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A arte de viver para as novas gerações

Por Fabricio Undr, cineasta | Fala na mesa “Fazer multidão, devir instituição”, no seminário QUEREMOS, apresentada no Rio de Janeiro, em 14/11/2014

Enquanto a esquerda, ou as esquerdas estão reconstruindo as suas identidades fragmentadas; as iniciativas autônomas e informais — não institucionalizadas ou institucionalizáveis em si mesmas — antecipam modelos do porvir e reimaginam pactos sociais: as novas instituições do comum em devir.

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As competências da política frente às exigências do real

Há várias multidões na multidão, sabemos, e talvez o conceito de multidão traga em si uma crise, especialmente quando aplicado ao Brasil, e mais ainda ao Brasil de agora (um agora que se delineia do lulismo para cá), um país em explosão liberal (ideológica) cujo pacto social cristaliza, no verniz de nossa história, seus dilemas, inquietações e limites. Se as nossas estruturas institucionalizadas – sobretudo políticas – não correspondem adequadamente às exigências da multidão, a multidão não consegue modificá-las adequadamente em relação às suas variadas e múltiplas exigências: as últimas eleições presidenciais, tão conflituosas, revelam e refletem esse fracasso, tornando mais agudas e gritantes as contradições na esfera política institucionalizada. É sobre esse fracasso que reflito aqui, enfocando, contudo, sua extensão, o alcance de sua vitalidade (sobretudo nas ruas, nas jornadas de junho) e seus efeitos que constituem uma (bio)política com formas próprias.

Segundo Albert Camus, autor que me orienta nesse texto, “toda crise histórica termina pelas instituições”, e cá estamos, num ciclo de debates, tentando entender a crise (sempre atual) não tão distantes da esperança de que os anseios que ela engendra e reflete se sintetizem numa força comum cujo êxito seria alcançar algum grau de efetividade política no sistema dado, o quanto antes e com eficácia, força pensada nos extratos das classes produtoras de análises e pensamentos políticos.

Em outras palavras, crise é riscos, e instituições são formas de controlar os riscos, inclusive para realizá-los politicamente na história. O que vimos nas ruas no auge das jornadas de junho? Impotência e potência, coesão e difusão, sucesso e fracasso, coerência e contradição. – Junho foi a um só tempo – penso (e essas leituras são parcialmente sobrepostas): “ondas dionisíacas de catarse política” (alguém disse isso e eu concordo); dissidência e revolta como uma forma de embriaguez dos corpos nas ruas; e também um esforço multitudinário de construir (ou constituir, ainda que enquanto zonas temporárias e autônomas) novos espaços de disputas, existências e exigências políticas. Nessa última leitura predominaram, e resistem predominando, os anseios de novos sujeitos políticos (quase sempre desvinculados das práticas políticas clássicas), que buscam tecer novas tramas sociais, compor novos emaranhados de interações descentralizadas, não-hierárquicas, emergentes. São, antes de serem projetos, ímpetos coletivos que antecipam modelos do porvir e reimaginam pactos sociais. O real, que faz exigências, está, ao mesmo tempo, em disputa e em construção – e em desconstrução, portanto – é um real enquanto devir propriamente revolucionário.

Recorrendo ao campo de minhas vivências propiciadas pelo fazer cinema independente, relato uma situação ocorrida logo depois que recebi o convite para participar deste Colóquio. Nessas eleições houve, na Bahia e em vários estados, uma mobilização de apoio à Dilma que chamaram de “O Cinema baiano está com Dilma”. Quando eu vi, fiquei muitíssimo incomodado. Questionei, através de um grupo no Facebook, os riscos de tal declaração que eleva o “cinema baiano” à condição de sujeito eleitoral. Não seria melhor dizer “cineastas baianos com Dilma”, mostrando a lista de assinaturas? (lista que até rolou, e foram muitas assinaturas). Meu questionamento foi ignorado olimpicamente, mas em privado, algumas pessoas falaram comigo e disseram que essa “instituição” cinema baiano era passageira, que eu compreendesse o momento eleitoral delicado. Eu já tinha compreendido, é claro. Um grupo institucionalizou temporariamente o cinema para que o cinema assumisse a condição de sujeito capaz de tomar posição “contra o retrocesso” e/ou em defesa de si mesmo, supostamente. O cinema, vejam bem, não uma entidade, uma associação, não, mas o próprio cinema, ainda por cima, baiano.

Nem tudo pode ser ou precisa ser institucionalizado, portanto, para ser eficazmente político. Nem tudo que fazemos ou pensamos politicamente é institucionalizável, embora muitos ações derivadas possam servir ou se ligar a instituições (míticas, políticas, éticas etc). Compreendi a ação daqueles que se fizeram a voz do “cinema baiano”: neste momento, na esfera da Cultura institucional no Brasil, existe uma relação perigosa entre a força do mercado em crescimento (e do financiamento governamental dedicado ao cinema em crescimento) e a falta de capacidade de implementar políticas eficazes, que contem a nossa história e legitimem nossas expressões e manifestações simbólicas, que, também, aconteçam com a insubmissão formal ou política e com a autonomia inerente à criação. Então, se há riscos a correr, nem sempre os caminhos a serem seguidos se esclarecem por si mesmos quando se trata de contextos eleitorais do momento. O risco do devir instituição é passar a combater os riscos que não interessam. Esse foi só um exemplo.

Esse impasse no âmbito cultural (das demandas públicas institucionalizáveis que necessitam se atualizar in concreto), de certo modo, se relaciona com o do campo político, ou se dá no interior dele. Só que no campo já demarcado da cultura institucional, trata-se de lidar com o já organizado, inclusive com os mercados. No caso da política, essa prática que envolve também as instituições (inclusive as instituições em devir), reclama, meio que ciclicamente, um salto histórico. E se a aclamada crise de representatividade é marcada também pelo anseio da multidão por novas formas e métodos de participação política, é nessa crise mesmo que nós encontramos tanto as dificuldades quanto as possibilidades todas, e as dificuldades saltam às vistas frente às possibilidades, porque é o que nos enfrenta primeiro (mas isso não nos desanima nem um pouco, é claro). De todo modo, o momento é propício para um salto: hora de aproveitar o gradual descrédito das totalidades e o crescente abandono dos grandes relatos modernos.

Já que se trata da necessidade de um salto histórico no âmbito da política, no sentido de fazer acontecer aquelas novas tramas sociais frente às exigências dessas realidades em disputa e em transformação, o meu ponto é:

A gente deve olhar para o que se está organizando e se constituindo frente a nós mesmos, com a gente no meio, e às vezes até à revelia de nós (nós como agentes imbricados nesse afã de pensar e tecer novas tramas sociais e políticas); precisamos prestar atenção ao que se está organizando e constituindo agora nas escolas, nas favelas, nos shopping centers, nos escritórios, nas praias em dias de semana, nos terreiros de candomblé e de umbanda, na casa da esquina onde rolam encontros semanais de capoeira, ou festas improvisadas, em suma, em lugares onde quer que haja gente vivendo sob as condições impositivas do sistema, se virando para fazer acontecerem as suas tramas, demandas coletivas e ações. O sistema requer muito da vida dessas pessoas que fazem esses acontecimentos, mas por isso mesmo – como disse Deleuze – quando a vida é objeto do poder, ela passa a resistir ao poder. Esses acontecimentos são, ao mesmo tempo, resistência e vanguarda em devir biopolítico.

É desse movimento de acontecimentos clandestinos em relação ao que é politicamente instituído que surgem as organizações, e não de debates nem de ciclos de conferências – embora esses eventos sejam imprescindíveis para o pensamento, a avaliação, e mesmo para a organização de novas institucionalidades e forças políticas constituídas. Surgem as forças motoras transformadoras mais desses acontecimentos do que daqueles que aplicam jargões e práticas de linguagens políticas estabelecidas. Mas o que há, o que está em devir, é um amplo movimento clandestino que apenas se agita e que nem sempre é visível (quem previu os rolezinhos?). Claro que tais movimentos não estão instituídos no sentido organizacional definido, nem podemos prever ou calcular os seus impactos culturais e sociais em termos de organização política, justamente por essa clandestinidade difícil de historiar e de perceber porque não estão fazendo parte de certo barulho imediato, nem se apoiam em modelo algum de nossas estruturas políticas clássicas nem nos métodos comuns de caráter reivindicatório.

Claro que essa constituição clandestina do comum surge apoiada primeiro nas realidades mais concretas e nada clandestinas, como as demandas profissionais, as dificuldades da comunidade, da favela, ou do bairro, da escola, as lutas por terra e por moradia, por direitos básicos constituídos, mas se estende até às necessidades do sambão semanal na praia ou numa praça da periferia, do churrasco comunitário na praia, nas conversas durante o tempo “perdido” nos congestionamentos dentro de ônibus lotados, espaços, enfim, onde transparecem a existência das pessoas e de sua relação com o mundo e entre elas mesmas, da substância da vida cotidiana. Quando esses sujeitos se organizam por alguma razão, o fazem de forma viva, sem nenhum romantismo ou ideal. Para essas pessoas, a política deve ser submetida a essas realidades vividas, à vida mesma, e a seus interesses práticos. Hegel falou algo de uma “tecedura silenciosa do Espírito”, expressão que é abstrata aplicada aqui, não deve se restringir a isso que falo, mas serve de referência. E esses interesses práticos, em termos de devir, nunca vêm sozinhos, nunca é sem consequência política. (Cabe, todavia, esse parêntese: é evidente que esses movimentos clandestinos não substituem nem depõem contra os movimentos organizados em lutas efetivas (como MSTS, MST e outros) cujos impactos e resultados também nunca se resumem – nem se reduzem – às suas demandas formais).

Essa viva movimentação clandestina está acontecendo agora, em muitos lugares, sobretudo nas cidades e nas metrópoles. Muitos já a vivem, desde o campo micropolítico, até os campos estético, erótico etc. em iniciativas que são concomitantes e paralelas, mas nem sempre se complementam ou se encontram, porque ainda não são integradas nem definidas, tampouco são articuladas em torno de uma ideia institucionalizável em si mesma.

Mas essa movimentação clandestina é sobre poder. No âmbito da cultura, desde as ressignificações da cultura hip-hop e do grafite, até os bailes funks, os grupos de capoeira ou maracatu, as primeiras raves, os já mencionados rolezinhos, tudo isso é sobre poder: subvertem lógicas de ocupação dos espaços urbanos, de determinações simbólicas de classes, de códigos sociais de controle, de descentralização de poder (as raves, por exemplo, reivindicavam o lema punk contra estrelas do rock, baseando sua música trance na figura do DJ e no remix, subvertendo o estrelismo de um artista e a instituição da autoralidade – embora depois tenha também gerado suas próprias estrelas).

Em suma, enquanto a esquerda, ou as esquerdas, estão reconstruindo as suas identidades fragmentadas, as coisas estão efetivamente acontecendo. Tudo muito desarticulado, é verdade, mas tudo funciona junto, ainda que de uma forma não de todo conhecida, a ser desvendada, inventada, fortalecida processualmente. E sem olharmos para isso, esses acontecimentos vivos que transcendem as estruturas e os modelos clássicos, não podemos contribuir com organização nenhuma.

Perspectivas

Considero o termo esquerda aqui a partir do lema que a define de forma geral: “um outro mundo é possível”, acrescentando que esse outro mundo não deve ser mais só possível, porque é necessário e inevitável, diante das tendências de desastre do sistema, seja ambiental, social e/ou político.

A esquerda, tradicionalmente, sempre formula um ideal para os excluídos, os malditos do corpo social, os pobres, os miseráveis, despojados do mundo produtivo que agora implica também o mundo simbólico. É previsível que a esquerda, historicamente falando, também tenda a submeter o indivíduo (ao ideal) e dele fazer um sujeito, ou mesmo fazer da multidão um sujeito, no sentido amplo.

Assim, vamos considerar que algumas bases no anseio de transformação e empoderamento político una a multidão, por exemplo: submeter a Economia à Política. Que formulações de realidades emergentes ou não devem conduzir a organização das forças políticas? Vamos pensar ainda que a multidão em vias de organização aprove como ponto de partida a noção de política como uma Força que serve de antídoto contra a violência que é o capitalismo. Que práticas concretas devem surgir dessa noção? O que seria então esse mundo do comum baseado numa luta de tão amplas possibilidades? E ainda que encontremos um vetor de comunhão, os povos ou grupos, cada um, podem aplicá-lo de formas adaptadas às suas próprias condições e necessidades e mesmo visões de mundo. Por exemplo, o que une, pensando em políticas institucionais e ações concretas, os guarani-kaiowá e os favelados da maré ocupada militarmente? Os ribeirinhos do Madeira de Jirau e os quilombolas do Rio dos Macacos? Além, claro, dos diversificados e complexos estratos da classe média urbana? – de certa forma, a gente não mapeou tudo, mas vimos que isso – essa convergência – aconteceu em certo nível nas manifestações. Mas e nas possíveis instituições?

Faço um adendo: a crítica usual do capitalismo e de nossa história política, embora seja uma crítica imprescindível e tantas vezes acertada, pode subestimar problemas mais essenciais (e aí precisaríamos avaliar e recompor aquelas exigências do real). Agora, em meio a tantos protestos, ações políticas e análises intelectuais e acadêmicas, ninguém sabe direito quais são os meios de pelo menos coibir aquelas tendências de desastre do sistema. Digo isso porque a forma como nos enxergamos (como classes? Ou como espécie? Como etnia? Ou como indivíduo em sociedade?) é fator determinante, não só para a forma e objetivos das lutas, mas para a identificação ou eleição dos problemas mais profundos, mais essenciais, a serem colocados e enfrentados.

Então, Institucionalizar o quê e como? Não estou certo sobre se o caminho é um partido, embora, talvez, um partido precise acontecer. Há quem diga, por exemplo, que o Podemos espanhol é fichinha perto do nosso partido movimento dos anos 80, o PT, que deu no que tem dado – mas sabemos que há controvérsias nisso também, pois trata-se de contextos substancialmente diferentes em vários campos de lá para cá no tempo e no espaço.

Seria eficaz, a princípio, constituir um movimento de movimentos capaz de assegurar a continuidade das lutas das multidões (inclusive aquelas que se realizem através de partidos); movimento, portanto, cuja maior competência seria a capacidade de incorporar sempre as novas experiências continuamente produzidas pelas multidões, em todos os lugares, instituindo estruturas contra a burocratização e a centralização de poder, e impedindo que seus mecanismos de luta sejam utilizados para a subida ao poder de novas minorias. (Martin Bubber, em “Caminhos da Utopia”, põe em tese correntes do socialismo utópico ou libertário, fundamentando a proposta de subtrair da política, o mais possível, as “funções do dirigir”, que devem ser limitadas às exigências circunstanciais, para que a direção não se converta em dominação. Não à toa, Bubber, enquanto pensador, estava mais interessado nas relações entre as pessoas do que em soluções institucionais).

Movimentos que, enquanto poder constituinte, – e aí eu vejo a razão da institucionalização em vários níveis – possam pensar e realizar estratégias efetivas para se contrapor a políticas localizadas efetivamente impostas (ou em vias de imposição) pelo poder constituído, quando tais políticas desvirtuam das demandas do comum, da multidão. Ou seja, para o enfrentamento teórico e prático dos abusos e injustiças impostas pela violência do Poder. No mais é uma luta pela construção de um espírito comum que se orienta pelo aprofundamento e radicalização da democracia, e valoriza a autonomia e autodeterminação dos indivíduos, grupos e povos. Tudo isso em meio ao capitalismo e à mitificação da democracia, que se expressa na democracia de mercado oligárquica (J. Rancière) e se constitui no poder do estado republicano, expressão mesma da dominação de classes.

O papel social das pequenas insurreições ou de iniciativas cotidianas de resistência localizada atestam as possibilidades contínuas de sínteses transformadoras que escapam dos escatologismos históricos, ligando-se mais aos ciclos míticos. É tarefa de mobilização permanente que, em si mesma e por seus efeitos e caminhos, combate novas burocratizações enquanto força autônoma, temporária e ativa, cujos resultados são aquelas reimaginações de pactos sociais – nem sempre prescindindo de rebeliões, nem sempre aderindo à revoluções historicistas. É devir não determinado, nem determinista – devir multitudinário que, ao interpretar, perceber e agir sobre o real – produz realidades.

A tarefa das lutas é permanente, portanto. É tarefa de Sísifos, recorrendo à imagem de Camus. Ou, recorrendo ao imaginário afroíndio, é tarefa exusíaca, de Exu, orixá cujo nome iorubá se refere etimologicamente à Esfera, simbolizando movimento. Em tempo, Camus diz que devemos imaginar Sísifo feliz. Exu a gente sabe como é.

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