Quadrado dos Loucos

Os ventos que sopram do oriente… da Europa

Por Bruno Cava | Em 21/02/2023, na UniNômade

A ofensiva de inverno da Federação Russa na região ucraniana do Donbas está provando ser outra derrota estratégica para Putin. É o que dizem os melhores analistas da guerra na Ucrânia, com base nas fontes abertas. A indicação mais audível de que os analistas estão corretos é que a comunidade russa de blogueiros militares ultranacionalistas (os “milbloggers”) começou a falar abertamente nas falhas e insucessos de seu próprio lado no campo de batalha.

Os avanços das tropas invasoras têm sido muito lentos, muito custosos, muito frágeis, em relação às perdas materiais e humanas para os russos. Há quem diga que é assim mesmo, a Rússia sempre avança sendo derrotada, é um Behemot acostumado a sofrer etc, mas relativizar tantas derrotas consecutivas seria uma vulgar mistificação da realidade da guerra em curso.

Não seria exato dizer que Putin não se importa com vidas humanas, mesmo com a de presidiários indultados, pessoas mais necessitadas das compensações financeiras e minorias asiáticas recrutadas que estão lutando por ele. Na verdade, o autocrata precisa de todos esses voluntários para tomar os territórios ucranianos e depois mantê-los, na medida em que ocupar um território é mais difícil do que invadi-lo. As atuais perdas diárias na casa das centenas de vidas, em um ritmo mais rápido do que as perdas dos defensores – em proporção estimada entre 1:2 e 1:3 – cobrarão seu preço. Um preço político.

A equação de altas perdas para baixos ganhos vai forçar o regime de Putin a gastar mais fichas de seu capital político a fim de mobilizar frações ainda maiores da declinante população masculina jovem na Rússia. A matemática funciona da seguinte forma: quanto mais perdas humanas, maior o custo político para substituí-las a tempo de sustentar a linha do front com mais de 1.000 km. O desafio é particularmente crítico do lado do governo da Rússia, que precisa estimular um clima motivacional geral para: 1) convencer as pessoas de que a guerra é justa e seus filhos não morrerão em vão; 2) efetivamente empurrar as tropas recém-recrutadas para o front assassino.

Uma maneira de enxergar o problema é que um regime brutal e autoritário seria capaz de gerar mais forças disciplinadas por meio de pura coerção, enquanto outro mais liberal como o de Zelensky tem que enfrentar resistências expressas internamente e objeções da sociedade civil. Este esquema, no entanto, contém uma incompreensão básica a respeito da dinâmica de poder e consentimento, ao assumir que os jovens do sexo masculino na Rússia estariam marchando para suas prováveis ​​mortes na Ucrânia simplesmente porque seriam forçados a fazê-lo. E não porque, com todas as dificuldades, o governo de Moscou ainda consegue forjar algum grau de consentimento junto à sociedade. O fato triste é que muitos russos estão indo para lá para morrer lutando.

Se a física do poder mencionada acima corresponder à verdade, isso tampouco é uma notícia 100% boa para Putin, pois significa que o moral de guerra e o consentimento para ela não são infinitos, não podem ser manufaturados pelo regime apenas através da pura coerção, de maneira que os fatores definidores do apoio podem se tornar escassos, colocar em risco a mobilização e, no limite, colapsar o esforço de guerra.

Até aqui, o regime Putinista mostra deter certa quantidade de capital político, suficiente para sustentar os enormes esforços exigidos pela invasão da Ucrânia, mesmo significando perdas humanas tão altas para os russos. No entanto, o capital político de Putin é finito, pode se deteriorar seriamente em função das diversas variáveis sociais e econômicas, e acabar em algum momento ao longo deste ano. Os quandos e comos são incógnitas.

Esta é uma das razões pelas quais a campanha russa tem sido orientada para vencer batalhas isoladas, em detrimento a um plano estratégico mais consistente. Porque o regime tem de se recapitalizar através da glorificação das vitórias militares e dos feitos de grandes homens, enquadrando-se a realidade no marco mítico-propagandístico da Grande Guerra Patriótica (o front oriental da Segunda Guerra Mundial). Um senso orgânico de sociedade em guerra deve ser forjado artificialmente, ante um tecido social inorgânico, com instituições civis tão enfraquecidas quanto na Rússia pós-soviética.

Funcionaria melhor do que numa democracia liberal, ocidental? Depende de quão ideológico e empalidecido considerarmos que seja o conteúdo dos valores professados pelos regimes democrático-liberais do Ocidente: para os antiliberais e antiocidentais, a hipocrisia é sempre maior do lado ocidental; para os liberais, em contrapartida, ainda existem instituições sociais e políticas funcionando no Ocidente, que propiciam uma base material para a vida da sociedade civil. A dinâmica de formação de poder e consenso social teria mais resiliência do lado dos EUA/UE do que do outro lado, do chamado bloco eurasiano a que o putinismo diz pertencer.

O governo ucraniano, que (provavelmente) atrasou a contra-ofensiva no sudeste do país, parece não ser tão seduzido pela vitória grandiloquente em batalhas quanto Putin, os linha-duras e ideólogos do putinismo são. Desde o início do inverno, Zelensky e seu estado-maior decidiram exercitar a paciência operacional. A Ucrânia tem que aproveitar ao máximo a taxa de atrito favorável decorrente dos avanços russos no Donbass, enquanto na retaguarda está reequipando o exército com novas munições e sistemas de defesa, além de recrutar e treinar mais tropas. Numa prolongada guerra de atrito, não são os que ganham mais terreno que vencem, mas sim os que são capazes de sustentar e repor as perdas materiais e imateriais para seguir em frente.

Nesse sentido, para continuar suportando as altas perdas humanas e bélicas, a Rússia se vê forçada a ampliar ainda mais a mobilização, implicar a aliada Belarus mais profundamente no cenário operacional, comprar mais estoques da Coréia do Norte e do Irã e, eventualmente, terá que garantir alguma linha de fornecimento de armas com a China. Caso contrário, é simplesmente insustentável para Putin permanecer nesta guerra a médio prazo: depois de culminar os esforços já mobilizados, a Rússia tende a perder no campo de batalha os territórios anexados e, como consequência, Putin deve cair durante a retirada.

A guerra na Ucrânia transcorre a várias velocidades em simultâneo, provocando temporalidades que se interferem e se cruzam. A velocidade mais lenta, ou seja, a longa duração do conflito, envolve as capacidades de produção e logística, os upgrades tecnológicos e a incorporação de recursos humanos e materiais em efetivo poder de combate. A este respeito, a Ucrânia está cada vez recebendo novos tipos, tecnologias e quantidades de armas dos seus mais de 30 aliados da OTAN, cruzando sucessivamente hoje as linhas vermelhas de ontem.

Há um ano, poucos pensavam que aconteceria, mas a coesão europeia foi alcançada. A convergência se deu principalmente graças ao empenho diplomático e ao esforço político dos países da Europa Central, Leste Europeu, Bálticos e Nórdicos. Esses governos não-centrais da UE foram fundamentais ao longo de 2022 para aglutinar o bloco europeu como um todo em apoio à Ucrânia, que não é estado-membro da OTAN.

A narrativa anti-imperialista e anti-americana de que a Europa teria perdido a sua autonomia e se tornado uma marionete dos interesses dos EUA é ela mesma imperialista em essência. Ignora cinicamente a importância dos países menores para alterar o balanço de poder e influência no interior do bloco, até dobrar as posições vacilantes e desconfiadas, algo comprometidas (lembremos de Schröder…) das duas maiores economias da UE, França e Alemanha.

Como resultante da guerra na Ucrânia, assistimos a um rearranjo do equilíbrio político intraeuropeu dado por uma dinâmica de liderança difuso, entretecendo uma malha de governos menos centrais e redes de apoio pró-Ucrânia da sociedade civil e organizações de direitos por toda a Europa. Ao mesmo tempo, a invasão russa há um ano deu um novo sentido à aliança atlântico-europeia, ressuscitando a OTAN como o eixo da grande estratégia de segurança do continente.

Enquanto isso, a mesma coordenação sistêmica que permitiu aos países europeus sobreviver à crise de abastecimento de gás natural neste inverno está gradualmente se convertendo em plena coordenação militar-industrial, a fim de remilitarizar até mesmo países com traumas históricos graves, como a Alemanha (na dita Zeitenwende).

Temos assim, desde cima, a renovação do papel dos Estados Unidos e da NATO para a Europa; desde baixo, uma mobilização transversal ancorada fora do eixo franco-alemão e na multidão que busca a paz não como rendição ao mais forte ou ao mero tradução de interesses econômicos, mas como uma luta por uma vida melhor, uma luta pela paz para todos os povos.

A resistência ucraniana e o apoio a ela não resolvem os problemas e as crises da globalização neoliberal em aberto desde 2008, mas os deslocam de maneira irreversível, ativando outros atritos, contradições e possibilidades.

Vivemos uma catástrofe no continente europeu, precipitada há um ano pela decisão de Putin de invadir, mas não podemos classificar a situação, a rigor, como uma tragédia. Não nos deveríamos permitir aliviar a tensão existencial do presente por meio da tentação do fatalismo. Não se trata de uma situação de destino, mas do recomeço do político em sua acepção mais plural, vívida e construtiva: construção coletiva e horizonte de novas lutas, uma história aberta.

Bruno Cava é autor de New neoliberalism and the other (Lexington, 2018), com Giuseppe Cocco, e escreve para a Universidade Nômade na coluna Quadrado dos loucos.

imagem: European Union Civil Protection and Humanitarian Aid, EU Solidarity with Ukraine – Flick license.

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