Por Ariel Pennisi e Bruno Napoli, para a revista Devenir (Buenos Aires) | Trad. UniNômade
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2001 como odisseia da restauração
Em 120 dias, o partido do governo Macri (PRO) traçou um caminho para a sua gestão que já havia sido anunciado de maneira muito parcimoniosa muito antes de assumir, embora menosprezado ostensivamente pela gestão ejetada em 10 de dezembro (FPV, de Cristina Kirchner). Os candidatos do PRO firmaram na campanha a opção pela dívida em dólares, uma alta taxa de desocupação do trabalho (que devido às velharias da economia talvez freie a inflação), a guinada na direção de um discurso “vizinhocrático”, e a restauração completa do autocrático poder judicial. Mauricio, Gabriela, Horacio, María Eugenia, Marcos, Alfonso, Rogelio, e até os mais obtusos Federico e Carlos, todos eles falam aos 40 milhões de “vizinhos” com uma vantagem: não lhes pedem que celebrem constantemente cada medida, nem sequer que a agradeçam. Só os dizem, a todos esses vizinhos, que vieram para cuidar dos políticos corruptos, dos partidos velhos da política, e dos insidiosos pedidos feitos em praças cheias, a que os gestores do “país com boa gente” nos tinham acostumados.
Se os novos administradores do gerencialismo de tipo empresarial (como diz o nosso amigo Agustín Valle) se privaram de alguma coisa, foi da condescendência ante um setor atado a ódios de mais de um século, a essa direita rançosa que fala a partir da “tribuna da doutrina”. Do mesmo modo, o governo reservou um silêncio seco aos feridos pela gestão anterior, que rapidamente apareceram em cena fazendo de seu trabalho intelectual a sua única carta de apresentação para pedir lugares privilegiados. Esses dois espaços coincidiram: um editorial de La Nación pediu o fim dos julgamentos por crimes de lesa humanidade de uma maneira descarnada e tosca; quase ao mesmo tempo, uma dúzia de professores unitários, com Luis Alberto Romero à testa (alguns deles ex-frepassistas e progressistas dos ’90), fez quase o mesmo pedido ao novo presidente. O gerencialismo do PRO respondeu que os julgamentos por delitos de lesa humanidade são “política de estado” e que não há volta atrás. Dois pedidos e uma só resposta. Isso sim é novo.
Dentre os legados possíveis de 2001, salta aos olhos uma memória política da restauração que não escarneceu a todos os responsáveis por aquela crise de legitimidade estatal, que tinha sido produzida, em parte, por uma gestão financeira que teve pouco de crise econômica e muito de trambique. Os bancos, responsáveis pela dilapidação das poupanças de milhares de pessoas, se situaram no núcleo do trambique; ainda que o grito imediato (e ainda latente), que se vayan todos, tenha assumido por objeto uma classe política que já não preenchia as expectativas com os seus discursos de salvamento da crise, sem lograr convencer sequer a si próprios quanto a uma saída ordenada dos anos ’90.
Chegado nesse ponto, parece ter-se instalado nessa classe média cujas poupanças foram confiscadas em 2001 essa sensação epidérmica partilhada por muitos cidadãos, dos “políticos” como fonte da corrupção e gestores da derrama e de uma politicagem sem gestão. Vale recordar que o estalo de 2001 se deparou tanto com cidadãos com poupanças nos bancos quanto com os históricos setores “sem nada”, menosprezados desde sempre pelo sistema bancário; porém, desta vez, os últimos foram beneficiados pela visibilidade dos primeiros. Lembrá-lo, por um lado, é um bom exercício que escamoteia os mitos, mas por outro lado faz as vezes de salvo-conduto para imagens menos redentoras, ainda que mais dolorosas, pois o Parnaso dos heróis se turva.
Se falamos de legados de 2001, tendo em conta que os processos históricos são longos e laboriosos ainda que nos empenhemos em não o enxergar, e desejemos que as distâncias entre uma dobradiça e outra da história fossem as mais curtas possíveis, talvez estejamos transitando por sua segunda onda, pelo lado mais escuro do que se consolidou. Se a primeira e relativamente saudável onda (o kirchnerismo) tinha que ver com uma gestão que, três anos depois daqueles inesquecíveis eventos, já havia conseguido canalizar uma parte do descontentamento, seja com palavras que acalmaram os “revoltosos”, seja com um vendaval de medidas e gestos ante o que não nos deveríamos arrepender (pois a guinada do discurso do estado foi um grande incentivo para protagonistas de batalhas silenciadas a tiros por décadas); esta que é a segunda onda aprendeu pacientemente, com esquemas mais modernos, que se poderia resgatar aquele desprezo à velha política, retomando o que se vayan todos para construir a sua outra cara metade, a dos poupadores ressentidos, a da dívida em moeda estrangeira, da compra em dólares de porta em porta, a de um gerencialismo vizinhocrático em que a segurança da propriedade não se veja interrompida…
Captura pedagógica (e bancária)…
Pois bem, talvez a captura mais importante que poderíamos fazer dessa “feliz” experiência que se inicia esteja na novidade sobre o velho e o ensinamento de uma sapiência necessária: por um lado, os processos históricos são longos, por outro, os não são irreversíveis. Pensar outra vez, desde um começo incômodo, que a novidade dessa gestão contenha muito do velho, mas não deixa de apresentar novidades. E se nos pusermos um pouco mais atentos, nos poderíamos permitir desentranhar as formas de funcionamento de uma casta política (a atual e a que se foi), ligada a uma casta sindical (a que não se vai nunca), com um ator que, desta vez, talvez, e somente talvez, possa transformar-se num ator visível: o sistema financeiro.
Uma dezena de bancos pôde contribuir para gerar a tremenda crise de legitimidade política de 2001, por meio de um trambique milionário (autorizado pelo estado através dos mesmos funcionários que agora ocupam a direção do Banco Nación e do Banco Central) e a nossa ímproba reação foi que se vayan todos… os políticos. Porém, ademais, durante os 12 anos seguintes o negócio mais rentável da Argentina foi ter um Banco (se for estrangeiro, fica ainda mais fácil) fazendo uma translação de dinheiro nunca antes vista na história econômica. Devemos notar, ademais, que no mesmo período uma massa muito significativa de trabalhadores ingressou no circuito bancário (bancarizados através do crédito pessoal para consumo suntuário e não suntuário) fazendo crescer exponencialmente o fundo de cada entidade (sem contar tudo o que o fundo corporativo de cada banco cresceu). A conta não é difícil: os mesmos que canalizaram o trambique de 2001 se beneficiaram com esse neoliberalismo inovador e capilar que depende da inclusão social (transformar um trabalhador e, inclusive, um beneficiário dos programas sociais, num consumidor bancarizado de infinitos produtos). Este exercício de aquecimento da economia se legitimou pelo endeusamento do consumo interno (o que não está mal, salvo pela presença do intermediário – os bancos – que sempre ganha, qualquer que seja o esquema), uma ficcionalização exaustiva que transformou a compra de eletrodomésticos em 12 cotas (com juros pagos pelo estado) numa batalha pelo “empoderamento” de direitos aos mais necessitados. O estado afirmou o seu interesse, propiciando lugares que permitem garantem a participação num “projeto”. Como contraface, houve quem tenha comentado com sarcasmo a ausência das massas na abertura das sessões ordinárias a cargo de Macri, não se dando conta de que em parte é por isso mesmo que ele ganhou as eleições e detém o beneplácito da maioria segundo as pesquisas, porque não pede por praças cheias. Ele somente oferece “ajuda” e promete tranquilidade.
O poupismo
O fenômeno dos poupadores organizados depois do confisco realizado pelos bancos marcou uma relação inusual entre os setores médios e o establishment. Por um instante, os que simplesmente queriam “estar tranquilos” — que não lhes falassem de política, luta etc — se viram obrigados, por um conflito que lhes tocava no próprio coração de sua vida subjetiva, a forjar-se uma imagem algo rústica e passageira, mas nem por isso menos intensa, do poder. O ex-jogador de futebol Hugo Perico Pérz, assumindo o seu papel diante de uma das organizações dos poupadores, dizia ao jornal Página 12, em setembro de 2012, por ocasião de uma liberação parcial dos depósitos ordenada pelo então presidente interino Duhalde: “Foi uma medida tomada por pressão dos bancos estrangeiros e das empresas endividadas em dólares”. Nito Artaza, companheiro de Pérez na façanha poupista, também questionou a tibieza da medida e se manteve numa retórica de luta que, como em alguns de seus discursos, avançava sobre a classe política e os poderes econômicos, sintonizando com a atmosfera de 2001.
O tom beligerante foi diluindo-se com a passagem do tempo. O discurso de Perico Pérez voltou a ser legalista e engomado, e Nito Artaza apostou numa possível carreira política dentro da UCR. Alguns anos depois, provavelmente durante 2005, num ignoto programa de TV a cabo, Perico Pérez sustentava que, conforme o seu caráter de cidadão de bem, ele pagava os seus impostos e estava em seu direito de continuar reclamando pelo que lhe correspondia. Um dos convidados desses típicos trocas-trocas ao vivo da televisão, o escritor Dalmiro Saenz, zombando da solenidade do futebolista poupista, lançou uma provocação: “Quando posso, prefiro não pagar os impostos”. A reação do ex número 5 não se fez esperar e a sua resposta foi uma diatribe vazia do dever-ser, onde antipolítica e moralismo se confundiam numa mesma irritação. O escritos, sarcástico e com impunidade de velho, deixou escapar uma frase que se tornaria cada vez mais atinada ao correr dos anos até os nossos dias: “Não entendo esses jovens, parecem amar mais às leis do que as pessoas”.
É certo que os doze anos passados não foram fáceis para a poupança, — substituída massivamente pelo endividamento popular e das classes médias, — e não conformaram uma “década de poupança”, mas, de outra parte, era evidente o discurso dos ex-líderes poupistas? Hoje em dia, Nito Artaza aceita disciplinadamente — depois de ter-se oposto internamente — o papel que o seu partido cumpre como fiador do regime de governo que o PRO desdobra em nível nacional; enquanto Perico Pérez, condescendente com a chegada de Macri à presidência, aparece também como um dos referentes televisivos da indignação securitária. Em meados de 2014, depois de denunciar um roubo ante as câmeras da Crónica TV, ele remata: “Nos estão obrigado a estigmatizar à molecada que anda de boné”. O ex-jogador de futebol que soube apelar ao profissionalismo, um tipo de captura ilegal da paixão pelo jogo, para justificar a sua passagem asséptica pelos dois rivais eternos da Avellaneda, já não fala dos bancos e, inclusive, chegou a sonhar tornar-se candidato pela aliança Cambiemos em Lanús… voltou a crer na política?
Voltar a começar
Aqueles que inesperadamente sentiram, pela primeira vez em 2001, ameaçada a sua relação, sempre submissa, com a acumulação originária e, mais além de seus hábitos e crenças, saíram às ruas para misturar-se numa potente multidão de quaisquer, agora curam a sua cicatriz maltratada com a promessa de uma nova era de tranquilidade, sem piquetes na rua nem garantias constitucionais para os ladrões de galinhas (ou de celulares). A subjetividade proprietária em escala popular que protagonizou e festejou os linchamentos dos jovens pobres; o exército dos tranquilos se afirma em seu próprio retorno à política: teatro oficial nas ruas, protocolos de segurança, demonização oficial do militante, fotos e notas jornalísticas sobre o diálogo entre ministros, governadores e outros funcionários de trajes brilhantes e bem cortados… A aliança tácita entre os donos do mais-valor em todas as suas formas e as burguesias assalariadas — das melhor posicionadas e acomodadas às mais precárias e magras de salário — vive um momento de esplendor, impudente em seus atos aberrantes desde o primeiro minuto do governo de Macri, e escorrega à crítica cantada do bom sentido progressista e da esquerda tosca.
Propor-se um novo começo não deveria ser obstáculo para pensar, se não alternativas, pelo menos modos ou formas de entender a novidade: uma ordem neoliberal, continuadora em parte do esquema recém-terminado há 120 dias, que a seu passo se apresenta como o novo (representando o mais conservador do poder econômico em sua receita de ajuste) e que condensa e sabe administrar, na forma de consensos não comprados, numa irritação inclusive muito forte dentro do peronismo. Em algum ponto, os convoca para fazer um balanço sobre o que virá, trate-se de mais ajuste, recessão, repressão ou de uma nova felicidade em prestações.
Um lugar difícil e incômodo para pensar e militar, mas ao mesmo tempo saudável para exercitar mais do que nunca a memória econômica e política, e interrogar-nos sobre as nossas próprias aflições históricas na hora de nomear os eventos mais sensíveis e inesquecíveis. 2001 apresenta, hoje, pelo menos, duas faces, como um ying-yang impuro e mal lavado: por um lado, um legado democratizante difícil de retomar, já que vai requerer tanto a criatividade e a intemperança de atores e práticas existentes, quanto a emergência de novos elementos dinamizadores; por outro, a face escura da reação que, para completar as dificuldades, se apresenta hoje com a iniciativa — deixando ao resto o lugar reativo –, despido de culpa e peso, com o caminho pavimentado para demonizar os seus antecessores e brandir uma nova causa que, por definição, não precisa da mística épica: a adaptação sem mais nem porquê ao país normal, esse em que não se questionam as hierarquias, em que os ricos e pobres convivem graças a um acordo feito de impostações, balas de borracha e delitos econômicos em grande escala e baixa visibilidade. Assim, as pulsões mais cruéis que se viram interrompidas pelas solidariedades inesperadas em 2001, mas que trabalharam por baixo do processo político imediatamente posterior, essas mesmas que se exprimiram entre a indignação moral e o linchamento assassino, hoje descansam em seus representantes, que são, na realidade, prestadores de um serviço impagável: reciclam a imundície e a transformam em bons valores. Desse modo, os seus eleitores vivem o alívio de não ter que voltar a marchar com essa gentalha suja da metrópole, nem de ter que voltar a linchá-los por conta própria. Pois o novo governismo sobre isso foi claro: vêm para ajudar.
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Ariel Pennisi é ensaísta, professor da Historia Social Argentina na Universidad Nacional de Avellaneda e de Medios de Comunicación na Universidad del Cine, ambas em Buenos Aires, na Argentina. Também atua como editor da Quadrata Editorial.
Bruno Napoli é pesquisador em história recente e crimes financeiros durante a ditadura.