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Imobilismo em repetição

Por Renan Porto, UniNômade

Fall Wall

A indignação não pode ser contida por uma identidade qualquer. Uma indignação nasce da percepção de uma alteridade e aponta para o porvir, como ruptura do instante presente. Ela é kairós, ruma para abrir o campo dos possíveis, desapegando-se da série causal que leva do passado ao presente, da segmentariedade dura do já instituído como linearidade temporal e homogênea. Esse tipo de indignação, hoje, está transbordando dos aparelhos que se declaram revolucionários, e se espalha pelo corpo social de diversas maneiras. Inclusive, ao insurgir-se contra os próprios aparelhos que, muitas vezes, operam como imobilizadores.

“Conservadorismo” é um predicado disputado por diferentes sujeitos na atual crise política brasileira. De tanto que tem sido puxado para a esquerda, irritantemente, ele avermelhou. A luta pela conservação do espaço de poder e seus privilégios sob a justificativa de vedação ao retrocesso não faz sentido quando percebemos que já retroagimos muito politicamente, se fizermos uma mínima genealogia do estado presente. Por isso, tampouco faz sentido um discurso de preservação de um “Estado democrático de Direito” que é concomitante com a repressão policial contra adolescentes que protestam por educação.

Mesmo não sendo possível perceber a esquerda como um todo homogêneo, já que no seu interior há os mais diversos posicionamentos , é preciso tensionar este signo, “esquerda”, até o seu limite extremo. É preciso analisar a sua tendência à reprodução do mesmo. Os métodos/formas tradicionais assumidos pela esquerda e a sua constante reorganização em busca de purificação do conteúdo não afastam a possibilidade de incidir nos mesmos erros e replicá-los.

Numa entrevista oferecida em 1975, Foucault fala sobre os movimentos revolucionários marxistas e diz que “[…] para poder lutar contra um Estado que não é apenas um governo, é preciso que o movimento revolucionário se atribua o equivalente em termos de forças político-militares, que ele se constitua, portanto, como partido, organizado – interiormente – como um aparelho de Estado, com os mesmos mecanismos de disciplina, as mesmas hierarquias, a mesma organização de poderes […]”. Este modelo do Estado-nação moderno discutido por Foucault foi erigido sob a racionalidade iluminista europeia, que se pretendeu a única universal, uma razão colonizadora que não acolheu as diferenças das raças, as suas tradições e saberes. Impôs a verdade de sua ciência, seus padrões estéticos e culturais, a todos os países que dela se serviram em seus projetos colonizatórios. É um tipo de racionalidade que não suporta a diferença e busca eliminá-la onde quer que apareça, homogeneizando o corpo em que se aplica.

O Estado é também uma instituição militarizada, instituído violentamente pela tomada de território. Andityas Soares, falando sobre o nómos da terra na obra do jurista alemão Carl Schmitt, diz que “toda ordenação normativa depende de uma prévia violência, consistente na tomada da terra. Ordem (Ordnung) e localização (Ortung) são co- extensivos” (MATOS, 2014, p. 260). E como uma instituição militar, o Estado precisa da homogeneidade do corpo social para seu comando funcionar eficientemente. Todos devem pensar igual e estar a par de todas as ordens.

A racionalidade regida pela disciplina unificadora, a necessidade da homogeneidade como condição de funcionamento é uma característica não só interna também às organizações de esquerda, como, além disso, na maneira como esta lida com o seu exterior. Faz isso patrulhando reativamente quem a contraria, ou pior, mesmo quando não a contrariam diretamente, “desconstroem” aqueles que apenas se colocam num caminho alternativo. Não devemos desconsiderar a complexidade dos sujeitos e agenciamentos que atravessam essas organizações, na produção incessante de diferenças em suas tramas micropolíticas; porém, quando levada ao plano da macropolítica, a esquerda achata e esmaga todas essas complexidades em seus discursos e práticas oficiais.

No atual contexto político brasileiro, é importante atentar para o problema que o fascismo, tão apontado nos movimentos pró-impeachment, atravessa também a militância pró-governo. Esta última se apresenta tão reativa e autoritária quanto a primeira, impossibilitando qualquer diálogo. Estou falando de fascismo no sentido de um comportamento movido por afetos negativos que buscam a aniquilação do outro, a negação absoluta daquele que é diferente, da própria alteridade como relação possível. E este tipo de conduta está presente nos dois grandes polos da polarização política atual. Dois opostos correlatos, que apesar disso compartilham características muito parecidas no modo de agir e reagir. Não é possível que alguma democracia emerja de um terreno tão entrincheirado, onde não há nenhum senso de alteridade.

Porém, no campo da esquerda existe uma tradição de pensamento e prática mais consolidada. Por isso, é aí que se constata um apego às identidades mais forte, duro, autorreferenciado. Já se estabeleceu uma doxa determinante do que é e o que não é esquerda. Tudo o que fuja do padrão será tachado como fascista, golpista, liberal. Em um texto publicado em 1996, na Folha de São Paulo, intitulado “O pensamento que resiste à ordem”, Antonio Negri descreve que a “doxa” é:

“um sistema ordenado de interpretação do mundo, uma ‘historia rerum gestarum’ consolidada, uma lógica do passado que justifica o presente e pretende aprisionar o tempo futuro no seu sistema. Quando, por exemplo, no pensamento único da pós-modernidade, declara-se o ‘fim da história’ e se coloca a impossibilidade de alternativas ao ‘estado atual das coisas existentes’, estamos falando de ‘doxa’. […] ‘doxa’, código, justificação do presente, fechamento do futuro, conservação, pensamento das elites dominantes”.

É exatamente o que tem acontecido na esquerda, principalmente aquela governista: uma análise que faz analogia com eventos do passado, como o golpe que levou à ditadura em 1964, apenas para justificar a manutenção do atual governo em detrimento de qualquer outra alternativa, qualquer possibilidade que poderia abrir uma outra brecha, outra perspectiva ao porvir das lutas. A reação imediata às críticas feitas ao governo são imediatamente taxativas: “Fascistas! golpistas!”. Existe um patrulhamento da diferença por parte da esquerda que busca eliminar tudo o que foge à sua lógica. A eliminação de dissenso e a consequente produção de consenso minam toda a possibilidade de política, transformando-a em polícia, para usar os conceitos de Jacques Rancière:

“A polícia é assim, antes de mais nada, uma ordem dos corpos que define as divisões entre os modos do fazer, os modos de ser e os modos do dizer, que faz com que tais corpos sejam designados por seu nome para tal lugar e tal tarefa; é uma ordem do visível e do dizível que faz com que essa atividade seja visível e outra não o seja, que essa palavra seja entendida como discurso e outra como ruído” (RANCIÈRE, 1996, p. 42).

Esta é a forma da relação da esquerda com outras formas de luta que não carreguem a sua carga de identidades. É o que vem acontecendo com as lutas sociais no Brasil desde junho de 2013, por meio da desqualificação e o enquadramento dessas lutas como reacionárias, golpistas, fascistoides, por parte da esquerda institucionalizada. Clarissa Naback e Alexandre Mendes falam no texto “Vertigens de junho” sobre uma vertente das jornadas de junho que criou uma proliferação de novas formas de lutas e organização praticadas por diferentes sujeitos (usuários de transporte público, professores, moradores ameaçados de remoção, garis) e dizem que:

“de 2014 em diante, o governo federal e boa parte da esquerda brasileira trabalharam para aniquilar a primeira vertente de junho. Primeiro, organizaram uma máquina repressiva que inviabilizou a permanência dos manifestantes nas ruas e nas redes, através do uso da força e da disseminação do medo e da vigilância. Segundo, organizou uma máquina de marketing eleitoral que dessubjetivou e chantageou a insurgência, transformando-a no bastião de uma defesa do ‘menos pior’, de ataque aos ‘pessimildos’ (a insurgência mesma!) e de uma guinada à esquerda que nunca viria a acontecer. Por adesão entusiasta, medo, inércia ou defesa de uma identidade de esquerda (comunitarismo/tradicionalismo), quase nada escapou ao buraco negro do governismo”.

Todos os problemas colocados por essas lutas são reconduzidos pela esquerda partidária às suas pautas tradicionais, a seus aparelhos de representação, aos seus próprios projetos e campanhas. A potência dos sujeitos em luta é sugada pela representação institucional. Não há perspectiva de micropolítica e construção institucional desde a produtividade social, desde o trabalho vivo dos movimentos. Por exemplo, como as reivindicações por mais democracia, a recusa das representações políticas existentes, a afirmação das vozes de identidades marginalizadas dos espaços políticos, elas foram canalizadas para uma campanha exigindo uma assembleia constituinte, o “Plebiscito Popular pela Constituinte”. Uma vez Dilma eleita, em 2014, não se falou mais disso.

A experiência de luta produzida desde junho de 2013, as relações e projetos comuns construídos foram canalizados para os velhos métodos e formas da esquerda. No mesmo texto aqui citado, Negri diz que:

o pensamento único reformou a interpretação do real reconduzindo-a à ‘doxa’, porque não fazer da polícia além de um órgão de administração também um órgão do pensamento? E vice-versa: uma vez alcançada a convicção de que a polícia é um órgão do pensamento, porque não deixar cair essa dignidade na polícia como órgão de administração? Por outro lado, na sociedade em que entramos, ou na qual estamos entrando (pós-fordista na organização do trabalho social, pós-moderna nos valores culturais, liberal sob o ponto de vista da organização política) o poder não pode equacionar entre ‘doxa’ e polícia”.

Há uma crença generalizada que ser revolucionário é seguir a via da esquerda, como uma determinação a priori. Fora disso só existe heresia. E dá-lhe tribunal inquisitório, a partir de centros de autoridade que determinam a verdade. Onde há liberdade não pode haver heresia. E não é de hoje que a heresia, a heterodoxia, é uma forma de resistência na história.

Na oitava tese de suas dez sobre política, Rancière diz o seguinte:

“O trabalho essencial da política é a configuração do seu próprio espaço. Este trabalho consiste em dar a ver o mundo dos sujeitos e das suas operações. A essência da política é a manifestação de um dissenso, como presença de dois mundos num só”.

Neste sentido, a diferença é característica constitutiva da política e da democracia. Isto não tem nada ver com permissão ao fascismo da extrema-direita, mas com a recusa da lógica centralizadora e militarizada do Estado nas relações sociais. Abertura pro diálogo com o Outro e com sua indignação, possibilitando uma construção do comum entre os diferentes, a partir de pautas sociais que atravessem realidades compartilhadas. Uma barreira a isso está no fato que ser de esquerda passou a ser determinado por uma correspondência a priori com os símbolos e discursos tradicionais, com as identidades, e não com o compartilhamento de pautas políticas comuns. Bruno Cava disse o seguinte sobre esse identitarismo de esquerda:

“É que ser de esquerda parece ter se transformado num bem em si. Lênin falava da colina pra onde o esquerdismo ruma. De cima da colina, assiste à azáfama da multidão, daqueles que não ascenderam a seus valores. É como se, com o fim de qualquer potência da fé, restasse acreditar nos símbolos, nas bandeiras, numa memória fugidia e vaga de tempos melhores. A fé é assim drenada de potência e o vínculo com o mundo se dissolve num plano moral, na justiça da História. Quanto mais fraco o vínculo, mais drástico e desesperado o apego aos próprios símbolos. Daí marchas cuja única pauta é defender uma cor, uma fraseologia, uma sigla.”

Isto se torna ainda mais problemático quando essas organizações passam a ocupar cargos do governo. Daí faz-se de tudo para a preservação do privilégio. Em defesa do governo, a lógica do “menos pior”, que venceu a todos nas eleições de 2014, é reavivada: “pior que o petismo é o antipetismo”. E ser antipetista é “fazer o jogo mais sórdido da direita!”, é ser traidor do governo que nos trai diariamente. Quando na verdade nós somos muito pouco antipetistas e precisamos de um antipetismo mais forte, capaz de libertar os nossos desejos que foram capturados pelo governismo e suas articulações discursivas do medo; que nos liberte deste apego sentimental e melancólico a um governo que tem deixado e feito morrer os mais fracos, esfacelando os serviços públicos, protegendo as empresas, garantindo lucros altíssimos para os bancos e todas as outras merdas que estamos vendo acontecer por aí. Enquanto o governismo nos mobiliza para garantir sua governabilidade e legitimidade, nos colocando a lutar por ele, toda essa potência que poderia ser canalizada para a construção de alternativas é totalmente domesticada.

Em um dos áudios presidenciais vazados, Lula falava para mobilizar as mulheres para protestar contra um promotor de Rondônia. Mais um exemplo de como as pautas identitárias são mobilizadas em favor da estrutura e dos interesses do poder. É interessante também perceber nos áudios como os próprios militantes coordenados pelo Lula se veem como soldados a seu dispor e como o Lula se percebe num lugar de poder que “pode botar fogo no Brasil”. A organização da esquerda governista mais parece a formação de um exército particular, que recebe ordens por e-mail e tem que cumpri-las. Plenárias nacionais com os militantes servem só para passar as coordenadas para as lideranças locais repassarem à base. Assim, não é a população indignada que é massa de manobra. Massa de manobra mesmo é essa militância.

Os grupos que dizem “não apoio o PT, mas” e vão numa manifestação em contexto de polarização e governo sob ameaça que não seria uma manifestação em defesa do governo (ironia), mas da “democracia e dos direitos”, costumam dizer “ah, mas as pautas sociais estavam todas lá! A crítica é feita!” E o que é mais horrível no governismo é isso: manter a governabilidade, fazer a manutenção das alianças espúrias do PT, se segurar no poder, a partir da mobilização das pautas sociais e dos grupos identitários. Encher as ruas de cartazes pela reforma agrária pra defender um governo que não realizou nada quanto a isso e nomeou Kátia Abreu para o Ministério da Agricultura. Pintar as estrelas em defesa da democracia para um governo que criou a lei antiterrorismo. Gritar pelo meio ambiente para um governo que fez Belo Monte e deixou passar batido o que aconteceu em Mariana.

O problema da relação de subsunção da esquerda ao governo, o governismo, é problemática desde a existência da esquerda. Tal como é também antiga a eliminação de toda alternativa que se coloca à esquerda, mas fora das instituições cooptadas pelo poder, como aconteceu com as insurreições lideradas por Nestor Makhno no interior da Ucrânia, o Partido Solidariedade na Polônia e a Revolta de Kronstadt, todas essas experiências massacradas violentamente pelo exército vermelho na União Soviética. Como também aconteceu contra os movimentos do maio de 68, o 15-M em 2011, junho de 2013 no Brasil, como já citado, dentre outras, que foram renegadas pela esquerda tradicional.

Podemos concluir provisoriamente, portanto, que o governismo é:

  1. Um tipo de relação de subsunção da esquerda ao governo, em que a primeira (a “tática”) deve anular-se em proveito da manutenção do segundo (a “estratégia”). A reprodução do aparelho de Estado nas instituições socialistas, como citado por Foucault, cria com a centralização e verticalização descontrolada as condições para a reprodução deste mesmo erro, como já vem acontecendo na história da esquerda reiteradas vezes. Tal processo de despotencialização subjetiva da esquerda é ainda mais intensificado com o personalismo, como nos casos de Chávez e Lula;
  2. É uma relação caracterizada pela mobilização do medo como forma de chantagem permanente e esvaziamento do pensamento capaz de criar alternativas. Não havendo um projeto afirmativo capaz de mobilizar a sociedade ou já que a atuação do governo está fracassada, o governismo só se mantém possível com a mobilização do medo e da constituição de um inimigo a ser vencido e o ódio a ele (fascismo?);
  3. Por fim, é uma relação de policiamento e redução da diferença, produzindo consenso e homogeneidade, imobilizando o avanço das lutas sociais e construção de alternativas instituintes.

Sem superar essas repetições, só haverá imobilismo na esquerda. Precisamos de uma afirmação da diferença.

 

Renan Porto é bacharel em direito, pesquisador participante da rede Universidade Nômade.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CAVA, Bruno. O deserta e a esquerda. Uninômade: março de 2016. <https://dev.integrame.com.br/tenda/o-deserto-e-a-esquerda/>. Data de acesso: 25/03/16.

FOUCAULT, Michel. Poder-corpo in Microfísica do Poder. São Paulo: Graal, 2012, pp. 234-243.

MATOS, Andityas. Filosofia radical e utopia: inapropriabilidade, an-arquia, a-nomia. Rio de Janeiro: Via Verita, 2014.

NABACK, Clarissa; MENDES, Alexandre. Vertigens de junho. Uninômade: março de 2016. <https://dev.integrame.com.br/tenda/vertigens-de-junho/>. Data de acesso: 25/03/16.

NEGRI, Antonio. O pensamento que resiste à ordem. Folha de São Paulo: maio de 1996. <http://www1.folha.uol.com.br/fsp/1996/3/24/mais!/37.html>. Data de acesso: 25/03/16.

RANCIÈRE, Jacques. O desentendimento – política e filosofia. Tradução: Ângela Leite Lopes. São Paulo: Ed. 34, 1996.

___. Ten Theses on Politics, Theory & Event, The Johns Hopkins University Press, Baltimore, MD USA, v. 5, n. 3, 2001. Disponível em: <http://www.after1968.org/app/webroot/uploads/RanciereTHESESONPOLITICS.pdf>. Acesso em: 25/03/16.

TRAGTENBERG, Maurício. Reflexões sobre o socialismo. São Paulo: Moderna, 1986.

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