Por Bruno Cava, no Quadrado dos loucos, em 4/2/14
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A cinco meses da Copa, o grito “Não vai ter Copa” voltou às ruas. Protestos que beiram a casa do milhar em algumas cidades voltaram ao noticiário. Em São Paulo, passou disso. Em pleno janeiro de férias escolares, no calorzão, gradativamente vão sendo retomadas as manifestações, num cenário onde paralelamente também têm ocorrido os rolezinhos, com alguns esboços de mistura.
No Rio, ainda tiveram dois catracaços na Central do Brasil, com a entusiasmada adesão dos usuários dos trens. Nessas ocasiões, as faixas, gritos, marchinhas, declarações têm sido claras: não queremos essa Copa. Desejamos mais, qualitativamente mais. O grito “Não vai ter Copa”, mais do que meramente contestar a forma de realização do megaevento, embute uma insatisfação maior, e bem concreta, com a partilha desigual da riqueza, o direito à cidade, a resposta dos governos aos manifestantes, e a sequência incrível de medidas autoritárias que não só vêm se tornando normalidade, mas também abertamente assumidas como tal.
Nesse contexto, “Não vai ter Copa” é uma formulação simples, com a legitimidade das próprias ruas de onde brotara em 2013, exprimindo bem a indignação, e aproveitando a oportunidade para polarizar um campo político saturado. O legado real está longe do prometido. Enquanto fábulas já estão sendo embolsadas pelas empresas de comunicação, hotelaria, cerveja, empreiteiras e a própria FIFA, os serviços à população vão de mal a pior. Quem usa transporte coletivo segue comprimido nos moinhos de gastar gente em que se converteram trens, ônibus e metrô. O trânsito de São Paulo ou Rio faz o tema da mobilidade urbana soar como uma quimera. Quem tenta marcar atendimento no sistema de saúde (público ou privado) sabe como, sem jeitinho ou liminar, só nas calendas gregas. Pra piorar a situação, ainda têm faltado luz e água em bairros distantes do centro, às vezes por semanas a fio sem qualquer solução. E a passagem ainda vai aumentar de preço…
Além de obras de efeito cosmético, o legado tem sido ainda mais remoções de moradores de favela, como da Metro Mangueira, perto do Maracanã, no começo de janeiro. Mais leis de exceção, exigidas pela FIFA e patrocinadores, e comemorada por quem está faturando com os grandes negócios da Copa. Mais compras bilionárias de equipamento bélico antiprotesto. Mais operações de “choque de ordem” contra camelô, sem teto, dependente químico, artista de rua, e qualquer um desrespeitando uma “postura municipal”. E ainda mais brutalidade policial e racismo de estado, em todas as vezes em que é acionado.
No mês passado, Fabricio, um manifestante paulista, levou dois tiros da PM-SP, que nem deveria estar portando armas letais para fazer esse tipo de serviço. O segundo tiro foi de “castração”, contra a área genital. Nos dias seguintes, um dos advogados de Fabricio foi ameaçado de morte. Apenas um caso numa série de abusos. Em São Paulo como noutras cidades, o protocolo de ação policial continua imprevisível, com ataques indiscriminados e um desrespeito ostensivo dos direitos, por vezes acompanhado do sarcasmo das autoridades que deveriam, em primeiro lugar, respeitá-los. O que tem sido, de longe, a maior violência nas manifestações. Tente falar aos agentes do estado em constituição, democracia, direitos, ou se apresente como jornalista ou advogado numa manifestação, para entender do que estou falando.
Outro legado relevante foi a formação de uma “esquerda antiprotesto”. Ela está encabeçada pelo politburgo petista, incapaz de ler a conjuntura porque perdeu as interlocuções e o contato com o mundo real do trabalho e das lutas. Nomes como Miguel do Rosário, Wanderley Guilherme dos Santos e até a filósofa Marilena Chauí não arredam da arrogância da tese da manipulação pela direita. É a versão petista da conspiração judaica. Os manifestantes seriam idiotas úteis a serviço da direita. Seriam politizados de menos: alienados, niilistas, infantis; ou politizados demais: esquerdistas, anarcoides, voluntaristas. O rendimento principal da maior mobilização democrática da história recente seria, singelamente, melar a reeleição de Dilma e o projeto do PT para o país. Nunca vi tese mais autocomplacente.
Mas essa não é só ainda outra versão do esnobismo à esquerda, pra quem fora da razão do partido não podem existir elementos de estratégia, organização e autonomia. A tese do golpe da direita é também uma pegadinha. Se colar colou: no fundo não é que sejam contra manifestações de direita, são contra manifestações tout court, uma vez que estão confortáveis em lugares de poder. Assim eles também prestam um serviço importante: forjar uma consciência tranquila, necessária para alguém que se considere à esquerda do espectro ideológico consiga partilhar lençóis com o fascismo mais descarado. Nenhuma Pax Romana poderia sobreviver sem a boa consciência daqueles que, sinceramente, acreditam na causa — como se viu muito bem, por exemplo, com o sumiço de Amarildo e tantas outras Amarildas e Amarildos, ao ser explicado por uma antropóloga entusiasta da política carioca de pacificação como consequência dos protestos, e não uma de suas causas.
Debaixo dessa capa mais orgânica, tem também um bloco de blogueiros chapas-brancas que, ansiosos por justificar a própria mesada, exacerbam a crítica antiprotesto para acusar o movimento de “terrorista” e clamar pela ABIN, a Força Nacional e a Polícia Federal. O acting out dos fiéis comentadores desses blogues não difere muito daqueles que estamos acostumados a ver nos sites reacionários, só que lá a tese invertida fala em golpe comunista e totalitarismo petista por trás das jornadas de junho. Dois sinais da mesma coisa. Seria necessário retomar o método lento e seguro do PT e do governo que, ao fim e ao cabo, favorece aos pobres, ao “cidadão comum”. Sabe-se lá por qual enquete sociológica da noite para o dia, e contra toda a evidência, concluíram que os manifestantes são “coxinhas” — e não os próprios pobres que estão tão seguros de representar. Não admira quando a dura verdade venha à tona, reclamem de ingratidão. É a síndrome do marido traído. Só falta dizer que os pobres são egoístas.
A prepotência aí já bateu então no teto. Não só se consideram o alfa e o ômega da verdadeira esquerda, como invocam a figura da pobreza para justificar suas “maldades” de estado. Esse “cidadão comum” participaria de um histórico conservadorismo de fundo da política nacional (André Singer, em Os sentidos do lulismo). O “cidadão comum” preza diligentemente pela ordem e progresso contra a baderna, o caos e o esquerdismo, e é por natureza de direita. Ele só quer trabalhar em paz e que os políticos não roubem. Contudo, fora de faixas estatísticas e pesquisas de opinião, esse “cidadão comum” não existe. O elogio do homem ordinário costuma esconder o fato que quem o elogia, imediatamente a seguir, passa a falar em nome dele, e se justifica por meio dele. Toda vanguarda precisa de seu próprio povo fantasmático. Mas quem é ele? Como brincava um antigo professor que tive: o homem médio é aquele que casa com a mulher honesta… O mundo novo acontecendo no Brasil é o inverso disso: a chance de desejar e, desejando, querer desejar ainda mais.
Em 2014, com Dilma e o PT polarizando com a campanha “Vai ter Copa”, as nuvens começam a abrir. Estão realmente comprando uma polarização que, talvez, apenas em parte, acabasse atingindo o seu governo e as chances de reeleição. Estão comprando uma polarização de um movimento que, talvez (será muito otimismo?), pudesse requalificar o próprio governo e o PT. Em 2013 (posso falar sobre o Rio), a presidenta não esteve no foco dos protestos em nenhum momento, apesar de não ser poupada. A queda dos índices de popularidade foi geral, visto que toda a máquina representativa tinha sido colocada em xeque. Mas, lápis na mão, se podia anotar como o governador Sérgio Cabral era citado vinte vezes mais; o prefeito Eduardo Paes, pelo menos o dobro ou triplo. As pautas se condensaram, sucessivamente, em temas como a desconstituição das polícias, investimentos em saúde e educação, fim das políticas de gentrificação, militarização de favelas e “choque de ordem”, sem falar no apoio à greve dos professores — nada diretamente associado a um “fora Dilma”. E nada do que pudesse sequer aparentar alguma direção política da direita. A direita aliás, o dito PIG, esteve na ponta-de-lança da criminalização dos movimentos e grupos auto-organizados nos protestos, com destaque para a capa “histórica” do Jornal O Globo, de 17/10.
A se pensar por quem não quer, à semelhança dos comentadores autômatos, ficar falando apenas para os seus cupinchas, já previamente convencidos da verdade do enunciado.
De qualquer forma, o melhor legado que a Copa pode trazer está na capacidade de contornar a esquerda antiprotesto e, — contra todas as tentativas de amedrontar, ridicularizar e desmobilizar, — organizar manifestações, redes e movimentos de novo tipo à altura dos desafios e problemas que os atuais governos não podem, não conseguem ou simplesmente não querem sequer colocar seriamente em pauta.