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Marina Silva: razões filosóficas

 

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Uma das tarefas de uma filosofia que se confunde com o que se chama de “nova” ou “outra metafísica”1 seria a de nos auxiliar a pensar o mundo não a partir de formas prontas, já dadas, cuja única função seria a de reconhecê-lo, ou seja, através de uma imagem representativa. Segundo essa imagem, as formas de perceber e pensar o mundo são parte da ordem social instituída e se interessam por tudo que é da ordem do estável, do dado, do idêntico. A “outra metafísica” deveria, ao contrário, interessar-se por algo que escapa a essas formas habituais, ou seja, aos sinais que sugerem o movimento de uma novidade que se faz, que não cessa de se fazer no tempo, no limiar mesmo de uma contínua abertura ao futuro. A formação, em torno de Marina Silva, do movimento “Rede Sustentabilidade” oferece-se como uma ocasião privilegiada para essa visada filosófica, mas também como exemplo do quanto podemos encontrar no mundo apenas aquilo que nele buscamos: esquemas habituais e enrijecidos que nos tornam cegos ao “fato da imprevisível novidade no mundo” (H. Bergson).

 

Com efeito, entre seguidores e detratores de Marina Silva há aqueles que parecem partilhar essa mesma percepção representativa. Entre os adeptos, afirma-se que a emergência da Rede consistiria na sua potência em transcender o debate bipartidário que domina a situação política nacional, criando um novo espaço de diálogo, convergência e consenso para a construção, que seria o que importa no mundo contemporâneo, onde o esgotamento e a destruição parecem imperar. Não deixam claro, porém, quais problemas nos conduziram à oposição sem diferença em que vivemos, nem qual a diferença concreta do novo problema que mobilizaria a necessidade da construção, de um novo esforço. Já entre os críticos, multiplicam-se as acusações: seria apenas mais um partido a tornar mais espesso o caldo partidário indiferenciado existente, Marina Silva não passaria, no melhor dos casos, de uma nova líder carismática, no pior, de uma fundamentalista cristã catalisando o sentimento confuso de desencantados insensíveis aos verdadeiros e mais urgentes problemas do país (desigualdade, por exemplo), reunindo apoiadores financeiros dos setores mais conservadores da sociedade, etc.

 

Embora possamos encontrar, de um lado e de outro, matéria para discussões cuja utilidade é incontornável, a “nova metafísica” deveria se interessar por uma diferençaque implica uma suspensão dos próprios termos em que se constituiria essa discussão entre adeptos e críticos, mesmo que seja para a eles voltar em seguida, com outra imagem, dessa vez mediadora e não mais representativa2 – ou seja, não mais colada a eles numa perfeita aderência à ordem social, mas capaz de deslocá-los e de reavivá-los com uma nova tonalidade, capaz de formar assim uma nova perspectiva, uma linha de fuga em relação à ordem instituída. Abandonar essa imagem representativa far-se-ia necessário, pois, do lado dos críticos, ela aniquila a diferença de Marina Silva nela projetando esquemas já prontos e que fartam a realidade política há tempos; igualmente do lado de determinados adeptos, ela neutraliza a diferença ao supor que a saída da dicotomia estéril na qual nos encontramos seria capaz de nos conduzir a um espaço transcendente e neutro.

 

Ora, a diferença que moveria Marina Silva não poderia ser medida por essas imagens representativas. Não se trataria de uma diferença meramente exterior, dessas que permitem comparações e distinções a partir de categorias já prontas. A diferença que interessaria a essa outra metafísica é mais sutil, mais secreta, o que explicaria que Marina tenha podido escapar de certas cristalizações, capturas e neutralizações nesses últimos anos de sua vida política (por exemplo, quando já não conseguiu levar a frente suas políticas no Ministério do Meio Ambiente, ou quando não obteve sucesso em sua proposta de transformar o Partido Verde…). O que embalaria Marina Silva é propriamente uma diferença interna, ou seja, um elã ou força fabuladora capaz de bagunçar os lugares, introduzir um princípio de divergência lá onde as partilhas dos lugares, sujeitos e funções estariam feitas segundo uma ordem dada. Contudo, a essa altura, é evidente que a outra metafísica não apenas nos permite apreender a diferença, como também, mais profundamente, concebe nessa impulsão uma via política possível, adequada ao nosso tempo.

 

Dessa maneira, é com a expressão deleuziana “fazer pensar” que o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro referiu-se aquilo que, em Marina, poderia dizer respeito a essa nova maneira de fazer política, ou seja, a esse impulso fabulador que força o pensamento a especular outros mundos possíveis diante do pathos do desastre e da catástrofe a saturar o horizonte do mundo contemporâneo. A força “hacker” de sua “r(R)ede” residiria em sua capacidade em multiplicar as diferenças internas, em disjuntá-las, pois somente esses deslocamentos e reviravoltas poderiam nos fazer pensar “outramente”, variar nossa imaginação, contagiar-nos desse impulso, o qual, por sua vez, seria o único capaz de lançar possibilidades de uma nova sensibilidade vital. Não é senão seguindo tal precipitação que a construção, agora bem determinada em sua imanência, ganharia seu sentido pleno: o de um processo vitalcom o qual seria preciso se conectar e não de um modelo já dado que poderíamos seguir confortavelmente e bem vigiados.

 

Seguindo esse começo do pensar no pensamento, a nossa vida deixaria de ser inteiramente “nossa”, ela se confundiria, através da imagem mediadora, com o próprio movimento da diferença. Seríamos, então, capazes de ver, talvez, em toda sua evidência, uma vida mais ampla, mais urgente, mais próxima de um misterioso elã criador de novidade no mundo, finalmente compreendido como um “multiverso”: de perspectivas, de naturezas, de relações. Vislumbraríamos um Direito ainda difuso e a biopolítica ganharia em amplitude. Os filósofos G. Deleuze e F. Guattari (O que é a filosofia?) diziam que o pensamento sente-se mais próximo de um animal que agoniza do que de um homem vivo, ainda que democrata. Viveríamos um momento onde os animais, as demais formas de vida e mesmo algo como uma vida inorgânica dos elementos sentiriam cada vez mais próxima deles uma sensibilidade cuja introdução na situação política nacional Marina Silva teria tido a coragem de efetuar, não sem nos demandar um esforço para deslocar, a condição de quebrarmos os esquemas já prontos, essa situação rumo a novas margens, emergentes nos dois sentidos da palavra, como ela pôde apontar recentemente.

 

Ao recusar ver essa novidade em seu esplendor, o arranjo de forças, lugares e perspectivas no qual ela emerge, com o qual se confunde ou do qual já participa efetivamente, um grande prejuízo poderia ser esperado, pois o que tem a força da absoluta novidade avança apesar dos obstáculos que podem, mais cedo ou mais tarde, desacelerar, interromper ou desviar sua marcha. Diante disso, se não formos capazes de apreender seu impulso, menos ainda o seremos de inventar, por nós mesmos, as alianças e modos de resistências que certamente a nova situação poderá demandar, se é que já não nos demanda. Com efeito, muitas são as situações concretas em que consentimos em partilhar “uma parte do caminho, como a agulha da via férrea quando adota durante alguns instantes a direção do trilho do qual ela quer destacar-se”, para fazer uso novamente desse “metafísico outro”, que seria H. Bergson. Essa imagem aplica-se à relação de Marina Silva com a realidade política na qual ela deseja se re-inserir, apontando para outra direção, onde o velho e o novo parecem se confundir.

 

No entanto, não posso deixar de usar a mesma imagem para a minha própria relação com a concepção metafísica que tornou possível a abordagem acima e que é partilhada por alguns posicionamentos teóricos fortes na atualidade a maneira de um mesmo plano ou imagem do pensamento. Não sem razão, a tomada de posição de Eduardo Viveiros de Castro, na eleição presidencial de 2010, teria configurado não somente um apoio formal, de mais um intelectual, à candidatura Marina, mas sua própria apresentação como chantre de uma Weltanschauung e de uma razão filosófica envolvidas em sua prática política3. Quer dizer, falo de minha relação com as insuficiências ou problemas colocados por essa concepção da diferença que encontra em nós um adversário cortês, porém resoluto, no sentido “misosófico”, segundo o qual a relação com o inimigo, no pensamento, implica uma profunda admiração (a inimizade como “determinação transcendental”)4. É verdade que a nova ou outra metafísica permite erigir a diferença em princípio absoluto, mas por isso mesmo ela a confunde com a nova direção apontada e refaz a ilusão de uma redenção, afinal o que seria esse espaço de perspectivas reversíveis, de diferenças federalizadas, de relações simétricas senão o mundo diplomático das belas almas? Ora, não é suficiente quebrar a representação se nos ativermos a uma potência fabuladora que implica a diferença como seu princípio metafísico, como novo nome do absoluto – é sair da transcendência vertical moderna, e se deixar embalar por uma sedutora transcendência horizontal contemporânea, de imanência, rizomática, como já problematizei em outro momento.

 

Para além ou aquém dessa concepção especulativa, é preciso ser atento a uma filosofia prática, segundo a qual não é senão numa situação material, ou seja, numa multiplicidade qualquer, que se instauram processos de singularização que, a cada vez, determinam a direção que a agulha deverá tomar, bem como as condições segundo as quais uma organização social pode ser atualizada, o que jamais a mera especulação, realista, perspectivista ou simetrizante, poderia efetuar, visto que permanecem enredadas na relação principial que liga o pensamento a um Absoluto (que seja de transcendência ou de imanência, o Grande Fora, o Virtual ou a Diplomacia, pouco importa). Não há emoção criadora nem novidade senão como efeitos de decisões, de verdadeiros processos de singularização, capazes de realizar uma convergência de lutas múltiplas, ou seja, de linhas de fuga, perspectivas e relações que, entregues a elas mesmas, poderiam se diluir ou restaurar velhas estruturas em novas formações de poder.

 

Somente quando a fabulação coincide com um ato de decisão é que política se torna instauração e, ao mesmo tempo, a metafísica se torna experimentação. Mais do que a reivindicação dogmática de uma ou outra direção como sendo aquela realmente capaz de oferecer o novo, deveríamos celebrar o fato de “não sabermos o caminho”, condição para a prática de sua contínua invenção. Resta saber se Marina Silva fará outra coisa que não somente fabulação, se ela será capaz de decisão. De toda maneira, as razões filosóficas num caso e noutro não podem ser as mesmas.

Cléber Lambert é filósofo

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NOTAS:

1 O uso, neste artigo, desses termos remete, num primeiro momento, a Pierre Montebello que, ao formulá-los, em seu livro Autre métaphysique, Desclée de Brouwer, 2002, preocupou-se em depreender das filosofias de Ravaisson, Tarde, Nietzsche e Bergson uma outra via para aceder ao Absoluto, uma via propriamente não-grega, ou seja, não pressupondo um dualismo entre espírito e matéria, mas capaz de reencontrar o Absoluto na vida, na matéria, na consciência. Nesse sentido, a outra metafísica seria uma ontologia da natureza que desembocaria, entre outros, numa filosofia como a de Gilles Deleuze. No entanto, de maneira mais geral, com esses termos, entendo um conjunto heterogêneo de iniciativas e posicionamento teóricos que pressupõem uma nova aliança em torno da especulação, ou seja, em torno desse compromisso que ligaria a experiência do pensamento ao esforço de contato com o Absoluto, o qual, entretanto, deve ser entendido não mais como princípio transcendente, seja qual for sua determinação (subjetiva ou objetiva), mas como princípio imanente cuja presença pode ser reencontrada em cada ser singular. Em outras palavras, a outra metafísica, assim como a clássica, consiste numa filosofia principial.

 

2 Encontramos a noção de « imagem mediadora » no filósofo H. Bergson, para quem ela significa o termo intermediário entre a “simplicidade da intuição filosófica concreta” e a “complexidade das abstrações que a traduzem”. A imagem mediadora exprime o esforço de um pensamento que vai da complexidade de uma doutrina filosófica até a intuição simples que ela envolve: ela não traduziria essa intuição simbolicamente, mas permitiria ver diretamente o que a intuição dá a ver.

 

3 É o depreendemos da “reflexão” de Viveiros de Castro a respeito do “significado da candidatura de Marina Silva”, disponível em vídeo no seguinte endereço: http://www.youtube.com/watch?v=dyzz8KDf6jg

 

4 No artigo « Qu’est-ce qui parle à travers nous ? », na revista Rue Descartes n° 76, de Peter Pal Pélbart, vemos como o materialismo superior e o imanentismo ameríndio formam duas linhas divergentes e aberrantes de um mesmo impulso, aquele do pensamento do Fora, como também pode ser chamada a “outra metafísica”. Ainda que ele chame a atenção, lançando mão da reflexão de Zourabichvili acerca da relação entre Deleuze e Negri, para o fato de que é uma “alegria” estar diante de “dois pensamentos” ao invés de um só, em relação a esse impulso, ao menos, cuja “penetração” foi profunda no Brasil, não estaríamos diante de duas expressões da outra ontologia, uma constitutiva, a outra canibal, uma materialista, a outra animista? Poderíamos escavar mais a questão com a seguinte interrogação: qual dessas linhas chega a fazer o impulso passar, sem se deixar envolver pelas ilusões que parecem envolvê-lo, ou sem deixar se enrijecer em slogans de imanência? Ou seja, qual delas determinaria as condições sob as quais as linhas de fuga suscitariam forças revolucionárias (máquinas de guerra) ou permaneceriam anedóticas (tentativas individuais, pequenas comunidades), até se diluírem numa espécie de “abandonismo às fatalidades”? Desse ponto de vista, que é aquele da necessidade de uma “centralidade organizacional”, como dizia Guattari, capaz de “acelerar a cristalização de um modo de organização social menos absurdo que o atual”, a antropofagia não tem outra saída a não ser se tornar materialista, ao mesmo tempo em que o materialismo se torna racionalista – mas o racionalismo de um “cogito canibal” – e pluralista, fazendo com que o impulso passe na medida mesmo em que desfaça sua forma principial ou ontológica (a forma última do colonialismo) para se tornar o plano ou situação material pré-individual (“uma vida…”) onde cristalizações transversais possam, de fato, instaurar tramas multitudinárias e multinaturais. Sobre essa questão da cristalização, da centralidade organizacional das forças revolucionárias e dos perigos da linha de abolição, remeto ao artigo de Roger Lambert, “Hip Hop, processos de singularização e as máquinas de guerra”, disponível igualmente no site da Uninômade.

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