Giuseppe Cocco | Tradução do francês Altamir Tojal
Abril de 2023
As previsões acertadas
Donald Trump parece estar surfando em seus problemas com a justiça americana e Jair Bolsonaro acaba de voltar ao Brasil depois de passar três meses na Flórida. As duas figuras da nova extrema-direita mundial continuam com taxas de popularidade que lhes permitem confirmar a hegemonia eleitoral e política na direita e centro-direita destes dois países continentais. A maioria das interpretações do fenômeno indica, por um lado, o papel de uma corrente ideológica neotradicionalista cuja dinâmica foi descrita por Benjamin Teitelbaum; por outro lado, sublinha o papel nefasto dos algoritmos das redes sociais tanto para a disseminação de notícias falsas como para amplificar a polarização política.
Mas há duas outras formas de entender e definir o fenômeno: encontrar explicações mais profundas em análises que conseguiram prever essa virada. Certamente podemos citar a palestra de Umberto Eco sobre o fascismo eterno (ur-fascismo) proferida na Universidade de Columbia (NYC) em 25 de abril de 1995. Esta é uma reflexão que tem sido mobilizada recentemente a respeito das dimensões históricas do populismo.
No entanto, entre as previsões mais acertadas, há outra que ficou um tanto esquecida e que nos parece bastante atual. Trata-se das considerações finais de Richard Rorty sobre a virada cultural da esquerda americana em seu livro quase autobiográfico de 1998 sobre o pensamento esquerdista norte-americano (traduzido pelo professor Paulo Ghirardelli). Rorty expõe sua visão política social-democrata. Para tanto, ele reconstrói suas raízes filosóficas e políticas pragmatistas, bem como os temas da Progressive Era, sua militância anti-stalinista e francamente antimarxista.
A agressão russa contra a Ucrânia dá nova relevância a essas críticas, em particular pelo fato de Rorty afirmar ter tido acesso a críticas ao stalinismo e à revolução bolchevique quando, ainda adolescente, participou de uma reunião na casa de seus pais onde um militante comunista que acabara de romper com o partido (Whitaker Chambers) expressou seu medo de ser liquidado pelos agentes de Stalin. É principalmente a um vizinho de seus pais, J. B. S. Hardman, que Rorty atribui as confirmações sobre a realidade da Rússia bolchevique. Ativista revolucionário lituano, Hardman foi “o governador revolucionário de Odessa em 1905” (emigrado nos Estados Unidos em 1908). De Hardman, Rorty ouviu falar pela primeira vez sobre o massacre na floresta de Katyn de vários milhares de oficiais poloneses pelo NKVD soviético, durante a ocupação do país pelas tropas de Stalin sob o pacto com Hitler (o acordo Molotov-Ribbentrop). O que nos inspira a olhar para o que está acontecendo hoje nessas mesmas regiões sob o golpe do expansionismo vingativo de um regime russo que mobiliza a ideologia rubro-marrom de Alexander Dungin. O que nos traz de volta à mistura nacional-socialista da vida e do destino descrita por Vasily Grossman.
De certa forma, encontramos nestas páginas de Rorty uma previsão do conflito desencadeado pelo regime de Putin e dos paradoxos do apoio que esse imperialismo encontra tanto à esquerda quanto à direita. Mas é sobretudo a crítica de Rorty à virada cultural da esquerda liberal americana e a antecipação do fenômeno Trump que nos interessa aqui: a crise da esquerda reformista americana seria consequência da hegemonia do pensamento (francês) da diferença. A ideia de que, desde 1968, a esquerda se perdeu em uma agenda “cultural” que não é mais capaz de responder às demandas sociais dos trabalhadores (blue collars) está bastante enraizada na sociologia marxista ou progressista. É disso que falam Ève Chiapello e Luc Boltanski em suas pesquisas, quando discutem o conceito de “libertação”: “Se o capitalismo incorpora desde o início uma demanda de libertação (…) acompanhar e estimular as transformações que marcam a evolução do processo de acumulação, assenta na confusão entre as duas interpretações do significado a atribuir ao termo ‘libertação’, que pode ser entendido como ficar livre de uma situação de opressão sofrida por um povo, ou como emancipação de um regime que limita a definição da própria identidade e a autorrealização individual”. Assim, “o capitalismo pode parecer estar se desprendendo e se movendo em direção a uma maior libertação (no primeiro sentido), enquanto recupera uma capacidade de controle e limita o acesso à libertação (no segundo sentido)”. Isso se apresentaria como uma clivagem entre “crítica social” e “crítica de artista”. Para Rorty, é a deriva cultural da esquerda que alimenta a crise. Para os dois autores franceses, é a deriva do “artista”. Em ambos os casos, “a crítica deve (…) poder voltar a enraizar-se nos sistemas sociais de onde foi gradualmente expulsa”.
Mas o que queremos destacar aqui é que Rorty, depois de se situar claramente no quadro do reformismo de origem rooseveltiana, percebe seu declínio – que atribui à virada cultural da esquerda – e vê despontar no horizonte um futuro ainda mais sombrio. À medida que as lutas contra o racismo e o sexismo (as formas de poder que ele define como “sadismo”) obtêm cada vez mais sucesso, a desigualdade e a insegurança continuam a aumentar. A incapacidade da esquerda de conciliar as lutas pela diferença e pela igualdade abre caminho para “demagogos como Patrick Buchanan”. A América “está proletarizando suas classes médias e esse processo pode culminar em uma revolta populista, do tipo que Buchanan gostaria de promover”. Rorty também culpa a globalização, em termos que nos fazem pensar nos discursos atuais sobre o “globalismo”: nos encontramos em “uma economia mundial controlada por uma classe alta cosmopolita que não tem mais senso de comunidade”.
Brasilianização
É interessante notar aqui que, entre os diversos autores sobre as transformações sociais e econômicas após o fim da Guerra Fria, Rorty cita o trabalho de Michael Lind e sua previsão de uma “América dividida em castas sociais hereditárias”. Se ainda hoje um dos mais intrigantes livros de crítica às derivas identitárias da esquerda norte-americana suscita o pesadelo da libanização da política, nos anos 1990 a perspectiva de uma tradução política e violenta da fragmentação social foi definida como balcanização, algo nos termos apocalípticos da guerra civil generalizada prevista por Hans Magnus Enzensberger. Mas Lind organizou sua crítica em torno de outra noção, a de “brazilianization”: “A ameaça real não é a balcanização, mas a ‘brasilianização’ da América; não a fragmentação ao longo de linhas raciais, mas a atomização ao longo de linhas de classe”. Com este termo, Lind pretende fazer uma distinção clara entre “a separação das culturas por raça” e a “separação de raças por classe”. Ele quer dizer que, como no Brasil, uma cultura americana comum poderia ser indefinidamente compatível com um sistema informal e frouxo de castas, onde a maioria dos que estão no topo são brancos e a maioria dos negros e mestiços está na base – para sempre”.
O futuro virou Brasil
No entanto, três décadas depois, podemos dizer que Rorty e Lind previram bem os perigos que aguardavam a democracia norte-americana: Donald Trump é um Buchanan só que pior, até porque conseguiu ser eleito e mantém seu poder no Partido Republicano. Ao mesmo tempo, a eleição de Bolsonaro – dois anos depois – de alguma forma mostrou mais uma americanização do Brasil do que uma brasilianização dos Estados Unidos. Mas podemos ver tudo isso de outra forma: o futuro se tornou o Brasil e, portanto, a brasilianização da América é também uma brasilianização do Brasil. A modulação infinita das cores da mestiçagem e da informalidade do trabalho não é mais – no Brasil – fruto do mesmo racismo e do mesmo subdesenvolvimento, mas de uma mudança radical tanto na composição social quanto na do trabalho. Esta modulação já não tem pela frente o horizonte de uma disciplinarização industrial e isto por duas razões: por um lado, tudo o que é disciplinar foi para a China e, por outro lado, a mobilização pós-industrial do trabalho hoje já não precisa transformar os pobres em trabalhadores: mobiliza a todos colocando um smartphone no bolso de cada um, independentemente de seu estatuto social e racial. Com isso, os excluídos são incluídos, sem que seja necessário que mudem de condição.
Esquerda social e cultural
Para encerrar, podemos considerar que Rorty e Lind estavam muito certo (por isso eles viram Trump), mas também muito errados (por isso eles não entenderam as novas formas de resistência). A cisão entre a esquerda cultural e a esquerda social é sim um problema, mas também não é o retorno à primazia das lutas sociais em detrimento das culturais que resolverá o problema. Pelo contrário, o enigma da renovação democrática envolve a capacidade de ver as dimensões sociais das lutas culturais ao mesmo tempo que as culturais nas lutas sociais. Nesse sentido, há um outro lado da brasilianização, algo que podemos chamar de um devir-Brasil do mundo e que vimos no entusiasmo global pela vitória de Lula nas eleições de 2022: um devir-Brasil do mundo que precisa de um devir-Amazônia do Brasil e de um devir dos pobres das políticas sociais.
O problema é que Lula não é um momento desse devir-Brasil do mundo, mas um representante da brasilianização que já começou a circular com seus auxiliares nos palácios de ditadores como Maduro e Putin.
Resta inventar o devir-Brasil.