Por Bruno Cava, UniNômade
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imagem: Dr. Evil, no filme Austin Powers (1997)
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A revolução cultural chinesa (RCC) foi uma revolução dentro da revolução e protagonizada por um partido (os Guardas Vermelhos) dentro do partido (o Partido Comunista Chinês). Os inimigos da revolução não eram os imperialistas externos, mas os internos, que estariam contaminados pela ideologia burguesa-ocidental. Os inimigos da revolução do amanhã eram os revolucionários de ontem. O lema era “Bombardeie o quartel-general”: uma mobilização da juventude do partido contra a velha guarda, das bases contra as autoridades, das massas contra a burocracia.
Mao pretendia mobilizar as contradições sociais intrínsecas à modernização num vínculo direto com as massas, pulando os quadros intermediários do partido. Apesar do ímpeto inicial e de misturar-se com a cultura jovem prevalecente nos anos 60, o partido mostrou resiliência e a história da RCC foi uma sucessão de impasses, empates e entrincheiramentos que durou cerca de 10 anos, até a morte de Mao em 1976, que desequilibrou o jogo.
O governo do período da restauração liderado por Deng Xiaoping não se contrapôs frontalmente à RCC. Pacificou-a e utilizou o desejo de dinamismo para revolucionar o sistema produtivo da China. Segundo Deng, as quatro reformas modernizantes de 1978 eram “70% maoístas”. A desmaoização se restringia a conter politicamente o que era entendido como ingovernabilidade do processo revolucionário, que perigava consumir seus líderes no próprio incêndio que eles haviam ateado.
Paradoxalmente, a institucionalização da RCC se deu por meio da abertura econômica na direção do famoso modelo dual mercado/estado que, para os dirigentes, inaugurava o “socialismo com características chinesas”. A manobra pretendia apagar o rastro mais incendiário das vertentes e ideias revolucionárias, em nome da reconstrução de um republicanismo neoconfuncionista: procure a verdade nos fatos.
Pragmáticas, as reformas pretendiam revolucionar a economia chinesa através do método lento e seguro. Deng gostava do provérbio do gato: não importa que seja branco ou preto, desde que pegue o rato. Um dos pilares para o desenvolvimento chinês consistia no novo pacto sino-americano, costurado por Henri Kissinger e concretizado em 1972 com a visita de Nixon a Pequim. A operação geopolítica era isolar a URSS, cercada por dois inimigos de peso, e deu certo. Aguçou a paranoia do Kremlin que, em vez de abrir-se à globalização como a China, aumentou a corrida armamentista e o isolamento do país, com a doutrina Brejnev. Enquanto a China adotava o modelo de dois sistemas num país, a URSS aprofundava o socialismo num país só. O resultado foi que na virada aos anos 1980 a China começou a sua longa marcha de crescimento econômico, enquanto a União Soviética estagnava-se de vez, rumo à derrota na Guerra Fria por não dar conta.
Quando, a partir de 1986, a URSS tentou desvencilhar-se da gerontocracia de dirigentes atrasados, com o neoleninismo de Gorbatchov, já era tarde demais. Não só o método rápido e sujo da Perestroika, como também o engessamento absoluto da burocracia, que pretendia abrir-se de cima pra baixo por decretos controlados, aceleraram o colapso do sistema. A China, a seu passo, vinha desde o fim dos anos 1970 realizando as reformas numa lógica desde baixo, capilarizada, reintroduzindo lentamente a economia de mercado ao lado das instituições políticas do partido, aproveitando as energias canalizadas e domesticadas da RCC. Com isso, a China se tornou a alavanca da globalização e, em breve, fábrica do mundo, inclusive industrializando a “China da China”, no Sudeste Asiático e na África Oriental.
Mas como nem tudo são flores, a década de 1980 foi a década do Do It Yourself, do Samizdata, das zines, das rádios livres e dos quadrinhos, uma efervescência que, no Leste Europeu e na URSS, precipitou a desintegração do Pacto de Varsóvia. Um bom livro a respeito é o do Alexei Yurchak: “Everything was forever, until it was no more”. Um correlato dessa onda aconteceu também na China, onde o período de 1984 a 1989 foi vivido como Febre Cultural. Como o partido tinha monopólio sobre a atividade política, os movimentos se organizaram como um caldeirão cultural (vale o livro de Jing Wang, “High culture fever”). O que ecoava a RCC, mas diferentemente do que nos anos 1960, desta vez se formou realmente uma cauda longa de intelectuais e produtores por fora das estruturas do partido ou suas vanguardas. Foi a única vez que isso aconteceu na China, desde a tomada do poder pelos comunistas em 1949. O resultado, como se sabe, foi uma sucessão de atritos e antagonismos até o movimento da Praça Celestial, em 1989, que ocupou 400 praças por toda a China, e terminou esmagado brutalmente pelo exército vermelho.
O interessante é que, enquanto a China passava a caucionar os impulsos de abertura e a sua própria inserção no neoliberalismo, durante os anos 1990, no Ocidente a revolução cultural chinesa teve outro percurso, muito mais sinuoso. Em primeiro lugar, a recepção foi extremamente estilizante. O filme de JL Godard, “A Chinesa”, é excelente, porque sua estetização estrambótica repercute como os militantes ocidentais se apropriaram da saga da RCC. Em geral, em vez de linha de massa, os coletivos maoístas se compuseram de grupelhos vanguardistas no interior da fase sectária de Maio de 1968, ou seja, já durante a restauração e suas sobrecargas paranoicas, na década seguinte.
Ao longo dos anos 70, o grito pelo bombardeio ao QG passou a apontar inimigos do povo por todo lado, impregnados de ideologias do Capital, do Patriarcado, do Ocidente. Seríamos vítimas de uma educação burguesa machista, racista e privilegiada. Assim como na RCC, o partido dentro do partido tinha por missão combater o inimigo interno, e por isso há sempre um caráter depurante, de constante vigilância e expurgo (de purgação) dos elementos contaminados. Embora tenha sido um fracasso total enquanto construção de contrapoder, os grupúsculos maoístas ocidentais tiveram relevância em armar discursiva e afetivamente o ethos do ‘social justice warrior’, que continuaria bombardeando o quartel general dentro dos campi universitários e da cena militante, no final dos anos 70 e ao longo das décadas seguintes.
Mais relevante do que isso, como apontado pelo Zizek em seu livro sobre Mao e a RCC, é como o capitalismo atingido pelo ciclo de 1968 se reestruturou incorporando uma série de práticas revolucionárias chinesas. A RCC não afetou apenas a reestruturação da economia na China. Um bom filme de síntese é “O Capital” (2012), de Costa-Gavras, que mostra um CEO de um banco promovendo a depuração dos quadros intermediários mediante um denuncismo sistemático por parte dos funcionários da base, estabelecendo assim um vínculo direto. Os novos modelos de gestão dos anos 1970-80 favoreceram a simplificação dos organogramas, a quebra da departamentalização estanque, a flexibilização das relações, a figura do executivo dinâmico. Um constante apelo por revolução dentro da revolução dentro da revolução, na permanente reinvenção que move o capitalismo. Como se os Guardas Vermelhos tivessem ido trabalhar na Procter & Gamble.
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Então o neoliberalismo está em sintonia com o desenvolvimentismo chinês em muitos níveis e não em oposição, como nos discursos da Nova Guerra Fria dos “geopolíticos” por aí. A RCC se ramificou na China e fora dela, em ziguezagues e entrecruzamentos, múltiplas linhas, na gênese da globalização neoliberal, atualmente em crise. Poderíamos avançar como a economia da cultura que desabrochou nos anos 90, por exemplo, com Tony Blair, levou o PCC a tentar retrabalhar a cultura em parâmetros governáveis, apesar da experiência da Praça Tiananmen. Ou como o ciclo de lutas das primaveras árabes, que pegou forte em Hong Kong na revolução dos guarda-chuvas (2015), acendeu a luz amarela dos dirigentes chineses, que enxergavam aí o fantasma de 1989, o qual, afinal de contas, foi a primeira acampada, o primeiro Occupy.
Se hoje a revolução cultural chinesa é chave para o entendimento de nossa conjuntura, eu diria que, sim, se pensarmos como a realidade política brasileira e seus esforços de desenvolvimento estiveram diretamente associados ao acoplamento entre neoliberalismo e neodesenvolvimentismo, entre matriz americana e chinesa da mesma globalização entranhada nesse metabolismo gigante.
Mas também para pensar a guerra cultural entre direita (alt right) e esquerda (ctrl left). Mas aí Bolsonaro não seria Mao, mas Deng Xiaoping: 70% Junho de 2013 e greve dos caminhoneiros. E os militantes pela Escola sem Partido só são os Guardas Vermelhos, se pensarmos que os movimentos identitários à esquerda também o foram, ainda que uns e outros estejam encenando uma comédia ideológica.