UniNômade

A onda por vir

Por Renan Porto, UniNômade

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Com o afastamento de Dilma da presidência, as esquerdas compartilham um sentimento disperso de oposição contra Temer que não resultou em mobilizações significativas. O dissenso entre os apoiadores pregressos do governo Dilma e aqueles que, a pautar o #ForaDilma, preferem seguir a “via argentina” [1] do Fora Todos e/ou das #EleiçõesGeraisJá aprofundou a dispersão e a desmobilização. À cada medida antipopular do governo Temer, dilmistas lançam acusações contra aqueles que vinham se opondo ao governo do PT, como se os antagonistas à Dilma se tornassem apoiadores do presidente interino. Simplesmente pela menor intensidade de críticas ao novo governo. Embora não seja unânime, tem sido uma atitude recorrente porém inútil. Pragmaticamente inútil. Por outro lado, agora, não faz mais sentido criticar especialmente o governismo petista, essa prática contraditória de cobrar da esquerda como um todo um apoio ainda que crítico ao governo, ao mesmo tempo em que o blinda das críticas.

Ora, não há muito o que falar sobre Temer. Nenhuma parcela entre as esquerdas o apoiou diretamente, ainda que algumas tenham acatado, sem qualquer pudor, alianças com Temer ao longo da última década. A bem da verdade, nem mesmo a direita parece entusiasmada com ele. O #ForaTemer é óbvio para as esquerdas. Tão óbvio quanto a constatação que a situação trágica em que nos encontramos não começou há dois meses, com a instauração do processo de impeachment. Mas se hoje é óbvio o #ForaTemer, não era quando o PT ocupava a presidência em exercício. As coisas não pareciam tão claras. O petismo funcionou como um necromante para manter aparentemente vivo um defunto. Isto não significa que o PT seja igual ao PMDB. Pode ser até menos irresponsável quanto à adoção de políticas antipopulares, mas em compensação vinha conseguindo dissimuladamente acender uma esperança em parte das esquerdas. Parte que podia até chorar, com sensação de ter sido traída, quando o PT se metia na lama, mas que logo passava a celebrar qualquer aceno teatral do antigo governo em busca de apoio das esquerdas.

Quanto a Temer, é necessária agora uma nova onda opositora de protestos e mobilizações. Não faz sentido culpar a falta de crítica ou mobilização dos antipetistas quando também não está havendo mobilização de fato por parte dos petistas. Quanto aos que se opõem ao PT, também não é interessante ficar debatendo se convém ou não juntar-se à militância petista nas ruas. A rua é de qualquer um. É só chamar o #ForaTemer e o resto (#VoltaDilma ou #EleiçõesGeraisJá) fica para ser construído a partir da organização dos anseios sociais, que também podem se inclinar para outros rumos, além desse problema.

Se Dilma voltar, volta a tragédia. Um governo conservador e elitista, onde os ricos é que saem ganhando e os mais pobres seguem morrendo e sendo removidos de suas casas. Se tiver eleições gerais e tivermos a sorte de eleger alguém “menos pior” entre os possíveis elegíveis (Lula, Ciro, Marina), o máximo que o governo vai poder fazer é segurar a onda de retrocessos e dar uma maquiada na situação. Resta a velha questão de sempre: o que fazer?

Primeiro, não se desesperar com bobagem, por exemplo, como na proposta estúpida do presidente da Confederação Nacional da Indústria de aumentar a jornada de trabalho para 80 horas semanais. Não se volta ao século XIX numa única medida. Era outra organização social, outro modo de produzir, distribuir, comunicar, trabalhar etc. Não se podem reproduzir as condições de uma jornada de 16 horas hoje. Assim como não se retorna à ditadura militar numa única medida. Vivemos na era neoliberal, em que é fundamental a gestão contínua dos conflitos e liberdades, e da crise implicada neles. É um governo de controle flexível e administração dos riscos. A liberdade deve ser controlada porque é dela que o neoliberalismo depende para extrair o lucro. Netflix, Hollywood, Facebook, Google, academias, lanchonetes e bares, marcas de bebida e alimentos, empresas de tecnologia de comunicação, tudo isso para lucrar depende de margens de liberdade e da produção das subjetividades. Precisam delas como o vampiro precisa de sangue.

Essas discussões sobre a jornada de trabalho estão fora de perspectiva, servem apenas para fazer espuma (de um lado e de outro). Porque o tempo de vida hoje já está totalmente investido e explorado pelo capitalismo. O capitalismo já funciona (ou dis-funciona) 24 horas por dia, 7 dias por semana, colocando todo o seu exército para trabalhar, sem qualquer reserva. Todo o tempo está a serviço da produção, o lazer, o sono, a sexualidade. Inclusive quando buscamos nos qualificar para trabalhar, já que hoje a formação é permanente e infinita. Nossos próprios sonhos muitas vezes coincidem com os percursos do capital. Até a produção pré-individual, o nosso inconsciente, as associações semióticas que fazemos sem passar pela consciência, todo esse imaginário está atulhado de aparelhos e dispositivos de que o sistema precisa e suga. Toda a vida se tornou subsumida ao capitalismo e não há mais fora, de maneira que o tempo de trabalho vai muito além da questão da jornada. Como então criar estratégias para enfrentá-lo? É certo que não vai acontecer nenhuma tomada do Palácio de Inverno.

Os processos de lutas e insurreições, principalmente as ocupações, já conquistam terreno quando criam outra percepção e vivência do tempo. Outras temporalidades que trazem outras formas de vida. Um contra-investimento que também é uma recusa dos aparelhos capitalistas sobre a vida, além de intervenção direta para produzir e organizar-se de maneira diferente. Vamos aprender com os adolescentes das escolas ocupadas e não se deixar abater pela lamúria da esquerda. Um aprendizado que pode ajudar a fazer renascer um ciclo de lutas, para além das dispersões e desmobilizações. Como disse Toni Negri: “deve haver uma maneira de reconhecer a derrota sem sermos derrotados” [2].

 

NOTAS

[1] – Ref. ao Que se vayan todos, dos protestos na Argentina entre dezembro de 2001 e janeiro de 2002.

[2] – Antonio Negri, Anomalia selvagem, poder e potência em Espinosa. Ed. 34: 1993. p. 230.

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