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A 3ª república turca, os curdos, transformar o Poder

Tradução pela UniNômade do texto do coletivo Otonom, ativo nas greves e mobilizações radicalmente democráticas disparadas na Turquia na última semana. Segundo o coletivo, a chave para a superação dos impasses e dilemas da esquerda turca, bem como de “todo o movimento político mundial”, está no movimento político curdo, um movimento de “transformação da vida e da prática” baseado na desnacionalização. Articula-se uma crítica à razão moderna centrada no Poder que separa sujeito do objeto para a dominação “racionalizada” do mundo da vida. Mas é no curdo, — mormente no imigrante, no romeno, no haitiano, no negro, no índio, nos povos por vir, povos antropófagos, — em suma, no indigenismo de povos sem povo nem estado e que recusam qualquer interioridade a gerir-se, nessa autêntica luta contra a condição pós-colonial, que pode estar a linha de fuga às tradicionais forças de esquerda ainda baseadas no discurso nacionalista, estatólatra e antropocêntrico.

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Por coletivo Otonom, em 2/6/13 | Trad.: UniNômade Brasil

1º de junho de 2013. Vivemos um novo dia político. Um dia de dignidade, alegria e festa, que se insere na história revolucionária da resistência em nossa terra, um presente à revolução. Este dia não é só um grito de consciência e dignidade desta terra, mas também o dia de todos os viventes do mundo que estão em nossa terra, e que já se tornaram parte da resistência global. Feliz festa a todos nós!

O 1º de junho parece ser um ponto histórico de ruptura para a esquerda na Turquia. Não seria errado dizer que a esquerda tradicionalmente falhou em refletir sobre as “rupturas históricas”, com o que temos nos deparado até agora. Desta vez, a esquerda não deve subestimar a oportunidade novamente. A esquerda deixa de pensar a respeito da vida, para pensar apenas sobre os sujeitos. Contudo, não são os sujeitos, mas as práticas, o que pode transformar a vida. A esquerda deveria ser capaz de considerar uma prática sem e além dos sujeitos, de um ponto de vista em que poderia transformá-los.

A história da esquerda na Turquia pode ser dividida em três períodos: o primeiro vai do assassinato de Mustafa Suphi (o fundador do Partido Comunista Turco), pelo regime no poder de 1921 a 1968. O segundo período segue de 1968 até o golpe militar de 12 de setembro de 1980. Desse dia até o 1º de Maio de 2013, não há esquerda verdadeiramente existente que não seja o movimento político curdo. Agora, nos deparamos com uma nova, a terceira onda da esquerda, visível com o 1º de junho, mas cuja virtualidade vem desenvolvendo-se desde maio e a questão curda. É indispensável enxergar e considerar a tendência revolucionária atual dentro da terceira onda em curso.

A terceira onda da esquerda começou no coração da segunda república, esta iniciada pelo Partido da Justiça e Desenvolvimento (PJD, atualmente no governo). Embora a constituição legal da segunda república já tenha se completado, o mesmo não pode ser dito quanto ao processo de formação de sua constituição política. Em certo sentido, a nova onda da esquerda que explodiu no coração da segunda república deveria ser tomada, daqui por diante, diretamente como uma terceira república. O 1º de junho parece antecipar a Terceira República.

A primeira república na Turquia era fundada sobre três antagonismos fundamentais: ao redor da exclusão do Islã político, da “turquização” do povo curdo e do anticomunismo. A primeira república era inerentemente antidemocrática e politicamente reacionária. Foi incapaz de construir um contrato social sobre a base de um consenso da sociedade. A linha política da república baseada na islamização e “turquização” acabou levando à inibição do processo de construção da nação. A segunda república é o resultado desse pano de fundo político. O governo do PJD foi capaz de introduzir a segunda república aliando-se com o capital global, para então diretamente tornar-se parte dele. Conseguiu assumir o seu lugar dentro da hierarquia do Império. Contudo, a segunda república ainda é politicamente fraca. Isto se deve ao fato que o PJD tenta transformar o movimento político curdo numa força política acomodada no interior da segunda república, para conservá-la e fortalecê-la. Noutras palavras, o PJD está em busca de um novo consenso social e um novo contrato social, sem considerar a força de transformação do movimento curdo. Por isso, o futuro da segunda república depende do movimento político curdo e da resolução dessa questão.

Modernismo: considerando a vida do ponto de vista do sujeito

Por trás da teoria política do modernismo, está uma ruptura filosófica. Dentre as faculdades do corpo, afeto e prática, a mais semelhante àquela atribuída a Deus sempre foi a faculdade da razão. A modernidade definitivamente está ligada à secularização da razão, para reinstituí-la hierarquicamente a partir do sujeito, que a porta. Segundo a lógica da modernidade, o sujeito atua como a condição última da experimentação, experiência e vida. Noutras palavras, o sujeito é colocado como a medida da vida e a constituição do sujeito é inerente à objetivação da vida. Assim, o sujeito se torna totalmente ignorante daquilo que não pode transformar em objeto, como se não existisse e muito menos interessasse. Pela mesma razão, o fato revolucionário, num sentido real, só pode ser encontrado nessas vidas desconsideradas e ignoradas pelo sujeito da razão.

O sujeito na modernidade é o Poder e a estado-nação. A modernidade não afirma a vida, mas o Poder. A nação-estado desterritorializa tanto a nacionalidade quanto a geografia, tornando-as objetos, o que permite que elas sejam feitas terra do Poder. Ele “subjetiviza” os valores imanentes da vida e os valores do estado-nação. Torna a democracia e a liberdade que constituem a vida mesma em valores do Poder e do sujeito. Ela solicita a democracia e a liberdade para o uso do Poder. Assim, pode reinvindicar um “Poder revolucionário”, um “Poder democrático” ou “estado-nação democrático e revolucionário”, todos os três pertencentes ao discurso da modernidade.

Precisamos inverter o discurso modernista! A terceira onda da esquerda ou terceira república precisa disparar essa inversão do discurso. Democracia e liberdade precisam ser reapropriadas pela vida-sem-sujeito a que intrinsecamente pertencem. A terceira república deveria se distinguir com a passagem do sujeito democrático, revolucionário, do Poder e do estado, à revolução e democratização da vida ela mesma. O que pode transformar a vida ou o estado presente das coisas não é a revolução do sujeito, mas a revolução e a democratização da vida, reconstruindo-a desde uma base ético-política.O movimento político curdo começou a intervir na crise do modernismo. Ele representa a desnacionalização do mundo pelos indígenas do mundo. É parte da justiça e dignidade globais. Sobre isso, se situa no limiar de um novo discurso: a desnacionalização da democracia.

Certamente, o movimento curdo passa por um processo político muito difícil. A dificuldade consiste não só no fato de que tenta continuar um movimento nacional sem um estado-nação. Mas também porque está fadado a superar praticamente todos os problemas teóricos e práticos do movimento revolucionário mundial. O que é infeliz aqui é que a maioria da esquerda na Turquia se comporta como crianças da primeira república, e não consegue entender a situação do movimento político curdo.

A estrada se bifurca: ou se vai pela nacionalização ou pela desnacionalização da democracia. A esquerda nacionalista da primeira república se põe como barreira, diante da desnacionalização desejada pela terceira república. Dentro da terceira onda de esquerda, superar a crise política dos revolucionários só pode acontecer com a desnacionalização da democracia e a revolução da vida de um ângulo ético-político. O movimento político curdo se coloca exatamente no meio entre a segunda e a terceira repúblicas. A vida exige um processo que solucione a questão curda, combinado com a desnacionalização da democracia.

A glória só é virtuosa se você for ético ao celebrá-la. Aqueles que continuam gritando as palavras de ordem: “Somos os soldados de Mustafa Kemal (fundador da República Turca)!” fracassam nisso. Na sequência da libertação da Praça Taksim, para os que por vários dias lutam pelas ruas em nome da dignidade e liberdade, aqueles que gritam são vistos pioneiros da lumpenização do 1º de junho. Em vez disso, os revolucionários deveriam defender a ética de 1º de Junho e reter a sua própria virtude.

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