Por Gigi Roggero, em Commonware (italiano), em 25/10/15 | Trad. UniNômade
Resenha do livro Aos nossos amigos: crise e insurreição, Comitê Invisível (2015, download aqui)
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O que são os nossos amigos?
Aos nossos amigos é um livro que merece ser lido. Em parte, para estudar o que os autores dizem, em parte, os leitores, reais ou potenciais, que o leem. Mas a quem o livro apela, afinal? A resposta está contida no título, sem dúvida, um título certeiro: aos amigos. São os amigos de um “partido” invisível e disperso, imaginário e despido de organização. Na verdade, que refuga a própria organização. É um partido que emerge onde haja insurgência, “onde a época se incendeia”, que mergulha onde prevaleça uma calma aparente, no momento em que se volta a falar em “baixo entusiasmo da ‘gente’ para lançar-se numa batalha que se sente perdida por antecipação”. O livro fala aos amigos concretos e virtuais desse partido: àqueles que já o são, para reforçar a sua convicção, àqueles que podem vir a sê-lo, oferecendo-lhes argumentos fascinantes para tal.
A linguagem é adequada à tarefa, às vezes culta, às vezes coloquial, entremeada de várias referências filosóficas, explícitas ou implícitas, e com numerosas citações dos amigos do partido, que falam a partir da matéria viva das lutas no Egito ou na Grécia. Os alvos polêmicos são frequentemente escolhidos com cuidado, os principais são a esquerda e os anarquistas, ou melhor, o sentimento profundo de derrota de que a primeira é portadora, bem como as lamúrias ideológicas dos últimos. Mais problemático do que isso nos parece ser, em diversos aspectos, o sentido conferido à crítica do presente, embora ele seja coerente com uma tonalidade geral de fundo que o livro transpira.
Repassaremos rapidamente os pontos de acordo e nos delongaremos, em vez disso, nos problemas que encontramos. O objetivo desta resenha não é, de fato, fazer um simples comentário, mas contribuir para uma discussão militante e coletiva, clara e produtiva. Também os nossos amigos, pensamos, compartilham desse mesmo propósito.
Dentro do apocalipse duradouro
O texto se move de modo frenético através do tempo e do espaço. Londres, Sidi Bouzid, Atenas, Gaza ou Clichy-sous-Bois, Argentina, Guadalupe, Québec, China ou Estados Unidos. Ele mata no peito a atualidade e a coloca para deslizar ao longo da crônica. O ano da Comuna de Paris (1871) surge como um relâmpago para a seguir ser contraposto ao movimento no global; os índios aimarás do Altiplano, os militantes do IRA e os black blocs se revezam em indicações e avisos; por vezes, o mundo inteiro se alisa, aplaina-se e as distâncias se encurtam e mesmo se anulam. O risco é terminar numa espécie de liquidificador da história 2.0, em que os conhecimentos se tornam líquidos e os processos políticos dissolvidos em abstrações de tweet.
Apesar disso, quando põem em foco a crítica do presente, os nossos amigos nos indicam pistas e trilhas com reflexões significativas. Nos dizem, por exemplo, duas coisas relevantes a respeito da relação entre crises e movimentos, a partir de 2008. A primeira coisa é que a crise é um modo de governo. A sua duração indefinida não significa um enfraquecimento automático de nosso inimigo. Ao contrário, o uso capitalista da crise hoje consiste em transformar a impossibilidade de saída num elemento estável que reforça o comando sobre o presente. Quem fica esperando pelo colapso do capitalismo se confundiu de filme. E, acrescentamos, permanecerá iludido nessa miragem também quem sonha com uma relação linear entre desenvolvimento da crise e desenvolvimento das lutas, ao fetichizar uma raiva espontânea que, existente em si própria, seria um dado sociológico aberto a algum posterior direcionamento político. A segunda afirmação do livro para raciocinarmos é que, nos últimos anos, aconteceram insurreições porém sem revolução. Pois, de fato, não corresponde à verdade o quadro pintado pelas informações oficiais, que expõe a cena de uma sólida pacificação de revoltas pontuais e erráticas, incomunicantes entre si. Todavia, apenas constatar o fato não é suficiente. Com efeito, quem foi derrotado não foi a democracia, um rótulo geralmente etiquetado do exterior de toda insurgência de movimento. Quem foi derrotado na verdade foi a revolução pela própria democracia. Nesse sentido, quem segue invocando a primeira impede a perspectiva da segunda.
Longe de estarmos posicionados num momento decisivo de ação revolucionária, então, a crise é um estado de exceção permanente, um apocalipse duradouro. No lugar das lentes da economia política, afloram seguidamente no livro os instrumentos e as mensagens de uma teologia política. O apocalipse deve ser entendido, ao contrário, como já tendo ocorrido, porque o anúncio contínuo de sua chegada iminente apenas serve para normalizar os meios repressivos aptos em combater quem busque subverter o existente. A crise como oportunidade deveria por isso ser substituída pela catástrofe como oportunidade. Porque há vida na catástrofe, dizem-nos os nossos amigos. Ou melhor, a catástrofe é o espaço de onde se libertam a auto-organização e as comunidades de solidariedade. Dizer isso não é uma coisa particularmente nova, há um filão que defende a mesma linha já há bastante tempo, muito libertário e muito americano, até chegar aos episódios dos furacões Katrina (2005) e Sandy (2012). Porém, aqui vale uma observação importante, não podemos cair na retórica do “ser da necessidade”, da figura da falta que imediatamente convoca quem poderia preencher o vazio. Disso, decorre uma crítica pontual às ideologias associativistas e cooperativistas, explícitas ou implícitas, que atuam dentro dos movimentos na crise. Porque elas terminam por reproduzir a separação entre o ser da necessidade e quem se pressupõe represente-lhes as demandas, o que reduz o primeiro a um ator passivo e o segundo a um prestador de serviços. Esses não são uma alternativa ao capitalismo, como sustentam os nossos amigos, mas apenas uma alternativa para a própria luta. Este realmente é um tema contraditório e ambivalente, difícil de ser contornado somente com uma crítica à ideologia, e que não pode ser nem afastado, nem nele ficarmos amarrados. Em seguida, é preciso distinguir a prática que cria uma nova ligação social potencialmente antagonista das meras receitas burocráticas, que reproduzem setorizações e separações do ser da necessidade, preparando-o à representação. É preciso contornar o perigo de converter o mero atendimento das necessidades em finalidade política, o que neutraliza o que as necessidades portam de subversão, de potencial para a socialização das possibilidades de luta. Nessa passagem para a luta, acrescentamos, o ser da necessidade se torna sujeito do conflito, e os pobres devêm classe.
Nós e eles
“Não é a fraqueza da luta que explica a evaporação de toda perspectiva revolucionária; é a ausência de perspectiva revolucionária crível que explica a fraqueza das lutas”. Aqui não podemos deixar de ouvir os ecos de Lênin: sem teoria revolucionária não pode haver movimento revolucionário. Vejamos agora em que consiste essa perspectiva.
Têm razão os nossos amigos ao pontuar que não se mede a radicalidade de uma manifestação pelo número de vitrines quebradas, e têm uma razão igual e óbvia em fazer pouco caso de apelos abstratos à não-violência absoluta. Ainda outra vez, anarquistas e esquerda — como formato político e da mente — são os principais alvos da polêmica. “A verdadeira questão para os revolucionários — continuam — é aquela de fazer crescer as potências vivas de que participam, organizar os devires revolucionários para se alcançar, afinal, uma situação revolucionária”. Ok, é portanto revolucionário o que causa efetivamente as revoluções… Mas, então, onde procurar os embriões das potências vivas, as condições de possibilidade dos devires revolucionários? E aqui as coisas se simplificam para os nossos amigos ao mesmo tempo que se complicam para nós.
No livro, na tonalidade política que o anima, reaparecem continuamente o “nós” e o “eles”, o amigo e o inimigo. Isto é absolutamente correto enquanto ponto de vista e como objetivo, mas extremamente problemático se esse “nós” e esse “eles” devam ser imaginados como pertencimentos espontâneos ou simples frutos de escolhas individuais. O que motiva realmente o “nós” a sê-lo? Com base na leitura, responderíamos: o desejo de insurreição. Nada ou quase nada, no entanto, nos é dito sobre como e onde se forma esse desejo.
Em consequência, de uma parte, existem os revolucionários em comum, de outra parte, a obra da contrainsurreição. É como se no meio não houvesse nada. “There is no such a thing as society”, sustentava Margaret Thatcher; não existe mais uma “sociedade” a ser destruída nem convencida, repetem os nossos amigos. O problema é que com isso desaparecem as composições sociais e de classe, as relações de produção e de exploração, a especificidade dos tempos, dos lugares e das contradições. É como se os espaços existentes entre a insurreição e a contrainsurreição estivessem estofados de massas intermináveis de zumbis, como aparece na Hollywood do capital. O mundo é assim achatado na luta entre guardas e ladrões, os punitivistas aplaudem os primeiros, os revolucionários se identificam com os segundos. As subjetividades são desse jeito simultaneamente exaltadas e esvaziadas. Existem sempre e não existem nunca. Arriscam serem transformadas em significantes vazios, que os revolucionários deveriam simplesmente preencher, atraindo-os para o seu próprio lado, ao revelar-lhes como é boa a alegria do comum (que, em sua conotação objetivamente positiva, se torna apenas outro nome para o que os marxistas chamavam de “consciência de classe”).
“Onde quer que haja conspiração: nos átrios dos condomínios, na hora do café, nos fundos do kebab, nas baladas, nos amores, nas prisões.” Pode até ser verdadeiro do ponto de vista fenomenológico, mas isso é pouco útil do ponto de vista político. Permite sem dúvida comentar as insurreições que acontecem, mas não antecipa as que podem vir a acontecer. E é exatamente aqui, na antecipação daquilo que ainda não é, que se coloca a ação do militante revolucionário. Para buscar agarrar a tendência e desdobrá-la num sentido diferente. “Nós não a esperávamos, mas a organizamos”, dizia Romano Alquati a quem lhe perguntava se deviam esperar a explosão das lutas operárias nos anos ’60. Por mais que esteja em toda parte, de fato, a “conspiração” não se move num espaço liso e homogêneo: existem diferenciais de potência que não estão determinados meramente pela hierarquia capitalista, mas antes de tudo pelas possibilidades de lutas, de atacar o inimigo. Existem lugares e tempos historicamente determinados onde se constroem os processos de conflito e eventos de ruptura.
O próprio Alquati, quando realizava copesquisa na Fiat, falava de uma “organização invisível”, através do que os operários se comunicavam, fermentavam as lutas, articulavam-lhe os tempos, bloqueavam a fábrica. Dali nascia a greve “a gatto selvaggio”, que era imprevisível, portanto incontrolável a partir de uma mediação reformista. A ação acontecia por meio de um rodízio de táticas, métodos, tempos e lugares, e não reivindicava nada. Aquele era o ponto mais avançado da não-colaboração operária. A tarefa de uma organização política, dizia Alquati na época, não era planejar de maneira predeterminada o “gatto selvaggio”, porque dessa forma se correria o risco de torná-lo assimilável e domesticável pelos patrões. A organização deveria, ao contrário, contribuir para intensificar o “gatto selvaggio”. Essa organização invisível, essa “espontaneidade organizada”, se constituía através de um processo material, num lugar e num tempo determinados, recheada de operários específicos e comportamentos peculiares. Encontraremos outros exemplos comuns, em condições todavia particulares, e com formas de expressão diversas. Aquele não era um dado a-histórico, a luta não constituía um ato de fé. Em muitos lugares e em muitos tempos o processo não chegou a acontecer, ou se aconteceu o fez em formas totalmente outras.
Diversamente, no livro, temos a impressão que, dando por certa a existência da conspiração, se renuncia a pesquisar-lhe concretamente os traços e as condições de possibilidade. Ao dizer que “está por toda parte”, se arrisca dizer em nenhuma. Nos parece, noutras palavras, que falta aí não apenas a copesquisa das lutas, como aliás falta, ou pelo menos é insuficiente, um pouco em todos os lugares: o próprio problema da copesquisa, isto é, o problema de como a subjetividade se transforma em contrassubjetividade. Sem explicar esse processo de transformação, que também é um processo de antecipação, aposta política e tentativa de virar a tendência, a subjetividade termina reduzida a significante vazio. Conspira sempre, mas não comparece nunca em carne e osso, em suas especificidades espaciais e temporais, em suas formas de aceitação e recusa, em suas diferentes formas de potência concreta e virtual. O resultado é que se assemelha mais ao espírito santo que baixa do que a um sujeito revolucionário. Combate-se em nome deste vazio, arriscando de imaginar-se como o seu invisível representante na terra.
Desmercantilizar o desejo
Se Marx abandonado a si próprio corre o perigo de ficar preso no círculo fechado da lógica do capital, Lênin separado de Marx se torna vontade despida de materialismo, ruptura sem processo. A perspectiva se encarna nas lutas ou então não passa de pura anunciação. Se aconteceram insurreições sem revolução, como corretamente dizem os nossos amigos, seria uma autoconsolação atribuir a culpa exclusivamente aos corrompidos e traidores. Que fique claro, os pretensos “gerentes de movimento” existem — e como! Eles proliferam e são daninhos e os nossos amigos fazem bem em espicaçá-los. Mas pensar que o único problema seja a existência de traidores e corrompidos significa pecar pela autorreferencialidade, imaginar um mundo em que existam apenas duas espécies, revolucionários e contrarrevolucionários. O ponto, ao contrário, é que os revolucionários precisam se esforçar para entender o que existe no “entre”: a colher as formas de recusa, a romper os níveis de aceitação, a tentar antecipar as explosões, a colocar-se à altura delas quando acontecem, e a compreender o que sobra depois que passam. A transformar então o que está no meio numa “situação revolucionária”.
Vista desta perspectiva, a polêmica entre poder constituinte e poder destituinte perde a consistência, porque quando um e outro são tomados enquanto separados, nada podem nos dizer. Essa contraposição excludente nos foi, de fato, legada pela própria contrarrevolução, isto é, pelo pós-moderno. A nossa tarefa consiste em quebrá-la, não tomar posição dentro dela, sob a pena de legitimar-lhe o campo discursivo. Então, se a crítica ao abuso retórico do “constituinte” nos parece convincente, temos porém a impressão que se lhe opor simplesmente o seu molde virado, isto é, o “destituinte”, nos faça permanecer no interior do mesmo problema, na mesma contraposição vazia. Numa perspectiva revolucionária, não existe um para sem um contra, assim como um contra contém necessariamente um para.
Deslocar essa falsa dicotomia é que vai nos permitir conferir nitidez ao vértice ciclotímico imposto pelo capitalismo contemporâneo, ou “cibernético”, como definido no livro, numa polêmica em comum ante a tecnofobia anarquista e a tecnofilia marxista. Na crise, os sujeitos ondulam continuamente entre euforia e depressão, os movimentos assim como os mercados financeiros. Isto vale, sobretudo, para as novas gerações, o principal campo de experimentação para a produção de uma subjetividade da crise, continuamente colocada na parede para escolher entre aceitação e niilismo, entre expectativas decrescentes e atitude no future. Uma “felicidade” e um “desejo” que não rompam essa dialética não passam de mercadorias, inclusive quando furtadas dos supermercados ou adquiridas gratuitamente em nossa comunidade militante. O comunismo é um movimento real, não um presente do desenvolvimento capitalista, nem um oásis que criamos no meio do deserto. O ponto não é tornar desejáveis as formas de vida da comunidade militante, ilhazinhas nas redes ou obchinas do século 21: também elas quando se percebem como mundos separados, aprofundam uma marginalidade inteiramente funcional à governance capitalista. O ponto é que se torne desejável a transformação das próprias condições de vida, a conquista coletiva da liberdade e autonomia. Porque não existe alegria sem luta pela alegria, e não existe luta pela alegria sem organização da luta.
Conquistar o desconhecido
Um livro como este dos nossos amigos dialoga com frações significativas da composição jovem e metropolitana, exprimindo-lhe parcialmente os problemas e o desejo de alternativas, as possibilidades antagonistas e a ambivalência das paixões. Exprime também o pensamento do imediato em sua dupla face: de um lado, a reapropriação do “aqui e agora” contra as correntes do passado e as utopias do futuro, do outro lado, é fruto do colapso da temporalidade histórica, a sua fagocitose num presente sem fim, sem genealogia e sem perspectiva. No imediato se perde aquilo que é primeiro e aquilo que vem depois, ou seja, a possibilidade de antecipar e a necessidade de sedimentar. O contrário do imediato não é a mediação, mas o projeto, que se alimenta continuamente da relação entre construção de processo e salto em frente.
A ordem do discurso dos nossos amigos está entre outras coisas colocada em tensão com tantas experiências territoriais e metropolitanas que nos levam adiante. No interior desses percursos, tentam escapar da dialética entre local e global, desestruturando-lhes os termos, a fim de arrancá-los da logística do capital e, por conseguinte, imaginar a conexão entre planos com diversas consistências. Não simplesmente enraizando-se no território, mas produzindo-o. Pois é aí que afloram os problemas materiais, rasgando o véu das soluções retóricas. Aqui há tanto trabalho político a ser feito, para os nossos amigos e para todos.
Há então, de qualquer modo, uma atitude de fundo da parte dos nossos amigos que compartilhamos, independentemente das expressões concretas que ela assume: é a disponibilidade ao desconhecido. Isto que antes de qualquer coisa deve ser recusado é o que já conhecemos: a miséria da condição presente. A guerra e a barbárie futura não podem ser sacadas como armas de chantagem, porque a guerra e a barbárie as sofremos todos os dias. O conhecido é que nos dá medo. Para derrotar esse medo devemos predispormo-nos ao desconhecido. Não para estetizá-lo ideologicamente, mas para conquistá-lo concretamente. Ainda nos servem tanto esforço e tanta disciplina para respirarmos juntos, coletivamente, o ar da autonomia.
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Gigi Roggero é militante e copequisador de lutas e movimentos a partir de Bolonha, na Itália, participante dos ciclos de lutas na universidade (Edu-Factory) e dos precários no sul da Europa, autor de vários livros, como La produzione del sapere vivo (2009) e Elogio della militanza (2016). Seu livro La misteriosa curva della reta di Lenin está correntemente em tradução pela editora Autonomia Literária, com publicação prevista para 2017.
O livro Aos nossos amigos: crise e insurreição, do Comitê Invisível, foi publicado em 2015 e traduzido ao português aqui. Pode ser adquirido em versão impressa pela editora N-1.
Tradução coletiva da rede Universidade Nômade.