UniNômade

Quando o antagonismo é mais intenso

Por Murilo Duarte Costa Corrêa, UniNômade

Tahrir

Em “A constituição do comum: antagonismo, produção de subjetividade e crise no capitalismo” (Revan, 2017), Alexandre Mendes e Bruno Cava inventam um dispensário político para nossos tempos. Se se quiser fazer justiça a esse livro que a jovem dupla apresenta em um tour nacional que começou em São Paulo e já atravessou sete cidades pelo sul do país em julho, seria preciso colocá-lo ao lado de um par de obras sobre o comum, também escritas a quatro mãos: Commonwealth (Harvard University Press, 2009), de Michael Hardt e Antonio Negri, e Commun (La Découverte, 2014), de Pierre Dardot e Christian Laval.

Embora A constituição do comum deva algo a esses precursores, e mais que Darot e Laval, Hardt e Negri sejam, ao lado de Alain Badiou, a referência incontornável, aqui, Alexandre e Bruno realizam integralmente a prescrição de Deleuze, que dizia que a dignidade de um texto depende de três tarefas: combater um erro, reparar um esquecimento e criar um novo conceito. A constituição do comum é a operação em forma de livro que restitui toda a dignidade filosófica, sem dispensar a consequente potência política, da tripla tarefa deleuziana.

Há uma série de erros a combater, e armadilhas a desarmar, mas é preciso começar pelo comum como avaliador das lutas reais. O diagnóstico que o comum permite é o de que se, por um lado, os levantes mundiais que tiveram lugar entre 2010 (Primavera Árabe) e 2015 (#nuitdebout, na França) contribuíram para acelerar uma nova composição da multidão, por outro, eles não foram bem sucedidos em escapar das armadilhas que tornam o comum uma presa das reestruturações dialéticas do regime que o controla e explora.

Os levantes brasileiros de junho a outubro de 2013 foram, sob esse ponto de vista, capitais. Segundo os autores, as “Jornadas de Junho” teriam sido o evento em que se tornaram palpáveis os antagonismos profundos entre um longo ciclo do comum – que se estende de 1994, com os zapatistas e com os protestos antiglobalização, até a ascensão de governos progressistas na América Latina, no início dos anos 2000 – e o ciclo curto, de 2010 a 2015.

Junho teria sido, portanto, o efeito de indignação, recusa e invenção do comum que exprimia o descompasso entre um excesso desejante do comum no curto ciclo, corporificado na difusão de pautas que marcou aqueles dias de Junho, e os processos ambíguos de sujeição e empoderamento dos pobres capitaneados por uma sempre mais esgotada esquerda progressista latino-americana. Junho foi o campo de experiências e a evidência cabal de que os desejos do comum não cabem nas dinâmicas conciliatórias dos convênios estruturais entre Estado e Mercado.

O erro a ser combatido é, pois, uma inversão da relação entre causa e efeito. Não apenas os levantes não geraram a crise; esta não é um mero efeito do capitalismo. A crise é fruto de um descompasso mais profundo entre os desejos do comum, seus devires, as potências sociais de criação, e a estatização que as esquerdas prometem como mal menor, ou a catástrofe social em que a austeridade neoliberal se especializou.

A crise não é um efeito do capitalismo; ela é a vida desse regime. A única crise que interessa é a que se instaura como efeito de uma redistribuição discreta dos devires do comum no campo social. Eis o que faz com que Alexandre e Bruno repitam sem trégua: “O comum só existe na ruptura”, “O comum é devir, não ser”. Repetição da diferença absoluta contra as armadilhas práticas da austeridade neoliberal, as reestruturações dialéticas da esquerda estatista e o esquecimento fundamental, que A constituição do comum repara: a conexão entre o comum e as lutas; não a sua história, mas o seu devir.

O conceito com o qual Alexandre e Bruno nos brindam, tanto como mapa das lutas infinitamente desdobrável quanto como caixa de ferramentas para constituir modos de vida em comum absolutamente outros, é o de comum como modo de produção biopolítico; isto é, uma ontologia do comum em que a política precede o ser. O comum: quando o antagonismo é o mais intenso

 

Murilo Duarte Costa Corrêa é Professor de Teoria Política da Faculdade de Direito e do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais Aplicadas da UEPG. Affiliated Researcher na Vrije Universiteit Brussel, na Bélgica, onde realizou estágio de pós-doutorado com pesquisa sobre a filosofia do campo social em Gilles Deleuze. Doutor (USP) e Mestre (UFSC) em Filosofia e Teoria Geral do Direito. Blogue: <murilocorrea.blogspot.com>

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