Altamir Tojal, jornalista
O olhar do mundo da política está em 2022 tentando interpretar e projetar o resultado da eleição municipal. Houve uma demonstração de cansaço do eleitor com a radicalização política e a polarização entre bolsonarismo e lulismo. A partir daí especula-se sobre uma frente do centro vitorioso e a renovação da esquerda. E não se descarta a suspeita de que o bolsonarismo pode recompor a sua força eleitoral apesar da derrota agora dos candidatos apoiados pelo presidente.
O cenário, portanto, não está claro à luz do resultado eleitoral lançada para o futuro. Mas, se lançada para o passado, para a linha do tempo de 2020, a luz desse resultado reflete na direção do futuro, mostrando uma tendência mais segura com relação ao maior desafio político do país que é o projeto autoritário e destruidor do bolsonarismo.
O que está em jogo no Brasil até 2022 não é simplesmente a disputa de lideranças e forças partidárias pelo governo. É a necessidade de conter a ação destruidora do bolsonarismo contra a democracia, as instituições, a ciência, a cultura e o meio ambiente e também de enfrentar as ameaças à saúde da população em razão do negacionismo, à segurança pública pela cumplicidade com as milícias e à economia pela irresponsabilidade política.
LÓGICA DA GUERRA
O presidente começou o governo em 2019 já em guerra aberta com as instituições e a sociedade, contando com suas redes de seguidores, simpatia de policiais e milicianos, alianças exóticas com conservadores radicais e liberais dos mercados, além do suporte de igrejas evangélicas e militares. Parecia acreditar que venceria nas múltiplas frentes que abriu simultaneamente contra o Congresso Nacional, o Supremo Tribunal Federal, a imprensa, os artistas, professores, cientistas, ambientalistas, sindicatos, movimentos sociais e identitários e quem mais fosse considerado inimigo.
Em 2020, porém, a resistência passou a ter efeitos. Bolsonaro esbarrou em obstáculos e teve de recuar e buscar o socorro de novas alianças. O ponto de inflexão foi o começo da pandemia da Covid 19. A atitude da sociedade, das instituições e da própria máquina do estado contrariou a posição negacionista de Bolsonaro. A blitz contra o Congresso, STF e imprensa foi contida graças à mobilização da sociedade e à reação das instituições. Houve recuo nos atos antidemocráticos e campanhas de fake news, que viraram caso de polícia.
O presidente perdeu os seus ministros mais populares, Moro e Mandetta, e auxiliares militares, alguns dos quais passaram criticá-lo. É verdade que ele avançou na influência sobre a Procuradoria Geral da República e a Polícia Federal e no aparelhamento de outras áreas do estado. Mas, há algumas semanas, o próprio comandante do Exército se manifestou ‘contra a politização dos quartéis’, o que pode ser traduzido por ‘contra o aparelhamento das forças armadas’. Além disso, a derrota de Trump deixou Bolsonaro mais isolado no mundo e mostrou o quanto é potente o voto democrático sustentado na mobilização da sociedade.
PRESSÃO DAS INSTITUIÇÕES
Desde meados do ano o presidente teve se socorrer nos partidos do velho Centrão, cedendo cargos e verbas para não ter o seu governo inviabilizado no Congresso e se defender de processos de impeachment. Agora a coligação de partidos do Centrão está entre os principais vencedores desta eleição municipal. Certamente vai vender ainda mais caro o apoio ao governo e provavelmente abandonará o barco se o presidente perder popularidade. E dificilmente terá motivos para apostar numa investida autoritária de Bolsonaro.
A derrota nesta eleição é, portanto, para o presidente mais um episódio numa sequência de obstáculos e desgastes políticos. Além dos recuos que teve de fazer em várias frentes, o presidente continuará sob pressão das instituições que seguem em alerta contra as ações antidemocráticas, as redes de fake news e o negacionismo genocida. E será cada vez mais cobrado pela destruição ambiental, pelos desastres administrativos e também pelas acusações criminais que pairam sobre seus filhos e colaboradores próximos.
Bolsonaro também não parece ter respostas convincentes para a saída da crise social e econômica provocada pela pandemia. O desemprego alcançou o recorde de 14,6% em setembro e instituições financeiras projetam mais de 16% para o começo de 2021, mesmo considerando o aumento de contratações formais em outubro passado e a expectativa de início da vacinação contra a Covid 19. A taxa de informalidade ultrapassou 38% também em setembro. Neste cenário de vulnerabilidade social, presidente embarga a renovação do auxílio emergencial para os mais pobres com o argumento de limitações fiscais. O cenário para as pequenas e médias empresas segue ameaçador. E até agora não houve acordo no Congresso para a aprovação de matérias relacionadas ao orçamento do ano que vem.
APOSTA NA NEGOCIAÇÃO
Enquanto isso Bolsonaro e seu governo seguem produzindo conflitos e desconfianças, como as declarações contra a China, maior parceiro econômico do país, e o apoio a Trump na negação da vitória de Biden, além de estimular desconfiança sobre pesquisas e o uso de vacinas no país. Há também a campanha contra as urnas eletrônicas e o sistema eleitoral brasileiro, um prenúncio da atitude de contestação do resultado que poderá tomar se perder em 2022.
Nesse ambiente, o resultado da eleição municipal, com a vitória de candidatos moderados e partidos de centro, parece revelar, ao menos nas grandes cidades, uma aposta na habilidade de negociação, no equilíbrio e na redução de conflitos. A vontade é de que os políticos eleitos sejam capazes de somar forças para enfrentar desafios cada vez maiores, não só a pandemia como a crise econômica e social, além da precariedade de serviços públicos comum à maioria das cidades do país.
Não se pode esperar tanto, é claro, da vitória de políticos do Centrão que dominam há décadas, com práticas mafiosas, milhares de pequenos e médios municípios, principalmente no interior do país.
No mais, como é normal nas escolhas municipais, o eleitor votou de olho em agendas locais, procurando gestores mais capazes ou menos incompetentes, conforme as opções que se apresentaram em cada lugar.
REJEIÇÃO AOS PADRINHOS
As pesquisas que apontaram rejeição aos velhos e novos padrinhos políticos foram confirmadas na maioria das cidades. Não só foram derrotados os candidatos apoiados por Bolsonaro, cuja rejeição eleitoral passou de 60% segundo algumas pesquisas, mas também perderam os apoiados por Lula, com rejeição eleitoral acima de 50%. Este desgaste também alcançou Ciro Gomes (PDT), o outro cacique da esquerda, que teve de suar a camisa na eleição do seu candidato em Fortaleza, sua base eleitoral. E o governador de São Paulo, João Dória (PSDB) teve de apagar o seu apoio para não prejudicar a campanha de seu principal afilhado, Bruno Covas, reeleito prefeito da capital.
O voto desta vez pode ter mostrado suspeita e desencanto com relação a rupturas, a propostas radicais e a líderes e partidos que desonram seus programas e promessas. Pode ter sido dado um recado à política das agendas ocultas da esquerda tradicional e da extrema direita. A radicalidade fake de Bolsonaro e Lula talvez não esteja mais bastando para convencer o eleitor, a não ser as bases de militantes que não percebem ou não querem perceber que as práticas políticas dos dois líderes correspondem ao oposto do que apregoam.
No vácuo de Lula, dois líderes mais jovens da esquerda, Manuela D’Ávila do PCdoB, em Porto Alegre, e Guilherme Boulos do PSOL, em São Paulo, não alcançaram a vitória, mas fizeram bons resultados. Têm o desafio e a oportunidade de renovar a esquerda sem a hegemonia do PT e poderão reunir outras lideranças, algumas vitoriosas como João Campos do PSB, em Recife, e também se aproximar de outros partidos como o PDT e a Rede.
CONTAGEM REGRESSIVA
Do Centrão não se pode esperar que renuncie à sua natureza. Vai continuar leiloando o seu apoio circunstancial. Mas o centro político com nuances mais a esquerda ou direita, que também ficou fortalecido nesta eleição (PSDB, DEM e parte do MDB), terá a obrigação de não decepcionar o eleitor dando resposta imediata e satisfatória à população e ao mesmo tempo constituir uma frente capaz não só de enfrentar o bolsonarismo na próxima eleição mas também e primordialmente de conduzir até lá o dia a dia da gestão pública em suas cidades, das negociações no parlamento e do diálogo com a sociedade.
De Bolsonaro também não se pode esperar que renuncie à sua natureza de pretendente ditador. Cabe, portanto, aos amigos da democracia perseverar na crítica e na mobilização para que seja contido na sua ação destruidora e recue do projeto autoritário até que seja zerada a contagem regressiva do seu governo com a derrota em 2022 ou antes disso se for encurtado o seu mandato por um impeachment caso tente ultrapassar os limites da Constituição.
O resultado desta eleição pode ter mostrado, numa interpretação otimista, que o vírus autoritário do bolsonarismo vai produzindo seus anticorpos, ou seja, a rejeição da antipolítica, do preconceito e da indiferença pelos mais vulneráveis.