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Entre a crise da paz armada e o evento Haddad

Outro artigo na série sobre a conjuntura das metrópoles, Hugo explode o conceito de paz para achar a “pacificação” da violência policial e judiciária. É aí que o gesto do novo prefeito de São Paulo se destaca da lógica do estado de exceção, repondo a política democrática.

Por Hugo Albuquerque | O Descurvo, UniNômade Garoa

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Publicado originalmente no Descurvo.

O estado de São Paulo está intranquilo. Depois de anos de diminuição dos índices de criminalidade, de repente, as coisas voltaram a se abalar. Pelo sétimo mês consecutivo, a violência continuou a subir, colocando em xeque o governo de Geraldo Alckmin (PSDB). Por outro lado, uma notícia alvissareira no meio de tantas más notícias veio à tona: Fernando Haddad interveio no que seria uma desastrosa reintegração de posse e, assim, evitou uma catástrofe comparável ao Pinheirinho. São episódios curiosos nesses tempos bicudos em terras bandeirantes: se a pós-modernidade é marcada pelo binômio desespero-segurança, o que resta para a Paz?

Houve uma relativa paz no estado nos anos 00, abalada apenas pelo episódio conhecido como “ataques do PCC” — em maio de 2006 –, que logo pareceu ser um ponto fora da curva. Com uma política linha dura, fundada no consenso de atuação dura da polícia, judiciário inclemente e um ministério público militante policialesco, São Paulo se orgulhava dos seus ganhos na área. Isso, até agora há pouco. Os dados da própria Secretaria de Segurança Pública não são animadores. 2012 foi, de fato, um corte nessa aparente tendência.A política de arrocho militar, aplaudida pelas classes abastadas e elogiada pela boa técnica estatística do positivismo tupiniquim, é uma falácia. Ao tentar descrever uma tendência real pela falácia do “aqui praticamos repressão policial-judicial-carcerária, a taxa de homicídios caiu, logo a repressão policial-judicial-carcerária é a responsável pela queda na taxa de homicídios (logo, pela paz)” constrói-se um raciocínio circular, feito de efeitos e não de causas. É como atribuir a um fator que atua no sintoma — a crise de violência, uma febre — o desaparecimento do sintoma vendido como cura da doença. O que fazer, se a violência volta a crescer mesmo a mantida a fórmula de reprimir? Como explicar?

O que é paz? A paz armada da ocupação? Dificilmente. A paz só subsiste como realidade ética de coexistência comum e amorosa. A paz, como historicamente ela veio à tona, é uma falácia. É estar livre para  exercer a minha violência, estar seguro em relação a uma ameaça externa pela coerção fantástica que eu submeto os outros. A paz romana, a paz imperial da ocupação sempre ruiu, pois quando qualquer coisa sai do lugar, os bárbaros invadem. Na São Paulo do século 21º, os bárbaros — esses doces seres inventados pelos civilizados em todos os tempos e lugares — corresponde à massa de ex-escravos, imigrantes, brancos pobres, estocados em periferias infectas, sem lazer, sem paz.

Esses bárbaros estão sob a mira de uma arma policial, duplamente punidos nossa sociedade: esmagados pelas forças de repressão como suspeitos — em um aqui-agora no qual ser suspeito é ser culpado e merecedor, não raro, de suplícios — e naturalmente expostos à violência epidêmica das áreas densamente povoadas e sem-infraestrutura.

A partir daí, a disputa pelo significado da paz torna-se cabal. É possível conquistar a paz pela melhoria da organização da sociedade ou só, e somente só, por meio da imposição da força, de uma ordem coercitiva? Uma paz conquistada pela coerção e pelo policialismo é mesmo paz, haja vista que o outro está sob estado de violência? E tal violência é múltipla, a extra-policial, uma vez que se aloja na própria maneira como se dá a disposição urbana e a duplicação da metrópole. A violência, criminalmente expressa, é apenas uma resposta confusa ao que poderia ser uma resposta política de rebelião face à ordem imperial. No fim das contas, ela é pior, uma vez que há violência em toda parte, sem razão, sem sentido.
O que há é o estado de exceção permanente ao qual está submetida a população oprimida e desabrigada. O gesto de Haddad ontem, por exemplo, é um rompimento nesse ciclo de violência: diante da iminência de uma reintegração de posse violenta, a intervenção que a suspendeu e possibilitou uma interlocução entre as partes. Mas não foi uma intervenção miraculosa ou providencial, Haddad fez apenas e literalmente um gesto comum, desinterdidando o diálogo. O que pode ser o caminho para pensar uma nova política e sua gestão: atuar a partir daí.

Há inúmeras linhas de forças se tensionando nesse momento em São Paulo. Nada é simples como parece, mas há um inequívoco exaurimento político e social do atual modelo. Só há saídas movendo-se para fora dele, reconhecendo a potência criativa dos pobres e suas demandas pelas geração de direitos. A cômoda e sádica paz armada que manteve a violência latente pela última década foi-se — e não há, para o bem e para mal, mais volta.

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