Império

Ich bin ein Ukrainer

Por Adriano Sofri | 21/02/2023 | Trad. UniNômade

Ich bin ein Ukrainer, disse Biden, ou é como se tivesse dito. Se encostarem no meu hóspede, é como se estiverem encostando em mim. Biden disse isso como muita calma. O jovem hóspede ficou emocionado e feliz. Nada disso jamais tinha acontecido na Europa ou em qualquer outro lugar. Sim, houve Kennedy em Berlim, mas a guerra àquela época era fria. De resto, quando presidentes americanos visitavam outros países, eram recebidos pela população com contundentes convites para voltar à casa. Depois de cinco horas de Biden em Kyiv, Putin teve de rever as anotações do seu discurso, dizem os bem informados sobre esses assuntos. Esperava-se um Putin no aniversário da invasão, o que apareceu foi outro.

Em que ponto estamos? Há dias na Ucrânia cresce uma tensão no ar, sem objeto fixo, sombriamente associada ao primeiro aniversário da guerra, da operação especial. Algo de terrível e feio pode acontecer. Também pode ser que nada aconteça, mas isto também pode ser terrível. Ontem, as sirenes não pararam de soar até mesmo em Odessa, sabe-se lá por que. Alguma coisa aconteceu ontem. Biden foi a Kyiv, Zelensky ficou tão sério quanto há um ano, e os ucranianos respiraram. Eles também estão esgotados. Na Itália e em outros países em estado de paz igualmente se está cedendo ao cansaço e não é apenas por causa do aumento das contas. Ocorre que, onde se morre e se sofre, o medo não vigora.

Os russos tinham sido avisados, naturalmente, que Biden iria a Kyiv. Que eles não cometessem erros durante a visita. Pode ser que para assassinar Zelensky e a sua família já tenha ficado tarde demais, ou talvez cedo demais, o que dá no mesmo. Ainda assim, há os combates em andamento em Bakhmut, onde se matam milhares por dia, num ou noutro lado do front, entre os que defendem as suas casas e aqueles que querem roubá-la, saqueá-la e explodir as suas fundações. É também uma guerra estranha — no fundo, todas as guerras são estranhas. Trocam-se prisioneiros, atenta-se às visitas dos presidentes à capital bombardeada, calculam-se meticulosamente as distâncias de respeito. “Não podemos continuar assim”, murmura uma senhora idosa com o seu cachorrinho.

Entre as motivações que fazem a Ucrânia ser tão odiada por uma parte da Itália, mais do que outro país europeu, está a relutância de nosso país ante a tragédia. A Itália não sabe e não quer lidar com a tragédia, mesmo quando acaba nela se precipitando sem saída. Isto se deve também ao seu histórico colonialista. Ou por causa de sua legislação racista. Ou pela guerra civil por que passou. Também devido à agonia e à denegação e à morte de Aldo Moro. A brava gente italiana costuma fazer piadas disso tudo. Torna assim o horror mais palatável. Assim domestica os seus monstros, os aproxima para colocar-se com eles em família. O Duce, em família. Putin, em família. O vero italiano é Berlusconi: “reatei um pouco as relações com o presidente Putin, um pouco demais, a tal ponto que, no meu aniversário, ele me enviou vinte garrafas de vodca e uma carta muito doce. Respondi com garrafas de Lambrusco e uma carta igualmente doce”. Zelensky apreendeu o mecanismo: nós também temos uma vodca boa na Ucrânia, se uma caixa de vodca é suficiente para trazer Berlusconi para o nosso lado, então, finalmente resolveremos esse problema. A história da Ucrânia é trágica como poucas, e ainda irreconciliável. A aparente conciliação que está acontecendo graças à guerra é ainda provisória e unilateral, e precisará de ainda muitos outros acertos de contas. São tantos, quase todos, aqueles que têm uma família de assassinos e assassinados. E poucos os que a têm só de assassinados.

O próprio ridículo e a derrisão alheia são o refúgio em que a pusilanimidade italiana se esconde. Basta reduzir a seriedade do outro à medida da própria bufonaria para sentir-se protegido. Zelensky está vivo, mesmo depois de um ano, vivos ele, esposa, filhos. Intoleravelmente vivo, ainda mais com aquele ar sério, resoluto, peremptório, em vez do que entra em cena para fazer o público rir. Deveria morrer como um bom bobo da corte, um ano atrás, em 24 de fevereiro, ou no 25, ou, já indo tarde, no 26. Deveria ter morrido com um capacete na cabeça e uma kalashnikova nas mãos, ridículo. Lembrem-se como parecia ridículo o capacete na cabeça do burguês cordial de meia idade que era Salvador Allende, e a casaca e a arma que ele usou para matar-se? Ou, no máximo, com o capacete abaixado para mostrar o ridículo rosto redondo, Zelensky deveria ter se deixado exfiltrar pelo amigo americano, a fim de servir como presidente legítimo no exílio, em Las Vegas, onde ele e a sua família dariam uma entrevista de vez em quando. Um general criminoso dele mesmo, ou um oligarca criminoso, teria tomado o seu lugar e teria recebido Putin em Kyiv como o mais novo Lukashenko. Em vez disso, Zelensky está vivo, está sério, pedindo armas, dizendo que não pode perder, dizendo que quando foi até Bakhmut, um dia antes de ir a Washington, se sentiu atingido diante de uma devastação tamanha que não sobrou nem sequer um único cachorro para passear entre os escombros.

Temos os veros bufões na Itália, tínhamos os subestimado, eles que convocaram uma passeata em Sanremo para protestar contra a possibilidade que o rosto e a voz de Zelensky aparecessem no festival de 2023. O vero bufão se reconhece pela mania, pela necessidade íntima, de reduzir o próximo à sua própria medida: em suma, espinafrá-lo. Tanto mais quando o próximo consegue suportar por um ano inteiro a face endurecida e lhe pede armas, e explica que a guerra contra quem invadiu o país dele é hoje uma questão de humanos e de fé, porém, ao mesmo tempo, é no mínimo também uma questão de armas.

Ontem foi um grande dia para a sociedade do espetáculo. Zelensky, o indulgente rejeitado de Sanremo, deu entrevistas coletivas aos principais jornais italianos, disse que cada vilarejo vale como Bakhmut, que se dispôs a receber a presidente italiana, que recebeu em sua casa e em suas ruas o presidente dos Estados Unidos, o octogenário que, graças à recusa em fugir de novo, redimiu a infame fuga de Cabul, e que agora quer concorrer novamente à Casa Branca.

Na véspera, tinha sido relatada a indignação veemente do mafioso Matteo Messina Denaro contra o bufão Zelensky, o cinismo de Zelensky contra o seu povo, bem como seus crimes de lesa-majestade ao afrontar o pobre Putin. Estejamos entendidos: não pretendo enfurecer os companheiros de facção de Messina Denaro, com posições intimamente coincidentes com as dele. Tudo é possível, e Messina Denaro teria podido pontificar com a interlocutora tendo dito exatamente o contrário, isto é, tendo louvado Zelensky e espinafrado Putin, vangloriando-se da tenacidade do Ocidente. Nesse caso lamentável, eu não teria reconhecido a quem quisesse especular sobre ele o menor direito e a menor decência. Contudo, tenho duas dúvidas laterais. A primeira, se não teriam feito o mesmo os espinafradores de Zelensky. A segunda, se não é um caso exatamente de simpatia entre o chefe da máfia e Putin.

Adriano Sofri, 80, escritor e ativista político, ex-líder do grupo autonomista italiano Lotta Continua nos anos 1970, é autor de vários livros, como “L’ombra di Moro”, “Gli angeli del cortile” e “Una variazione di Kafka”.

imagem: Dmitar Diloff/AFP

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