Por Davide Gallo Lassere, em Commonware, 4/4/16 | Trad. UniNômade
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foto: Phillipe Wojazer
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Neste março, o que mais surpreendeu foi a rapidez com que a mobilização tomou pé e a extensão que conseguiu reunir. A um mês da primeira assembleia geral nas faculdades e dos primeiros bloqueios sistemáticos das aulas no ensino médio, o movimento já está presente em toda a França e agora parece destinado a disseminar-se nas próximas semanas. Depois das 500 mil pessoas de 9 de março, e das muitas centenas de milhares que saíram às praças nos 17 e 24, a greve geral do último dia 31 levou a todas as principais cidades francesas mais de um milhão de manifestantes, decididos a opor-se ao projeto de reforma da lei do trabalho, apresentado com o nome de Loi El Khomri. Se a jornada do 31, com bastante participação e vivacidade apesar da chuva torrencial, catalisou o momento expansivo das últimas quatro semanas, durante todo o final de semana se realizaram ocupações simbólicas de praças — em Paris e em muitas outras cidades –, enquanto nos dias 5 e 9 de abril foram marcadas mais duas jornadas de greve e ação.
Como se vê, o ponto central da mobilização é a retirada incondicional da nova lei sobre o trabalho, mesmo com as emendas já adotadas no texto depois das agitações do começo de março, e apesar das divergências mal disfarçadas nas altas esferas do Partido Socialista, entre quem apoia o primeiro-ministro Valls e quem mostra cada vez mais intolerância à linha dura, à indisponibilidade ao diálogo e à concertação. A retirada da lei é a marca registrada do protesto. Com exceção do sindicato nacional estudantil próximo ao PS (Unef), que embora venha a ser recebido nos próximos dias pelo governo, tem sido largamente escanteado nas assembleias universitárias, e também do CFDT (sindicato pelego que imediatamente voltou atrás, logo depois das primeiras emendas à lei), os estudantes secundaristas e universitários, precários desocupados e assalariados, assim como sans-papiers [sem documentos], ecologistas, militantes pelo direito à moradia e vários outros grupos, coletivos e associações não têm qualquer dúvida sobre o sentido das agitações: leur faire peur, fazê-los ter medo!
Se, de fato, a retirada da lei El Khomri certamente representou a ocasião de um encontro que faltava há tempos, nas assembleias gerais, nos piquetes, nos bloqueios das escolas superiores ou nas manifestações é extremamente difundida a consciência que para melhorar as próprias condições de vida cotidianas e laborais não podemos contentar-nos em somente defender os direitos conquistados há meio século que vem sendo erodidos por várias décadas. Ouviu ser repetida muitas vezes na última semana, — quase no recanto de uma experiência compartilhada e da vontade de experimentar fazer alguma coisa juntos, de engajar-se pessoal e coletivamente para transformar o estado de coisas presente, — que a proposta da lei não é senão a gota d´água que fez o copo transbordar; o seu cancelamento não é senão o objetivo mínimo e de curto prazo, que não deve, contudo, esgotar o impulso de um movimento que já se desencadeou…
A efervescência destes primeiros meses não nasce magicamente do nada, ela afunda as suas próprias raízes em diversos episódios significativos que aconteceram no período antecedente à mobilização. Sobre isso, se podem enumerar pelo menos dois fenômenos. Primeiramente, a longa série de controvérsias sindicais que recentemente compuseram o panorama das lutas francesas, da Good year a Renault, passando pela Continental, e muitas outras. Foi bastante levado às mídias as três mil demissões anunciadas pela Air France, culminando numa camiseta de protesto e na fuga do diretor de recursos humanos diante da revolta de trabalhadores e sindicalistas, que em uma das ações partiram para o confronto. Igualmente emblemático foi o caso de um casal de operários de uma empresa do naipe da Louis Vitton, que o diretor François Ruffin filmou no documentário Merci patron! [Obrigado patrão!]. Depois de ter sobrevivido com 400 euros por mês por mais de quatro anos, em razão de uma deslocalização, eles se veem sujeitos à expropriação da própria para, a seguir, reclamar uma polpuda indenização da parte da multinacional. Outro exemplo foi o documentário Comme des lions, de Françoise Daviesse, sobre o fechamento da fábrica da Peugeot em Alnay-sous-Bois. Tudo isso serviu para realçar violência patronal e a oposição obstinada e corajosa dos assalariados. Três episódios de liberação, cada um deles paradigmático a seu modo, injetando um profundo desejo de dar o troco e afastar todo sentimento de impotência.
Um segundo elemento a mencionar é o nascimento do coletivo On vaut mieux que ça [queremos melhor que isso] que se define como uma plataforma multimídia crítica e popular, voltada a promover a tomada de palavra. No site, há relatos carregados de vida e experiências cotidianas de maus tratos e abusos no ambiente de trabalho, exigências extracontratuais, horários excessivos, vexações, pagamentos irrisórios, discriminações racistas e sexistas, “sem hierarquizar essas experiências que são elas próprias a consequência de uma lógica sistêmica”. Salta aos olhos a proximidade com dezenas e dezenas de histórias substancialmente análogas àquelas enfrentadas por muitos jovens e trabalhadores na Itália. Se o mercado de trabalho francês parece, de fato, em certas camadas um pouco menos fragmentado do que de tantos outros países europeus, e se o sistema de tutelas e proteções sociais ainda se mantém diante dos assaltos das reestruturações neoliberais, as narrativas em primeira pessoa de milhares de experiências lembram as tristes experiências que muitos de nós sentimos na própria pele. No caso francês, os vídeos vistos centenas de milhares de vezes contribuíram para criar e difundir uma afetividade comum e a veicular uma vontade de ação.
Não foi, então, por acaso que, uma vez lançada, em 19 de fevereiro, a petição online pela retirada da lei El Khomri, ela tenha sido subscrita em tempo recorde por quase 1,5 milhões de signatários.
Entretanto, o verdadeiro impulso da primeira fase crescente provém do mundo estudantil e, em particular, dos estudantes secundaristas, que até agora se distinguiram positivamente pela iniciativa, determinação e capacidade organizativa. Durante todo o mês de março, dezenas de institutos — primeiro, no centro de Paris, depois no resto da França e nos bairros populares da capital — foram regularmente bloqueados de maneira que, em 31 de março, onze decanos decidiram fechar preventivamente os batentes dos próprios liceus, a fim de evitar “dificuldades” de várias naturezas (o que não aconteceu sequer por ocasião dos duros protestos de 2006 contra o Contrat première embauche [contrato de primeiro emprego]). Quanto à universidade, já são cerca de 60 em processo de fermentação. Sob o impulso inicial de Paris 8 e, em segundo lugar, da Sorbonne, as universidades se tornaram o teatro de constantes assembleias gerais e inter-lutas animadas em muitos casos por mais de 500 pessoas. Sobretudo, é nesses momentos de troca e discussão que emerge com clareza o caráter radical e global da mobilização, em que a crítica da representação política e sindical se destaca mais do que qualquer outra. Pouco importa, então, que no poder haja um governo que de socialista só tenha o nome: nas interações com o poder executivo não há reivindicações explícitas a que ele poderia atender, mas a simples vontade de livrar-se o mais rápido possível de seu legado antissocial.
Eis então que, com assiduidade, por mais de quatro semanas na França se vai à praça, cada qual com suas próprias técnicas e formas de manifestação do dissenso. Elas criaram, como sempre acontece, reações duvidosas da parte dos serviços de ordem dos sindicatos [1]. No fim da manhã, depois do bloqueio do instituto com latões de lixo e outros materiais, os secundaristas começaram a promover danças, trazendo a desordem à cidade a partir da Place de la Nation [2]. Na tarde, a seguir, trabalhadores e estudantes universitários engrossaram as fileiras, vendo-se sistematicamente levados a enfrentar a brutalidade gratuita das violências policialescas [3]. Com base nessa escalada, o estado de emergência em vigor foi assim progressivamente colocado sob os holofotes e debatido criticamente nas assembleias gerais. Decretaram-no, imediatamente, depois dos atentados de 13 de novembro e ele vem revelando-se de grande utilidade para contrapor-se aos protestos contra o Coop21 [4]. No fim de janeiro, o estado de emergência não era percebido negativamente por cerca de 80% dos franceses. Como explicado por Didier Fassin, isso representa de fato um dispositivo que impacta fundamentalmente: 1) as condições de vida dos sujeitos racializados que vivem predominantemente nas periferias e bairros populares e 2) as próprias condições de possibilidade de fazer política [5].
Se já no final de fevereiro, haviam acontecido as primeiras tentativas de auto-organização para discutir e reagir diante das maiores prerrogativas conferidas às forças da ordem e judiciais, foi somente com a consolidação do movimento contra a lei do trabalho que o estado de emergência começou a ser seriamente colocado na berlinda. E é assim que, diante do crescimento da mobilização de 30 de março, Hollande se viu obrigado — com extremo desgosto — a retirar a “déchéance de nationalité” [privação de nacionalidade] e a renunciar à reforma em sentido securitário da constituição [6].
Isto dito, algumas breves considerações podem ser rapidamente delineadas. É, realmente, claro que sobre as dificuldades dos últimos anos, alguns pontos significativos de impasse parecem momentaneamente ter sido resolvidos. Depois do assassinato de Rémi Fraisse, em outubro de 2014, por exemplo, as reações da parte dos movimentos sociais e da cidadania francesa, em particular em Paris, pareceram pouco eficazes. Durante a última primavera, por ocasião das tentativas de apoio simbólico nos enfrentamentos do povo grego e do Syriza, na praça nunca havia mais do que 5.000 pessoas, com uma composição geracional temerosamente avançada em idade. Somente o movimento antirracista e anti-islamofóbico pareciam ter absorvido o golpe do “depois de Charlie”, organizando um importante meeting na Bolsa de Trabalho de Saint-Denis, em 6 de março do ano passado, continuando assim a oferecer um apoio prático e legal aos imigrantes agrupados nos acampamentos de Austerliz, Stalingrado, La Chappele, no 16º distrito, em Calais etc, e levando à praça dezenas de milhares de pessoas em 31 de outubro, na Marcha da dignidade. Ora, desde a semana passada, estão em curso acampadas em uma dezena de cidades, que lembram, pela composição social e formas de participação, as experiências dos Indignados e do Occupy Wall Street.
O fenômeno, por si mesmo, se torna certamente de grande interesse, enquanto milhares de pessoas se reúnem — em muitos casos, pela primeira vez — em várias comissões (em Paris: “democracia interna”, “ação direta”, “animação”, “comunicação” e “logística”), depois subdivididas em subcomissões e, a seguir, reunidas na assembleia geral para discutir no espaço público sobre como reforçar e estender o movimento [7]. Além dos conteúdos das intervenções — nem sempre no nível do entusiasmo e da necessidade de exprimir-se — o que retorna de maneira constante é a demanda em criar redes de convergência das lutas e romper qualquer tipo de separação. Em particular, mais de uma vez se colocou a questão da articulação com os problemas raciais e a situação dos imigrantes. Este, provavelmente, é o verdadeiro nó a ser desatado; o vínculo a tecer-se com ainda maior carga de efeitos positivos, em relação àquele vínculo mais tradicional, entre estudantes e operários, no contexto específico francês.
O que acontecerá concretamente nas semanas e meses por vir é cedo ainda para dizê-lo. A participação maciça nas manifestações de praça e o conteúdo nitidamente incandescente delas, a ampla adesão às greves sindicais, a riqueza dos debates nas assembleias universitárias, assim como a paixão das noitadas em pé durante o fim de semana, tudo isso é não somente encorajador, mas legitima com clareza certa sensação: ce n’est qu’un début… [este é apenas o começo…]
[1] – Para uma crítica interna muito interessante e participativa de um militante de base da CGT quanto à gestão da praça em 24 de março: https://paris-luttes.info/cette-cgt-n-est-pas-la-mienne-5156?lang=fr.
[2] – Aqui algumas imagens predominantemente recolhidas no fim da manhã de 17 de março, na vizinhança do Boulevard Voltaire: https://www.youtube.com/watch?v=mQkO0vL8UhY&feature=youtu.be.
[3] – Para uma síntese das primeiras três semanas: https://www.youtube.com/watch?v=dukcALbc9Pc. A imagem de abertura do secundarista espancado em 24 de março, entre três policiais, foi vista por centenas de milhares de pessoas. Menos percebida foi a reação dos companheiros de escola no dia seguinte, que atacaram um posto de polícia do 19º distrito, nas proximidades do Liceu Henry Bergson: https://www.youtube.com/watch?v=sjqfAm2BWYM.
[4] Por exemplo, a entrevista com Mathieu Rigouste.
[6] https://www.youtube.com/watch?v=380ZKfZFgh8. Não obstante, as derivas da sociedade francesa, com mais de um bilhão de euros subtraídos dos vínculos do orçamento e investidos no âmbito das políticas securitárias, ainda permanecem seriamente preocupantes!
[7] Para acompanhar à distância: https://www.periscope.tv/w/1jMKgMPymobJL.
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