Por Samuel Braun, para o dossiê UniNômade das manifestações
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Em maio de 2013, me recordo claramente de uma conversa em que meu interlocutor falava como estava desiludido com a política brasileira, como nem os casos de corrupção imprimiam mais impacto suficiente para alguma mudança de cálculo ou curso dos aparatos de poder (partidos, instituições, políticos) e como era inescapável a situação em que a máxima politização te levava ao limite de desacreditar em todo o sistema político, como não-representativo. Me recordo bem, naquela conversa, ter dito que a armadilha estava neste modelo que naturalizamos como único, que bastava olhar para fora das alternativas canonizadas para que uma infinidade de alternativas se abrissem. Meu amigo então, por mais indignado que estivesse, exclamou com um misto de medo e reverência: “golpe!?”.
Passados alguns dias, o cenário aparentemente sem novidades me arrasta para as ruas em passeatas de menos de mil pessoas, segundo uma pauta que as forças políticas tradicionais tentam confinar a guetos. “É só o pessoal do Passe Livre”, me disse um companheiro, ao vermos e considerarmos participar. Decido ir e conhecer um movimento que sempre apoiei apenas “espiritualmente”. Não é preciso relembrar que, em menos de duas semanas, 1 milhão de pessoas estavam ali protestando.
Origens
Mas quais eram suas razões? Seriam outras as razões que levaram diversos movimentos sociais a apoiarem o MPL no início de junho? Trabalhos de fôlego têm sido produzidos para responder, eu mesmo me empenho em tentar embasar bem uma resposta, com profundidade e espaço para não deixar muitas pontas soltas, mas é possível resumir tudo numa sentença com algum grau de plausibilidade: as indignações individuais comunicavam-se em rede, possibilitando a percepção simultânea de 1) identidade no sofrimento de injustiça e 2) força para enfrentar tais injustiças, ao mesmo tempo em que deixavam claro que a mediação política institucional não só não se dispunha a canalizar a luta, como também servia para aprofundar as injustiças. Assim, a tão falada irrepresentatividade era ao mesmo tempo causa e consequência, não se tratando de um desvio do foco, mas da própria razão da existência de grande parte da adesão aos protestos.
Métodos
Desde logo, as manifestações tinham consciência que pautavam pela esquerda aquilo que as instituições políticas, mesmo as ditas de esquerda, não estavam mais dispostas a realizar ou defender. Movimentos com mais tempo de existência, como o MPL, bem como diversos outros em defesa de moradia, das mulheres, da diversidade sexual e de gênero, estavam conscientes do papel que desempenhavam, por fora do jogo eleitoral, militando numa seara em que partidos e sindicatos eram incapazes de chegar. A soma de novas narrativas e agentes sociais apenas amplia o espaço que eles já construíam, suprindo lacunas existentes no contrapoder.
É comum associarmos partidos, sindicatos e organizações de chancela estatal como meios de luta (pior, únicos) para se enfrentar o capital expresso no poder do estado. Para além das centenárias discussões sobre isso, é preciso atualizar este conceito reconhecendo que no fundo, atores políticos que conformam a rede de poder político, por mais que sejam capazes de brechas progressistas, ainda se configuram como instituições dentro da rede de poder, sujeitos aos limites desta, às lógicas de ação desta, permanecendo assim, em constante contradição entre objetivos e práticas. Entretanto, movimentos sociais independentes e autônomos sempre foram agenciamentos capazes de criar sua própria lógica de ação, e por isso mesmo costumeiramente chamados de “irresponsáveis”, “improdutivos” ou “inócuos”. O que se está criticando, no entanto, não é propriamente alguma “representatividade” ou “eficácia”, mas a acomodação desses movimentos de luta segundo lógicas e funcionamentos institucionais e estatais que, em última instância, não interessa aos próprios movimentos. De fato, não havia a intenção de ajustar-se dentro dessa “responsabilidade”.
Nesse sentido, o ciberativismo, o midiativismo, os fóruns horizontais populares, as táticas de protesto e outras dinâmicas que se somaram às lutas contra a opressão (não somente a exploração) não podem ser realmente tomados como produtivas para o jogo democrático enquadrado pelo sistema representativo atual. Elas são todas dinâmicas que constrangem, afrontam, questionam não apenas a face visível da dominação capitalista, mas toda a sua rede de poder, disfarçada pelo manto ideologizado de isenção e representatividade, seja na mídia ou nas entidades políticas com assento à mesa.
A importância dos novos atores na teoria
Qual a importância então destes “novos” agentes capazes de produzir a ação social? Eles são capazes, em primeiro lugar, de agir no limite da afronta ao hegemônico, atuar com propostas e táticas que ao mesmo tempo que criam embaraço às instituições de controle social, também se arriscam na borda da legitimidade social, aquela do “senso comum”. Não à toa, são reprimidas com ódio por um componente à direita disperso pela população, e defendidos com timidez e constrangimento por quem, à esquerda, permanece preso aos cálculos pragmáticos, associado à estrutura de poder dominante. Movimentos de ocupação sem teto, sem terra, movimentos feministas e outros autônomos são bons exemplos disto que comumente são chamados de “radicais”.
Segundo lugar, e mais importante, por agirem descompromissados diante a engenharia de poder existente, são capazes de criar um simulacro dessa mesma engenharia, por fora da área de influência e domínio das redes de poder. A criação de alternativas se torna uma verdadeira instituição de mecanismos democráticos paralelos, baseados numa lógica que escapa à hegemônica e se baseia diretamente naquilo a que se propõe, e não como um meio para atingir um fim capitalista. Ou seja, um midiativista não ambiciona lucros ou receitas com o número de patrocinadores e expectadores, mas sim a comunicação de uma imagem, a narrativa de um fato, o objetivo declarado é exatamente o intentado, não apenas um embuste para o objetivo único do modelo hegemônico: o lucro.
A isso poderíamos chamar de reinstituir o poder, pois empodera aqueles que estão submetidos à dominação das redes de poder imaterial. O exemplo dos midiativistas serve também para os ciberativistas, que desconstroem o monopólio de informações, expõem as informações ocultadas, quebram as patentes das tecnologias que servem para dominar. Serve também para os fóruns populares que, num movimento de retorno ao sentido original, faz democracia se livrar do paradoxo da representação, este que alienou o povo de seu governo, para recolocar como central a liberdade e a igualdade. E poderíamos citar também os advogados ativistas, os agentes de saúde e socorro sociais, os militantes de defesa da violência estatal, e por aí vai.
A repressão e a política do medo
Entretanto, o universo de alternativas que se foi constituindo presumia, por óbvio, uma reação virulenta da rede de poder hegemônica. Essa reação vem sendo tentada e calibrada desde a primeira hora. A tática é sempre desconstruir o novo como criminoso e pernicioso e, no limite, pô-lo em dúvida e se apresentar como a área de conforto e segurança, ao redor do que já se conhece. Primeiro, era o incômodo por causa dos “desocupados que atrapalhavam o trânsito”. Ao se tornar ineficaz esteo discurso, foi descoberta a versão que pegou e que, desde então, tem sido aperfeiçoada: trata-se de “minorias violentas”. O apelo ao incômodo não bastou, foi necessário o terror psicológico, o uso do medo. Mas o medo é uma emoção pouco controlável, devastadora, que pode fugir ao controle. Ele paralisa, mas também é o maior combustível para a ação.
Refinado até chegar à atual narrativa, segundo a qual as “minorias violentas” já não constituem um grupo quantificável e identificável, mas uma sombra à espreita, difusa, um espectro que pode se confundir com todos os que se manifestam, como um todo. As manifestações, nessa narrativa, ficaram no passado: um mero episódio histórico romantizado, relegado ao folclore do país. O que “restou” do movimento de protesto e quem continua protestando não passaria de uma malta de falsários, aproveitadores e criminosos.
Este discurso serve a dois propósitos: 1) impedir qualquer possibilidade de o movimento iniciado em junho de 2013 se consolidar como um grito de repúdio total ao sistema de governo e da organização social existente, e 2) tornar sua repetição impossível, criminalizando as formas de agenciamento que o criaram. E quem se beneficia disso não são apenas os taxados conservadores no diapasão político-ideológico, mas também quem, de alguma forma, prefere e se beneficia da atual organização social. Isto é, também a esquerda institucionalizada.
O papel da esquerda
Assim, retomando a pergunta espantada de meu amigo ainda em maio: Golpe? Esta tem sido a interpretação da esquerda, no pressuposto que está no poder, que detém o poder, então deve se manter o que já tem. O que coloca isso em risco é considerado ameaça golpista. Mas, definitivamente a ideia de um golpe pelas manifestações, é uma visão politicamente errada. Porque, na realidade, a esquerda institucional não está verdadeiramente no poder. Longe disso. O poder constituído é que logrou êxito em integrar a esquerda, amortecendo a disputa, redefinindo regras para, não importando quem vença a partida, o jogo seja jogado segundo o tabuleiro do opressor. A questão das manifestações, portanto, não deveria ser colocada em termos de golpe (golpe é para que tudo continue como está), mas de atualização da luta por justiça social: por questionar as regras, o tabuleiro, os termos com que a disputa é colocada dentro do quadro institucional.
É preciso, portanto, que sejam descobertas formas de diálogo entre as forças que habitam a multidão e as esquerdas tradicionais. Pra começar, do lado destas, se espera pelo menos por a mão na consciência e fazer o gesto de interromper a escalada da repressão e criminalização contra os atores sociais e políticos em luta. As lideranças das esquerdas tradicionais, mesmo sob pressão, devem estar conscientes da escolha que estão fazendo: entre a carreira política individual dentro dos aparelhos de estado e seu jogo viciado de poder, e a ação coletiva e lutas por direitos, por uma democracia recolocada em outros termos, mais representativos dos verdadeiros desejos, anseios e indignações da multidão. Nessas lideranças, vale incluir desde a ex-guerrilheira que elegemos presidenta, os parlamentares que se definem mais à esquerda, até cada militante cuja atuação se dê dentro do campo de esquerda ou socialista.