Revista Lugar Comum n.º 49 para download
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Apresentação
Num dos contos de “Reinette e Mirabelle” (1987), do cineasta Eric Rohmer, Mirabelle afirma que na natureza jamais existe o silêncio. Reinette, que passou a infância no campo, a contesta, apontando para um momento em que a noite já se encerrou mas o dia ainda não começou. Nesse momento preciso, em que a luz se entremeia por difusão indireta, incapaz ainda de inaugurar o dia, a orquestra noturna dos insetos se cala, mas os pássaros ainda não acordaram para exercitar o canto matinal. Porque insetos e pássaros dormem instintivamente em função do grau de luminosidade do ambiente, nesse lusco-fusco azulado que só acontece logo antes do amanhecer. Está claro o suficiente para que os insetos adormeçam, porém não o bastante para despertar os pássaros (se estivesse, devorariam os insetos com facilidade). É o que Reinette no filme de Rohmer chama de “minute bleue”, tempo de suspensão sepulcral, quando o silêncio efetivamente se faz na natureza. Dizem que no Minuto Azul as flores exalam as melhores fragrâncias, que começa o cio das fêmeas e que se sente algo como no momento da morte. Um tempo quando dia e noite se desmancham numa zona de indiscernibilidade, quando os contornos das coisas borram e as nossas próprias emoções se compenetram às tonalidades vacilantes por todo o espectro, um sutil balé cromático de sensações no coração do silêncio.
Pois bem. Esta revista, número 49 da Lugar Comum, nos coloca dentro do Minuto Azul em que estamos. Nela, o leitor vai poder experimentar vários esforços de nortear-se nessa flutuação contínua das hecceidades, sem limites precisos nem conclusões sentenciosas sobre o que fazer, qual a alternativa, o que se propõe, “entre chien et loup” como se diz em francês. Uma revista que, como Reinette, reconhece o poder do silêncio que é feito, onde tudo é nuança, limiar, estratégia de vida e morte.
Bruno Cava, coeditor.
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