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Pacificação sem paz no Rio de Janeiro

Por Fernanda Pradal | Mestranda em direito – PUC-RJ

Mais recentemente, a perversidade da política de “pacificação” do Rio de Janeiro vai se explicitando até mesmo para muitos dos que, nos primeiros dias, haviam entusiasticamente abraçado a iniciativa governamental. Os chamados especialistas em segurança pública debatem se a política de pacificação se constituiria ou não em uma “política pública”, se ela teria ou não uma alcance nacional e se seu modelo de policiamento seria ou não replicável para outras situações. Muitos desses especialistas a vangloriam por ser, no mínimo, uma “prática de policiamento de proximidade”, isto é, “aquilo pelo que lutamos muito” (lutamos quem?). Enquanto isso, no cruento cotidiano dos setores populares, a estratégia da “pacificação” vai revelando sua natureza, vai se tornando o que ela é. Sua perversidade vai se evidenciando de diversas formas:

a) O chamado “policiamento de aproximação”, implementado por novos policiais formados com “aulas de direitos humanos e não pelos capangas da ditadura militar”, mostra que também mata. Sua letalidade é, hoje, um fato irretorquível até mesmo para os apologetas da doutrina da “paz”. Num simples ato, rápido e emudecedor, um policial atira e tira a vida de uma pessoa (que – não custa frisar – não tentava lhe tirar a vida no mesmo instante). Já foram algumas as mortes conhecidas por meio das mídias e das denúncias de lideranças locais e familiares. As mortes desconhecidas, as dos “bandidos”, as “em confronto”, as dos “cracudos”, nunca as conheceremos. Só os valões cheios de lixo e esgoto a céu aberto tão facilmente encontrados nas “comunidades” ou “territórios” que “necessitam de pacificação” sabem dessa contagem.

b) Nos vídeos divulgados pela imprensa alternativa fica também explícita a falsidade da premissa do “controle de territórios” por uma “nova” polícia. Não há diálogo com os moradores, há enfrentamento e, possivelmente, medo. Medo? A “polícia de aproximação”, a “polícia comunitária”, como chamam os nossos já referidos especialistas, tem medo da reação popular às suas arbitrariedades, não dialoga, não faz mediação de conflitos (!), e nem mesmo prende (!): simplesmente atira, e às vezes atira para matar. A confusão pelas ruelas de iluminação precária rapidamente leva policiais a se refugiarem de um lado, em oposição aos moradores revoltados com o assassinato ocorrido, e atiram, sabe-se lá para onde. Na melhor hipótese, para cima. Devem ter aprendido em seus cursos que a lei da gravidade (assim como outras tantas) não se aplica às favelas, e que, portanto, a bala que sobe não cai e, assim, não mata nem fere pessoas. Caso, entretanto, isso venha a acontecer, não entrará no computo das “balas perdidas” (perdidas de onde, convém indagar?). Outras inúmeras situações de conflito já foram noticiadas, como o rapaz que levou um tiro na mão no Complexo do Alemão há poucos dias, e os diversos conflitos em torno das proibições autoritárias dos comandantes. Como em verdadeiro estado de sítio, quem toma as decisões sobre as regras de convivência, a permissão ou a proibição de festas particulares, aniversários, casamentos, natal, páscoa, bailes funk, rodas de rap etc. é o comandante. O perfil do comandante é o que dita o grau de liberdades das “comunidades pacificadas”. Esses comandantes também participam, em geral, das reuniões das associações de moradores, dos encontros com os representantes da “UPP social”. Realmente, é incrível a liberdade trazida pelo Estado a essas áreas(!). Além disso, essa é a mesma polícia que dá aulas de dança de salão, lutas marciais, promove corridas festivas das ocupações/invasões, muitas vezes com o auxílio do hollywoodiano BOPE, os caveiras sempre a postos para qualquer “operação” em favelas do Rio de Janeiro. A militarização vai, assim, se enraizando, penetrando na possibilidade de vida e na forma de vida dessa população.

c) Perversidade é a palavra porque esses moradores, trabalhadores pobres em sua enorme maioria, apostam e creem que este de fato é um policiamento diferente, que está ali para expulsar o tráfico armado violento e manter a chamada “ordem pública” também nas favelas. Acreditam que a possibilidade de se ocupar as ruas da favela veio para ficar – “Agora as crianças podem voltar a brincar nas ruas!”. Claro, um ganho fundamental! Sob quais condições? E, logo, uma das mais perversas perguntas retóricas: “Você preferia o tráfico violento?”. Além disso, essa “retomada do território” e o novo policiamento eram “o que faltava para a urbanização”, isto é, a chagada ou melhoria do saneamento básico, da escola, do posto de saúde, da quadra de esportes, do parque das crianças, do serviço de assistência social para os viciados em crack (o mais novo e lucrativo vicio) e, naturalmente, o fim dos valões onde são depositados os cadáveres “inexistentes”. E de onde os moradores tiraram essas promessas? Diretamente das falas e das verdades construídas pelo governador, pelo secretário de segurança, pela imprensa e – não podemos esquecer-nos deles – os nossos especialistas em segurança pública. Desde a invasão do Complexo do Alemão – vale lembrar – a cobertura televisiva da Rede Globo, as inúmeras reportagens do RJTV e as inúmeras matérias do Jornal O Globo vem enaltecendo a política de pacificação e reproduzindo o discurso oficial. Certamente isso já era de se esperar.

d) É perversa porque a principal preocupação de muitos moradores e da classe média (em geral, por motivos elitistas e racistas) é a de se a pacificação vai durar para sempre, se permanecerá depois dos grandes eventos internacionais que a cidade sediará. Esses eventos que geram lucros imensos e concentrados ao capital nacional e internacional (construtoras, gestoras de equipamentos públicos – de esporte, de saúde, de entretenimento etc.). A resposta começa com o fato de que a chamada “UPP social” – o programa de articulação de secretarias e suas políticas, sem nenhum orçamento próprio – praticamente acabou! Entre disputas de partidos do grande arco de alianças das gestões de Paes e Cabral, “sob nova direção” e totalmente em crise, a UPP Social tenta sobreviver. Afinal, em 2014 tem mais uma eleição!

e) Esse processo é também perverso pelas transformações, essas sim, líquidas e certas, que tem imposto à vida das pessoas nessas áreas. É o que vem sendo chamado de “remoção branca”, em diferenciação a outro processo perverso e violento em curso na cidade maravilhosa – o processo de remoções de diversas moradias de áreas empobrecidas e de transformações urbanas igualmente autoritárias e caras aos cofres públicos em que o capital aliado é sempre, curiosamente, o mais preparado e competente concorrente das licitações. Esse processo de “remoção branca” é a outra face perversa da ocupação militarizada dessas áreas da cidade uma vez que, pelo encarecimento não planejado, abrupto e absolutamente incompatível com os salários ou ganhos mensais desses moradores, além de uma série de arbitrariedades, diversas pessoas estão deixando esses locais de moradia, geralmente áreas na zona sul da cidade, e mudando para áreas mais distantes de seus laços e de seu trabalho. Esse processo tem beneficiado empresas como a Light e a Net, entre outras que, mesmo antes de qualquer secretaria de Estado “chegar” para trazer a tão prometida e esperada “inclusão social”, já estavam lá. Afinal, todos os cidadãos devem pagar pelos serviços que consomem! Essas áreas, como o morro Santa Marta, tem se tornado o destino de estrangeiros e da classe média. No ritmo desse processo de gentrificação (aburguesamento) da cidade, a ocupação militarizada dessas áreas e modos de vida foi compreendida como a estratégia. Não à toa, é do grande empreendedor brasileiro do sec. XXI, Mr. Eike Batista, a contribuição privada mais robusta à Secretaria de segurança publica do Estado para as UPPs, além claro, da contribuição da FIRJAN, FECOMERCIO, Coca-Cola, Souza Cruz, Bradesco Seguros, CBF… A especialista para “ações integradas no território” resume, sem rodeios: “a iniciativa das empresas é ‘um investimento no futuro, capitalista, mas com sensibilidade social’”.1

f) A política de pacificação é perversa, por fim, porque no grande jogo do lucro do capital, do controle elitista e racista sobre os subalternizados trabalhadores moradores das áreas de pobreza da cidade, vidas são consumidas diretamente, como a de Aliélson Nogueira e de outros tantos, os modos de vida dessas pessoas são literalmente moldados e as subjetividades, por essa prática securitária e autoritária, são produzidas. Mas são nessas engrenagens, sob o ritmo diário da disciplina da exploração do trabalho formal ou informal, doméstico ou não, que formas de resistência precisam ser construídas por aqueles/as que, ainda, vivem. É o que a mobilização dos moradores do Jacarezinho mostrou na última semana.

Jacarezinho

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