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O oceânico e o poroso: Marina enredada no aberto

Por Murilo Correa, professor de filosofia do direito, na Navalha de Dali

marina

A #Rede ou arreda?. Eis a posição maniqueísta e ideológica que alguns têm pretendido impor como se fosse, esta, a única forma de pensar o cenário político atual no Brasil em relação à articulação de forças políticas que reemerge com o novo partido capitaneado por Marina Silva, e que bem pode ser o esteio para sua candidatura à presidência em 2014. No entanto, os maniqueísmos em voga – politicamente tão perniciosos quanto metafisicamente impotentes para pensar o concreto, que só nos entrega mistos –, como governismo/antigovernismo, manirismo/antimarinismo, partidarismo/movimentismo, não servem para pensar Marina. Ela parece ser muito mais uma criatura de umbrais que de contradições – e não se trata, tampouco, de dizer que não as tenha…

Forte e delicada, cosmopolita e regional, Marina e a #Rede querem fundir o mundo, mas sem fundá-lo: por isso, todo o neutro – que não é jamais imparcialidade negligente, mas ativo ensaio a fim de burlar o paradigma. Marina é barthesiana sem se dar conta quando diz que os partidos podem instrumentalizar os movimentos, não mais o inverso. Pode parecer desesperador ou arriscado, mas Marina está tentando amarrar um devir – quanto mais aguentará a democracia representativa partidária quando nossa indignação já não couber nas redes sociais? Que tudo isso possa parecer precipitado, pois partidos fisiológicos como PMDB, PSD, PPS e outros são bem-sucedidos eleitoral e estrategicamente, instrumentalizar um estado de coisas para justificar o impossível que um novo representa é usar as práticas que nós mesmos reprovamos com ideologia imobilista e conformadora.

A #Rede é porosa, o movimento é oceânico – não há, aqui, nenhum pós-modernismo retórico capaz de levar um pouco de força às figurais tristes e mortuárias de Baumans e Edgares Morins. Há, sim, uma radicalização democrática em que os movimentos penetram e informam as estruturas institucionais – eis o que quer dizer o oceânico e o poroso. E, no entanto, há as contradições e os perigos, de que são portadores todos os seres de umbrais, todas as almas que se abrem; hoje, as duas principais parecem ser as seguintes: 1) a base de financiamento da #Rede, que tenta se purificar, defende o financiamento público de campanhas, mas não exclui expressamente empreiteiras ou empresas potencialmente poluidoras (em 2010, a campanha de Marina recebeu recursos da Andrade Gutierrez, da Camargo Corrêa e da Suzano, papel e celulose); 2) Há, também, certa grita acerca do fato de Marina professar a religião evangélica, o que não agrada em nada à esquerda e a alguns importantes movimentos sociais; para alguns, isso poderia colocar em dúvida a possibilidade de desejáveis avanços no campo dos direitos humanos no Brasil. Contudo, considerando o que o governo Dilma tem feito em matéria de direitos humanos no Brasil – sendo ela ateia ou católica inconfessa, isso prova indistintamente o argumento – me pergunto se Marina, que já expressou ter uma posição tão republicana em relação ao respeito ao princípio da laicidade do Estado, é, de fato, uma ameaça a avanços que, com o governo ateu, agnóstico, não-religioso ou, no limite, católico-envergonhado, de Dilma, sofreram certo retrocesso que só não foi maior em virtude de certo protagonismo do STF em alguns casos capitais – deixando muito a desejar em outros muitos, igualmente capitais. Isto é, tudo tende, nesse plano, a continuar o mesmo: são os movimentos sociais que devem impulsionar as demandas e furar as estruturas – caso elas não sejam suficientemente “porosas” para deixar passar o “oceânico” de que tais demandas provêm.

Que, por ora, restem inconclusas essas duas grandes e precárias questões sobre Marina e sobre a #Rede, é preciso deixar ressoar, dela – como de qualquer outro movimento político –, aquilo que constitui abertura e radicalização democrática. Tentemos, em um sentido muito compreensivo – deitados ou não na #Rede de Marina –, efetuar aquilo que se insinua no por vir com nossas próprias forças – é a partir de nossas próprias trincheiras que travamos nossas guerras de guerrilha.

Eis o que há de tardiana e inventivamente mimetizável  no gesto de Marina, porque é precisamente isso o que faz Marina, enredada em seus umbrais – como estamos, também nós, enredados nos nossos. A maior força de Marina é seu apelo, seu chamado heroico, obscuro e indeciso, como convém a toda alma mística. Não compreendam mal: como em Bergson, Marina é mística independentemente de conteúdos de crença; nesses termos, ela é, também, evangélica – como a própria democracia -, mas unicamente na medida em que seu apelo provém do universal, do imanente e do concreto que a própria vida, porosa e oceânica como o movimento ao qual Marina dirige seu apelo, descreve no fundo inaparente das formas de vida.

Talvez eu não vote em Marina: isto não é um compromisso, nem uma declaração de voto. Esta não é, sequer, uma defesa de Marina; é uma defesa do aberto que – para além de todos os conteúdos acidentais e inessenciais – ela inspira: algo da ordem do supra-intelectual. E o élan vital que Marina nos faz aspirar, e que faz transpirar no corpo aberto do mundo e das formas de vida por vir, é divinamente ateu.

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