Originalmente publicado na UniNómada Espanha.
Por Raul Sánchez Cedillo (Uninómada) | Trad. Cristiano Fagundes (UniNômade)
A Europa seria uma comunidade tão imaginária como seus nacionalismos, com ou sem o Estado, dominantes e dominados. O estabelecimento da questão não há de girar em torno à naturalidade ou artificialidade de uns e outros, mas ao susposto respeito a narrativas e ações da atual crise-estafa do capitalismo e proliferação das expressões de rechaço e revolta. Consideremos, no entanto, o que ocorre no Reino da Espanha.
Frente à dilapidação manifesta do regime nascido da Constituição de 1978, abre-se um campo de opções tão ambivalentes como antagônicas que só podemos avaliar relacionados a seus critérios determinantes: a produção de riqueza e das formas de apropriação e distribuição; a relação entre Estado de partidos, território e democracia, e a relação entre soberania, poder constituinte e contra-poderes sociais.
O contexto da recente radicalização da aposta nacionalista e/ou independentista na Catalunha não pode passar despercebido por um pensamento crítico: o chamado “Pacto Fiscal” e o “Espanya ens roba“. As diferenças entre esta narrativa e as utilizadas pela Liga Norte na Itália, o “federalismo fiscale” e “Roma ladrona“, seriam elas tão fundamentais? Seria algo mais que uma mera causalidade o fato de que em ambos os casos, assim como no Euskadi, trate-se dos territórios mais ricos dos respectivos Estados? Perceba-se que o contraponto espanholista mais agressivo vem de Madri, a 3ª comunidade autônoma por PIB per capita e capital do Estado. Quando falamos dos 99% contra o 1%, falamos da exploração de direitos, renda e riqueza pública desta ínfima minoria rentista sobre aqueles que são carentes de poder financeiro e político. E este processo em curso e seu jogo narrativo é muito mais determinante que a dialética entre nações opressoras e oprimidas. Salvo o caso galego que corresponde muito mais a uma relação moderna entre centro e periferia, trata-se na verdade de uma tentativa populista e agressiva de “fuga” dos mais ricos diante dos pactos de contribuição fiscal progressiva no conjunto do Estado. Os que ainda se lançam em leituras classistas destas coisas não haverão de dedicar muito do tempo desvendando este aspecto. As comunidades imaginadas são um aspecto a mais na contraposição entre as diferentes elites de renda, poder político e financeiro para a captura das almas da cidadania. Ou, dito de outra forma, estamos diante de uma operação de conversão de um sistema que torna pública a dívida privada (fundamentalmente bancária e que entrou em crise terminal de legitimidade e autoridade) em um sistema-dívida nacional baseado no sacrifício do povo (que jamais é identico à população que habita o território, mas ao próprio corpo ameaçado em seu âmago) pela sobrevivência de sua nação. Esta contraposição entre norte e sul e entre nações endividadas, repetida por todos lados, é uma das tendências mais perigosas contra a democracia e os direitos dos 99% na União Européia. É também um dos incentivos mais poderosos no estabelecimento de uma necessidade de um processo constituinte como condição da implementação de democracia para a imensa maioria da população.
Um processo constituinte dos 99% não pode ser um processo de criação de novos Estados-nação, nem de enfrentamento entre territórios endividados. É por isso que a retórica da “soberania” e seu corolário “autodeterminação” se transforma neste contexto em uma perigosíssima arma contra o projeto dos 99%. Soberano é quem domina de fato a última instância de modificação das regras do jogo para decidir, como dizia Carl Schmitt, a exceção à regra. E ja faz muito tempo que a soberania nacional e seu corolário estatal pertencem às ficções instrumentais de uma esfera política e constitucional arqueológica. Neste sentido, eleger não é decidir. A capacidade de decidir passa pela identificação de adversários, inimigos e aliados estratégicos da democracia dos 99%.
Há quem continue pensando conforme doutrinas da 3ª Internacional comunista e suas variantes epigonais, que onde houver conflito de cunho nacional é preciso posicionar-se ao lado da nação oprimida e resolver a chamada “questão nacional” antes de debruçar-se sobre uma “questão social”. Falta uma “revolução democrática” (autodeterminação nacional) antes que se estabeleça o objetivo de uma “revolução socialista” (variante trotskista: passagem de uma à outra sem solução de continuidade). Entre outras coisas, porque a opressão nacional “dificulta o desenvolvimento das forças produtivas” (isto é, do capitalismo) e, portanto, o desenvolvimento de uma maioria social de classe trabalhadora capaz de construir o socialismo mediante a tomada do poder e a instauração de uma ditadura (mais ou menos legítima, mais ou menos hegemônica) da maioria trabalhadora sobre a minoria rentista e exploradora. Basta transpor esta planilha às realidades catalã e basca, seguindo nossos exemplos, para comprovar o quão desastroso poderia resultar este eterno dogmatismo.
O decisório passa por outro lugar: temos que reconhecer como habitantes de diferentes territórios de uma entidade em decomposição, a atual União Européia, um processo que não promete nada além da potencialização das opressões atuais, onde quer que seja. O regime da dívida infinita é o mesmo em uns e outros Estados e sua contraposição não promete nada mais que novas guerras entre os governados a benefício do 1%. A isto é preciso acrescentar que, paradoxalmente, os que mais desejam libertar-se de sua “opressão nacional” são em média mais ricos que a população de origem “opressora”, não mencionando a população imigrante extra-comunitária. O que é a Nação se esta não reconhece seus pobres, se somente considera língua, solo, costume e um relato histórico sempre a serviço dos pais da pátria? Isto se chama etnonacionalismo que, quando promovido por uma minoria colonial ou pós-colonial, é ambivalente e problemático, estarrecedoramente reacionário e protofascista quando são as regiões ricas (na presente condição capitalista) e mais exploradoras que o manifestam.
Reconhecer a “variação contínua” dos pertences nacionais é algo a ser incorporado, se já não o estiver, à narração estratégica dos 99%. Ao mesmo peso de gênero, “raça” e o que se chamava de classe. Portanto, se tanto na “Espanha” como na Catalunha e Euskadi o grito de “não nos representam” está abrindo o horizonte constituinte de democracia real, nenhuma pretensão etnonacionalista de novos Estados e fronteiras é justificável e deve ser combatida como toda ameaça de guerra entre pobres e subalternos.