Por Rociclei Silva
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Na quinta feira, 20 de junho, a multidão tomou de assalto a Avenida Presidente Vargas, no centro do Rio de Janeiro, transformando-a em um mar gente. A violência da polícia militar contra os manifestantes levou aqueles que nunca haviam sofrido ou presenciado sua forma de ação covarde, selvagem e desumana ao pânico. As redes sociais foram tomadas por fotos, relatos e vídeos de pessoas perplexas diante do que presenciaram ou sofreram. Muitos viram um caveirão, ao vivo, pela primeira vez. Mas uma frase me chamou atenção nas redes sociais: “O Bope transformou Lapa, Centro e Catete num inferno”. E eu pensei comigo: não, vocês ainda não viram o inferno, e não sabem do que eles são capazes.
Cinco dias depois, as minhas palavras se concretizaram na favela da Maré. Após uma manifestação pacífica, o Bope invadiu a favela atrás de traficantes que estariam infiltrados entre os manifestantes e que faziam arrastão na Avenida Brasil e fez da favela da Maré o inferno na terra, tal e qual descrito por Dante Alighieri. O Bope reproduziu, com riqueza de detalhes, a obra do artista italiano. É preciso lembrar que a obra Dante é uma alegoria através do conceito medieval de Inferno, mas que se encaixa perfeitamente nas ações medievais do Bope com armas contemporâneas. Após 24 horas de operação, a obra estava concluída, tendo como pano de fundo um mar de sangue e corpos estirados. Violações de todos os direitos, inclusive da vida, humilhações, cárceres, assassinatos, violações de todos os tipos exercidas pelo estado.
De acordo com a descrição de Dante, o inferno é destinado aos glutões, hereges e fraudadores. Mas na maré os condenados, sem direito algum à defesa, são pobres, precários, informais, negros, pardos e nordestinos sem nome, identidade e direitos, desprezados pelo estado e outros seguimentos da sociedade. Após a barbárie, acho que a visão do inferno do poeta inglês John Milton, cujo poema épico Paraíso Perdido retrata o inferno como “uma grande fornalha” cujas chamas oferecem “nenhuma luz, mas sim escuridão visível” retrata melhor o quadro de genocídio imposto a Maré por homens de preto. Homens que tomados por ódio saem da favela deixando para trás seu rastro sujo de sangue e horror cantado em verso e prosa em suas mórbidas canções. Rastro que deixa marcas no corpo, mas principalmente na alma e todos aqueles que ali vivem. E saber que o lema da corporação (Polícia militar) é “Servir e proteger”. Fica uma pergunta: servir e proteger a quem?
Diante de toda essa barbárie o que fazem? É preciso sair do discurso, fazermos com que nossa indignação ultrapasse as palavras e se transforme em ação. Quantos infernos ainda serão criados? Quantos corpos inocentes ainda cairão? É de nossos bolsos que saem o dinheiro que mantém tal corporação. Até quando esperar ?
Mas a Maré não se cala e muito menos se entrega porque é potência. A potência da Maré é a potência e a riqueza dos pobres em insistem no ser, na conservação da vida que se torna desejo potente e não pode mais ser reprimido. O vazio da dor e do sofrimento se transforma em escolha de vida e libertação. Na Maré e em outras favelas a dor não é elemento que conduz ao imobilismo. Ao contrário, ela é a força que incomoda, mas que estimula a luta, a ação, a cooperação e que veste a vida e não a desnuda.
Como uma fênix a Maré renascer todo dia, a cada por do sol e afirmar a vida.
A Maré não renasce das cinzas, mas da vida, do desejo de viver e dizer “não”a morte superando miséria, lágrimas e o horror. A Maré é a vida que supera a morte a cada instante da vida, corpos desejantes.
Força Maré, não deixe que a fraqueza e covardia dos fracos tiranos que fazem da violência sua linguagem superem a força daqueles que fazem do amor a razão da vida.