Por Bruno Cava, 07/03/2023
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Deve-se evitar qualificar uma guerra. Por exemplo, expressões como “guerra sangrenta” ou “guerra mortal” são imediatamente pleonásticas. A guerra é o emprego racional da força bruta em níveis extremos, como padrão: o substantivo já contém em si uma infinidade de adjetivos. O arcabouço do direito internacional público, as convenções de Genebra, a própria disciplina militar não passam de atenuantes diante de uma realidade que se resolve no máximo desencadeamento da violência contra a vida.
Mesmo assim, quando você coloca uma guerra na lupa, não pode evitar que apareçam situações que poderiam ser tiradas de livros distópicos ou filmes de horror psicológico. O leitor tome como exemplo o ataque em curso das forças russas contra a cidade ucraniana de Bakhmut, um dos pontos mais quentes do front do Donbas.
Há seis meses, Putin vem amargando derrotas contínuas em diversos cenários operacionais na Ucrânia. Neste inverno do hemisfério norte, a esperada ofensiva russa tem sido mais uma derrota estratégica. A ofensiva em si não foi nada mirabolante, se resolvendo numa intensificação geral das investidas do invasor por todo o Donbas, uma linha de atrito com cerca de 1.000 km de extensão. Novamente, não funcionou. Só na batalha de Vuhledar, as forças armadas russas perderam mais de cem tanques e tiveram milhares de baixas. Apesar dos anúncios grandiloquentes, não houve avanços significativos da Rússia, que não tenha sido avanço na taxa de perdas humanas e materiais.
Menos na cidade de Bakhmut, no centro da linha de contato, sob assédio pela Federação Russa desde maio do ano passado. Nesses dez meses de assalto ininterrupto a Bakhmut, os atacantes destruíram quase tudo, arrasaram com a cidade e seus arredores, não deixando pedra sobre pedra. A população civil caiu de 70 mil antes da guerra para os atuais 4 mil habitantes, que vêm sobrevivendo em refúgios, debaixo da terra, e agora estão sendo paulatinamente removidos pelos ucranianos.
Finalmente, parece, as tropas ucranianas vão ter de realizar uma retirada ordenada, e os russos devem tomar a cidade. Talvez não aconteça amanhã nem na semana que vem, mas a retirada está se tornando inexorável. É o que dizem os analistas mais qualificados. Bakhmut virou um bolsão de posições defensivas já cercado por três lados e os russos buscam fechar o quarto. Ou seja, se não se retirar, o exército ucraniano ali está ameaçado de sofrer um envelopamento e ficar sitiado.
Por que em Bakhmut os russos estão conseguindo penetrar na linha ucraniana, e no resto do Donbas não? Porque há uma diferença qualitativa na maneira como os russos estão conduzindo a guerra nessa fração específica do longo front de combates. Não são as tropas regulares, as forças armadas por assim dizer “oficiais” da Rússia, que estão engajadas na batalha de Bakhmut. Mas sim um exército paramilitar, pós-moderno, de propriedade do oligarca Yevgeny Prigozhin. É o chamado “grupo Wagner”.
A situação é um tanto contraditória: o grupo Wagner está fora da lei, pois a legislação na Rússia não permite a existência de forças armadas privadas. Ao mesmo tempo se coordena com o restante do esforço de guerra realizado pelas tropas regulares e conta com o apoio pessoal de Putin, de quem Prigozhin é confidente. Aliás, o “fora da lei” aqui também vale em sentido filosófico. Para falar com G. Agamben, o PMC Wagner opera em estado de exceção e seus membros não estão sujeitos a nenhuma norma ou convenção, em regime de bando.
Antes de chefiar o PMC Wagner (PMC para Private Military Company), Prigozhin era um mafioso do ramo de alimentação, dono de restaurantes e firmas de catering em Moscou. O oligarca é detestado pelos generais do exército russo, que apesar disso, têm de engoli-lo. Primeiro, por ser um protégé direto do autocrata. Segundo, porque Prigozhin atribui o fracasso da invasão ao Ministério da Defesa e sua cúpula sem pulso, colocando-se ele próprio e seu exército particular como a solução e o futuro da “maneira russa de fazer a guerra”.
De fato, os avanços conduzidos pelas forças armadas regulares da Federação Russa não têm obtido êxito, as tropas vêm sofrendo perdas crescentes, e já são objeto de críticas abertas não só pelos ultranacionalistas em redutos da blogosfera, como também por comentaristas na televisão pública. Em parte, a incapacidade de avançar se deve a fatores intangíveis, como a moral das tropas. Ora, é difícil superar o nível de motivação dos soldados ucranianos, que lutam para defender suas casas, famílias, a própria existência da Ucrânia, diante de um invasor com discurso genocida.
Já os centenas de milhares de recrutas que vêm sendo mobilizados à força pela Rússia inteira são lançados numa máquina de moer carne com pouco treinamento, pouco equipamento, sem um senso de propósito claro, numa terra estranha, em nome de valores impalpáveis. Putin não cansa de falar em “guerra existencial” da Rússia, mas o simples soldado em um front intensamente atricional vai sempre perguntar-se: existencial para quem? Talvez para ele, não para minha família e minha terra.
Prigozhin oferece exatamente um reforço no quão ‘existencial’ a guerra precisa ser para os mobilizados. O grupo Wagner obteve a autorização de Putin para recrutar voluntários no sistema prisional da Rússia. Com o indulto garantido pelo presidente, Prigozhin e seus capangas fizeram uma turnê pelas prisões de todo o país oferecendo uma proposta simples ao preso: se você topar entrar no nosso grupo, em seis meses será perdoado e sairá livre. Não importa qual seja a pena, o motivo, a circunstância, estará livre.
Se o preso aceitar, o pacto é irrevogável. A contrapartida é simples: qualquer menção de recuo não-autorizado ou rendição é punida com a morte. Mas não só. Se for pego com drogas/álcool, fazendo sexo, em jogos de azar, ou simplesmente flagrado em uma conversa derrotista, o código penal do Wagner será aplicado em seu artigo único: execução no ato, sumária. A palavra russa usada pelos mercenários do Wagner é ‘обнулить’: resetar. Você não é morto, é resetado. Não vai ter enterro, aviso aos familiares, anotação em estatística, nada. É um reset inclusive do seu nome. Você nunca existiu.
Aos desertores do Wagner, é reservada uma forma de castigo mais dramática, a golpes de maça. Quem já jogou RPG sabe do que se trata: a maça é uma espécie de marreta só que mais tosca. Os oficiais de Prigozhin usam-na para achatar o crânio das vítimas, geralmente em uma live que depois é divulgada nas redes sociais, para coibir futuras deserções.
Apesar dos termos da proposta, a vida é tão ruim na cadeia lá que, ao longo de um ano de guerra, cerca de 50.000 presos voluntariamente aderiram, mais de 10% da população carcerária da Rússia.
Segundo a reportagem de hoje, assinada por Yaroslav Trofimov, no Wall Street Journal, a defesa ucraniana de Bakhmut está se tornando insustentável porque o PMC Wagner não se importa em lançar sobre ela vagas e mais vagas de seus recrutas que não podem recuar. Mesmo com taxas de perdas seis ou sete vezes maiores do que a dos defensores, os buchas da Wagner continuam avançando e se lançando à morte. Eles simplesmente não têm escolha.
De acordo com o autor da matéria do WSJ, alguns deles que foram feitos prisioneiros relatam o treinamento relâmpago recebido entre a cadeia e o campo de batalha. Basicamente, aprendem a rastejar sob a linha de tiro até aproximar-se do inimigo, e então partir para o ataque. São missões suicidas, muitas vezes sem equipamento adequado ou cobertura de artilharia. Em Bakhmut, do lado russo, estamos presenciando uma das raras ocorrências na história dos conflitos armados em que o número de fatalidades supera o de feridos. Um massacre.
Os soldados ucranianos, mais preparados e armados, estão matando-os aos montes, com relativa facilidade. O nome usual utilizado para os inimigos russos pelos ucranianos, como se sabe, é “orco”. Eu considero desumanizador (como os alemães eram “krauts” nos fronts da WW1 e WW2), mas, enfim, se tratando de um ucraniano entre a vida e a morte nas trincheiras, é compreensível. Para os soldados kamikazes do PMC Wagner, no entanto, os ucranianos criaram outro apelido: zumbis. Nada mais sintomático: um subproletariado zombie, a serviço de um oligarca do capitalismo mafioso.
Como isso pode funcionar na prática? Digo, como efetividade militar? Afinal, estão avançando e podem tomar Bakhmut. Funciona porque as levas de zumbis são apenas uma parte da história. O princípio doutrinário da massa nunca funciona apenas pela quantidade cega e acéfala. Existe, em paralelo, coordenação com outras formas de ataque.
Os batalhões penais estão sendo usados como iscas, para revelar as posições dos defensores. Os assaltos zumbis são sucedidos pelos mercenários profissionais, com mais tática, gente endurecida de outras batalhas e portando o equipamento adequado. O exército particular de Prigozhin também conta com veteranos de outras intervenções em guerras de interesse de Putin, na África ou Síria. Por sinal, seu líder militar é um coronel de videogame, com passagens sinistras em guerras no Mali, República Centro-Africana, Sudão, Chechênia. Além disso, os generais propriamente ditos estão sendo ordenados por Putin a prestar apoio a Prigozhin e a coabitar (tensamente) o teatro operacional do Donbas.
É curioso, porque Prigozhin deixa claro que considera os militares oficiais da Rússia uns frouxos: “Não se fazem mais homens como os que tomaram Berlim [em abril de 1945]”. A campanha russa de invasão é justificada como guerra de civilizações do Urso Russo, liderado pelo Macho Alfa, contra um Ocidente que seria decadente, com seus macilentos liberais e suas “revoluções coloridas”. Prigozhin reforça essa narrativa, mas ao mesmo tempo lhe dá um deslocamento. A virilidade da Grande Rússia renasceria das prisões e do mundo das máfias, onde graças à lei da sobrevivência não se forjam covardes. É a lei do mais forte, e a Rússia é a mais forte, eis a lógica do capitalismo mafioso, sem valores, ou com o valor maior da glorificação da violência.
A situação lembra conceitos da trilogia “Homo Sacer”, de Giorgio Agamben. Ao aderir ao pacto, os ex-presos atravessam um limiar e se tornam seres em relação de abandono diante da lei. Pertencente a um exército em estado de exceção, na qualidade de combatente irregular, sem qualquer estatuto nacional ou internacional de proteção, pode ser morto a qualquer momento, sem repercussão no plano jurídico ou moral. Tampouco vira herói de guerra, não tem direito a patente, a julgamento, não tem direito. Quando executado, é zerado, como um nulo. Para completar o quadro agambeniano, a relação do PMC Wagner é de liame com o poder soberano, personificado em Putin, que decide dotar seus membros de uma força de lei sem lei.
Tenho plena empatia pelos que sofrem essa guerra do lado ucraniano, todos os refugiados, combatentes e não-combatentes, os civis e as suas famílias, pegos nessa chacina comandada desde o Kremlin por um grande facínora. Isso é certo. Entre os agredidos e os agressores, é com os primeiros o meu lado, aqui sem margem a ambiguidades.
Mas não consigo evitar uma ponta de compaixão por todos esses ex-presidiários jogados na guerra. Um sistema prisional que poderia ser o brasileiro: reservado aos danados da terra, arbitrário, ultraviolento, dominado por facções que não hesitam em aplicar a tortura e o terror. Habitam celas superlotadas, fazem refeições com comida estragada, contraem de conjuntivite a hepatite e HIV.
Saem de um inferno e caem em outro, ainda pior. Onde quer que se olhe, é uma coisa abominável.
E esses sem nome, quando por esperança aceitam o pacto e morrem, aos milhares por semana, ainda temos de ouvir Putin e seus porta-vozes repetindo: “todos os objetivos da Rússia serão atingidos, quantas vidas? as vidas não importam”. Como na virada do ano, o apresentador putinista da TV russa, Solovyov, pontificou que “a vida é sobrestimada”, clamando aos concidadãos que não temessem a morte (por holocausto nuclear).
Um total desdém pela perda de vidas, pela perda de seus próprios soldados, sacrificados no altar de uma invasão cujo real objetivo é a sobrevida das elites oligárquicas e seus negócios graúdos. Conduzem seu povo à morte mesmo que a Rússia tenha o futuro irremediavelmente arruinado no processo (senão pelo apoio à Ucrânia do Ocidente reunificado, ao se tornar vassala da China).
Sempre o mesmo tom mortificante, ultra-másculo, de Putin, Prigozhin, Medvedev, Pesok… a grande nação guerreira que se reergue na prática e na vivência de violências extremas.
Como os franquistas na guerra da Espanha (1936-39), que bradavam orgulhosamente “viva la muerte”, puro fascismo; enquanto o outro lado, o dos republicanos (liberais ou comunistas), e que corresponde hoje ao ucraniano, luta em nome da vida, pela vida, para viver.
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imagem: Wladimir Wraengel