já existiam naquela época. Havia então uma informação completamente controlada, uma informação oficial que procedia do púlpito do Compromesso Historico, da igreja católico-togliattiana. E, de chofre, apareceram as rádios livres, os panfletos transversais, os índios metropolitanos, os centros do proletariado juvenil, os primeiros grupos de videoativistas. Do mesmo modo, hoje a informação está totalmente controlada, procede de uma única fonte assim como naquela época. Um único patrão governa os fluxos que polvilham a mente barroca do povo italiano. Mas de súbito surgiu a inumerável massa de comunicação horizontal que compõe a Internet, os cem mil nós da rede Indymedia, a proliferação dos videomakers pelas ruas.

Talvez seja nesse terreno, no da comunicação, de produção do imaginário, da formação dos panoramas psíquicos, em que se desenha uma possibilidade de recuperação de uma perspectiva civil, política e cultural, que permita superar a atual barbárie. Supondo que algo de humano reste no final da tormenta. O que não está de jeito nenhum claro.

O movimento de 77 foi, lembremo-lo, a antecipação e o início do fenômeno chamado punk, que representou a alma mais profunda das culturas jovens dos anos 80 e 90. O punk foi o despertar da consciência tardomoderna ante o efeito irreversível de devastação produzido por todos aqueles que os movimentos revolucionários não conseguiram mudar, eliminar, destruir.

O punk foi uma espécie de desesperada e lúcida consciência de um amanhã sem salvação.

No future, declarou a cultura punk, contemporânea da insurreição criativa de Bolonha e de Roma: “Não há nenhum futuro”. Ainda estamos nesse momento, enquanto a guerra mais demencial que a humanidade conheceu destrói as consciências e as esperanças de uma vida vivível. Estamos ainda aí, nesse mesmo ponto em que nos deixou o congresso de setembro de 1977.

No future continua sendo, hoje como outrora, a análise mais aguda e o diagnóstico mais acertado.

E o desespero, o sentimento mais humano

 

Franco Berardi, o Bifo, é escritor, filósofo e agitador cultural italiano, autor de vários livros sobre a relação entre movimentos de luta e tecnologias de comunicação, participou da fundação da Rádio Alice em 1976 e, no auge do Movimento de ’77 na Itália, foi uma das principais referências da dita “ala criativa” dos protestos.

Notas

[1] – Capítulo de 1977: l´anno incui il futuro incominciò, Roma, Fangango: 2002. Tradução ao português pela UniNômade, a partir da tradução ao espanhol, de 2007, por Patricia Amigot e Manuel Aguilar.

[2] – Interface amistosa entre usuário e computador, com base em metáforas gráficas (janelas, pastas, escritório) e o uso do mouse.

[3] – Simon Nora e Alain Minc, La informatización de la sociedade, Madrid, Fondo de Cultura Económica: 1982.

[4] – Por Deng Xiaoping, dirigente comunista chinês. Vinculado desde os anos 50 à ala moderada ou conservadora do PCC, foi destituído durante a Revolução Cultual em 1967-69. Voltou ao poder pelas mãos de Zhou Enlai, em 1973. Depois da morte de Zhou e de Mao, em 1976, disputou o poder com chamada Gangue dos Quatro, até vencê-la. Entre 77 e 87, Deng foi o inspirador das reformas da sociedade chinesa na direção de uma economia capitalista comandada pelo PCC, que serviu de base política, econômica e repressiva para a longa marcha do desenvolvimentismo chinês.

[5] – “È ora, è ora, lavora solo un’ora”.

[6] – “Trabajo cero, sueldo entero/toda la producción a la automatización”.

[7] – “Ya es hora, ya es hora, el poder a quien trabaja”.

[8] – O PCI chamou de compromisso histórico (Compromesso Historico) a sua proposta de acordo com o partido Democracia Cristã para, em coalizão, reformar a sociedade italiana. Apresentou-se como uma linha contrária à tradicional de promover um governo de esquerda alternativo, que Berlinguer, então secretário-geral do PCI, considerava fadada ao fracasso no cenário de ascensão das direitas que se desenhava com o golpe no Chile, em 1973. Na prática, o compromisso se traduziu com uma colaboração subalterna do PCI à DC durante os anos da emergência movimentista ou dos anos de chumbo, na repressão contra o movimento social, contra a Autonomia Operária e contra as Brigadas Vermelhas.

[9] – 7 de abril, 21 de dezembro: prisões em massa de intelectuais ligados ao campo da Autonomia, muitos dos quais foram declarados inocentes depois de cumprir até cinco anos de prisão sem provas.

[10] – “La rivoluzione è finita e la abbiamo vinto”.

[11] – Daniel Bell, El advenimiento de la sociedad postindustrial: un intento de prognosis social , Madrid, Alianza 1976; Jean–François Lyotard, La condición postmoderna: informe sobre el saber , Madrid, Cátedra 1984; y Jean Baudrillard, El intercambio simbólico y la muerte , Caracas, Monte Ávila 1993.

[12] – Começando pela ruptura da Primeira Internacional, seguindo com o cisma bolchevique, o conflito entre a Terceira Internacional e o Linkskommunismus, a guerra entre estalinismo e trotskismo nos  anos 30, e acabando na ruptura sino-soviética e na guerra entre revolucionários e reformistas, nos anos 60.

[13] – Gilles Deleuze e Felix Guattari, O Anti-Édipo: capitalismo e esquizofrenia. Ed. 34: 2011.

[14] – Ano da queda do muro de Berlim, sintoma do iminente e ultra-veloz esfacelamento do bloco soviético do Pacto de Varsóvia.

[15] – Palmiro Togliatti, dirigente da Internacional Comunista e máximo dirigente do PCI por quase 40 anos, de 1926 até a sua morte em 1964, em Ialta (Crimeia, URSS). Em seu testamento político, o chamado Memorial de Ialta, deixou formuladas as linhas-mestras de sua concepção do policentrismo do movimento comunista internacional (por oposição à liderança da URSS) e da via italiana ao socialismo, por meio de uma ação pacífica, de massa, eleitoral e reformista, no marco das instituições da República Italiana.

[16] – O grande patrão da Fiat.

[17] – Em sentido figurado: pobre diabo.

[18] – Michel Foucault, Historia de la locura en la época clásica , México, Fondo de Cultura Económica 1997; Roland Barthes y Eduardo Molina, Fragmentos de un discurso amoroso , Madrid–México, Siglo XXI 1999.

[19] – O DAMS (abreviação para Disciplinas das Artes, da Música e do Espetáculo) nasceu em 1971 na Universidade de Bolonha como curso de licenciatura na Faculdade de Filosofia e Letras, com o objetivo de desenvolver uma política de sinergias entre linguagens expressivas não verbais (http://www2.unibo.it/dams/).

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