UniNômade

A comuna dos trapaceiros

Por Jeudiel Martinez (Universidad Central de Venezuela) | Trad. UniNômade

imagem AFP / Venezuelanos emigrantes se aglomeram na fronteira

“O tirano necessita da tristeza das almas para triunfar, assim como as almas tristes necessitam de um tirano para se apoiarem e se propagarem.”

(Gilles Deleuze)

Guerra fria

É preciso viver na Venezuela para poder falar. Eis aí o clichê da esquerda, mesmo que ela não desista de defender o desastre de Hugo Chávez e seus sucessores. Obviamente, esse não é o único clichê sobre a Venezuela, mas é um de que a esquerda precisa desesperadamente. É que não apenas os países vizinhos estão abarrotados de imigrantes venezuelanos — uma presença que não é necessariamente muito querida — como também todos os dias chega a torrente de notícias, imagens e desdobramentos de um desastre que não encontra termo de comparação no continente, pelo menos não durante tempos de paz. Se todo o existente se faz rodear pelos seus signos, pelo próprio campo semiótico, o campo da Venezuela é um edifício que desmorona, em meio a barulho, escombros e poeira.

A ideia que a situação venezuelana seria, no mínimo, opaca demais ou difícil de entender, que sempre estariam faltando informações para se colocar o problema, é uma ideia indispensável para os que abraçaram a propaganda governista ou que não queiram pô-la em dúvida. Como se poderia opinar se você não está lá? repetem os cínicos. Quem não mora aqui, ou seria uma presa fácil para os artifícios da grande mídia ou, pior ainda, não teria acesso à realidade essencial da guerra, ou então do mundo novo que estaria sendo construído pelas comunas. O lugar de fala está sempre em deslocamento: porque também não basta simplesmente morar na Venezuela, também seria preciso viver num bairro popular e, se isso por si só também não bastar, é preciso estar submerso no mundo das comunas. Em suma, no final das contas, para falar é preciso ser chavista leal e de carteirinha, só assim se dirá que você fala com propriedade, conhecimento de causa. Mas nós, venezuelanos que moramos aqui, sabemos muito bem o que está acontecendo na Venezuela e não precisamos ser chavistas para sabê-lo. Não há nenhuma guerra, exceto a guerra que o próprio governo venezuelano trava contra qualquer forma de produção — fábricas, comércios ou a vida da população em si. Ninguém está construindo um mundo novo aqui a não ser se, por “mundo novo”, se esteja referindo a um mundo pós-apocalíptico, como em Walking Dead ou Mad Max.

Não foi feita e, com certeza, não é possível fazer uma pesquisa sobre a porcentagem da esquerda continental que apoia o chavismo, mas sem dúvida é a maioria e não seria arriscado dizer que, a essa maioria, se une quem recusa tomar partido contra o chavismo. Estamos falando de uma maioria esmagadora: com exceção de alguns grupúsculos marxistas ou anarquistas e certas personalidades proeminentes, a esquerda mundial respalda o chavismo e é quase unânime no empenho em não o por em questão. Ainda que estejam aparecendo cada vez mais fissuras nesse bloco de apoio, a situação atual é essa inclusive na Venezuela. Ainda que a porcentagem de chavistas e esquerdistas que se opõe ao governo vem crescendo dia após dia.

Isso não tem nada de incomum: desde que a cultura política da Guerra Fria (1946-91) — na qual a direita é o oposto da esquerda — se globalizou, ganhando uma dimensão planetária, os discursos binaristas se multiplicaram. Durante décadas, prevaleceu uma negação total em admitir os crimes de Stálin. Somente pequenos grupos radicais se atreviam a questionar a União Soviética, enquanto isso, no outro polo, Cuba foi expulsa da OEA e nunca se fez nada parecido com a Nicarágua de Anastasio Somoza Debayleou, ou com o Paraguai de Alfredo Stroessner. Não há nada de incomum no fato que os progressistas e esquerdistas se indignam ante o assassinato de Berta Cáceres ou a perseguição aos índios mapuches, mas não se preocupam nem mesmo com o mais básico: a fome, as mortes por falta de remédios, as execuções policiais, a corrupção em níveis feéricos, as prisões ilegais e o estado de exceção permanente. A indignação seletiva  é um legado do século 20, a reverberação mais evidente do mundo da Guerra Fria.

No entanto, em nossos tempos, não faltam sectários, de um polo ou do outro, que têm muita dificuldade em condenar os desaparecimentos da ditadura argentina ou do Gulag soviético. A Guerra Fria implica como essência um governismo profundo em que as pessoas não participam senão como a base social para um governo justo, ou pelo menos a promessa dele. Um dia é possível aparecer com um discurso libertário em prol de um protesto popular ou uma “revolução de cores” e, no seguinte, apoiar o governo bom que a mídia está difamando. É preciso fazer o que for necessário para defender o governo dos agentes subversivos pagos pela CIA ou pelo castro-chavismo. O que às duas da tarde era inaceitável, às quatro se torna dolorosamente necessário, inclusive quando a situação é rigorosamente a mesma: para que a avaliação mude basta que o governo em questão mude.

Nesse contexto, as pessoas que protestam na Nicarágua contra a reforma do sistema de proteção social, as que se levantaram no Brasil em 2013 ou as que se opõem a Assad na Síria ou a Putin são consideradas pela esquerda nada mais nada menos do que agentes, diretos ou indiretos, conscientes ou não, a favor dos Estados Unidos, enquanto que aquelas que se batem contra o neoliberalismo são de imediato consideradas chavistas e de esquerda. Não causa estranheza que a esquerda encontre na Telesur o equivalente não tanto de uma CNN, mas sim da proselitista Fox News.

De um jeito espúrio, são invocados princípios universais e inalienáveis que rapidamente viram irrelevantes, no exato momento em que o governo cujas ações estavam há pouco sendo justificadas passa à posição oposta na situação, isto é, quando é ele quem está agora sendo acusado em nome dos mesmos princípios. Dessa maneira, o relevante deixa de ser o fato de alguém ser torturado com choques nos testículos, mas sim qual o governo que perpetrou a tortura: teria sido em Guantánamo? indignação! teria sido na Venezuela? Pura lorota das mídias internacionais! Temer não pode entregar uma enorme porção da Amazônia às multinacionais, o que inspira horror, mas Maduro pode fazer o mesmo com a Gold Reserve e as máfias mineradoras, aí é diferente, porque, afinal de contas, a revolução precisa sobreviver!

Não estranha que o crime, em sua particularidade, seja apagado e o debate político, inevitavelmente, deslize para a queixa de que “os outros também” fizeram isso ou aquilo, com o inevitável remate: “mas quando eles fazem ninguém se indigna”. É o eterno pingue-pongue do ressentimento. Os direitos sociais, ao redor do que o chavismo encontrou a legitimação em primeiro lugar, agora significam tão pouca coisa para os esquerdistas no Chile, Brasil ou Espanha, mesmo que a população venezuelana coma menos, perda peso e morra de doenças curáveis. Comparado com as lutas dos povos pelo socialismo, o que seriam algumas crianças desnutridas, algumas prisões sem ordem judicial, alguns mortos em manifestações pela repressão policial, ou a falta de remédios? o que seriam apenas uns milhõezinhos de dólares desviados ou evadidos?

Além disso, a cultura política de esquerda, como estamos cansados de saber, tende a diversas formas de messianismo, ao culto da rostificação, tanto dos governos como de seus líderes. Ainda que isso não seja exclusivo dessa cultura, como o demonstram o franquismo e o uribismo; o que distingue o caso da esquerda é que o messianismo é literal e se baseia na cristificação dos líderes, que acabam se apresentando como redentores dos pobres.

Quanto à esquerda da América Latina, o caudilho crístico poderia muito bem ser considerado a sua instituição fundamental. No momento em que os partidos se eclipsaram, no fim do século 20, as lideranças pessoais e caudilhas assumiram protagonismo e passaram a gozar de um verdadeiro renascimento. O culto à personalidade de Lula reemergido nos últimos anos, ou o de Chávez antes dele na década passada, tem certamente muito em comum com o de Stálin ou de Mao e, mais ainda, com o culto dos comandantes guerrilheiros. Mas ele é, antes de qualquer outra coisa, um altar ao enlutado redentor dos pobres, ao cristo secular.

E se Chávez era o cristo dos pobres, o chavismo é a sua igreja, e o governo é o corpo ou assembleia de seus apóstolos. Não estranha que haja uma igreja internacional de Cristo-Chávez operando em toda a Íbero-América. De fato, o culto à personalidade se prolonga em governismo e, na América Latina, se tornou um tipo de atividade profissional de alguns.

Mas a dívida da esquerda latino-americana com os governos progressistas é tão grande que não se resume à velha esquerda autoritária, crua, ingênua, policial. Nessa cruzada, também se incluem voluntariamente autonomistas, deleuzianos, anarquistas e toda sorte de setores que deveriam ser, pelo menos na teoria, distantes ou críticos da tradição autoritária da esquerda. No entanto, todos se somaram à apologia governista.

O apoio incondicional ao chavismo por parte das fundações políticas alemãs, de jornais como La Jornada, dos partidos de esquerda, repercute a velha cultura da solidariedade incondicional, em nome do que tantos passaram por idiotas ante o Gulag e os campos de trabalho forçado em Cuba. Bem mais surpreendente, no entanto, é sem dúvida ver uma publicação argentina como Lobo Suelto perfumar o apoio a Lula com citações de Deleuze, Guattari e Negri, isso sem falar que elogios à “revolução molecular” de Guattari convivem com os artigos quase infantis de Marco Teruggi.

Talvez não surpreenda, dado que o mesmo Negri — odiado pela esquerda mais do que muitos dirigentes da direita — siga apoiando Lula a essa altura dos acontecimentos. Isso prova que não é fácil a superação do esquerdismo e que a sua relação com o chavismo e o culto à personalidade — que se prolonga em culto ao governo enquanto pessoa corporativa — vá além das expressões mais autoritárias da esquerda. É-lhe inerente como o culto ao direito é ao neoliberalismo; ou a fetichização da beleza física, ao star system de Hollywood.

Na insistência de glorificar os amados líderes, na repulsa à luta contra a corrupção, na relação nostálgica com o ciclo progressista e na negação de aceitar a realidade do desastre venezuelano, encontramos os elementos comuns do apoio da esquerda ao chavismo.

Armadilha e confusão

Noutro momento, teremos de discutir os interesses de todo tipo que as direitas latino-americanas têm em explorar a crise venezuelana. Será uma oportunidade privilegiada para recolocar o debate sobre o neoliberalismo nas mesmas coordenadas dos anos 1990, mas também de cobrir o desastre de Macri, Temer e todos os bons liberais que, supostamente, teriam vindo para consertar os erros deixados pelos populistas. Porém, neste artigo, tentamos combater o discurso que as redes de esquerda em todo o continente estão usando para justificar o desastre sem precedentes a que o chavismo levou a Venezuela.

Podemos chamar efeito-Teruggi (ou efeito-Serrano, ou efeito-Monedero) a cooptação dos intelectuais de esquerda ibero-americanos quando se convertem em funcionários externos do culto ao governo “revolucionário”, que nada mais é do que o prolongamento do culto à personalidade do caudilho crístico, o salvador dos pobres. Ainda que “intelectual de esquerda” já não signifique o mesmo do que antes, pois os apologetas de hoje não sejam nem mesmo a sombra do que eram os intelectuais estalinistas; e apesar da mediocridade pessoal dos que são cooptados por instituições como o CELAG, é preciso deixar claro ao que tudo isso se resume. O recrutamento de elementos da esquerda de outros países para servirem como operadores discursivos ou semióticos do governo consiste na última etapa de um processo bem maior de corrupção da noção de “solidariedade internacional”, a que se converteu o apoio incondicional aos governos que representam a Causa — quer dizer, a luta reduzida a um mero clichê ou forma pré-definida e logo convertida em ideal.

A essência disso já vimos na neuropolítica do chavismo, que reside no mecanismo amor-ilusão. A esquerda se enamora de governos que se autobatizam como de esquerda. Em boa medida, desde a Guerra Fria, a esquerda se tornou um conjunto de fãs, a fandom, dos governos revolucionários ou progressistas.

Assim, o efeito-Teruggi, em essência, não consiste noutra coisa senão na propagação do amor e da ilusão pelo governo venezuelano, visto como o último espécime da utopia e da luta revolucionária. Mas o agenciamento, a combinação ativa, entre amor e ilusão, no caso do chavismo, vem num par bem mais biopolítico: o par dívida-lealdade. O chavista se define por um duplo mecanismo: o enamoramento — com o caudilho, o governo ou a causa — gera as ilusões, enquanto a dívida com o governo providencial gera a lealdade.

Os intelectuais de esquerda cooptados pelo governo entram, de maneira privilegiada, na dupla dependência que caracteriza a tropa chavista, mas como a dependência e a dívida material não podem ser expandidas para fora da Venezuela, é necessária uma enorme expansão da neuropolítica, isto é, do afeto pelo governo e das ilusões ligadas por esse afeto. Tal como as crianças na África somente podem ver as imagens da opulência capitalista sem as experimentar materialmente, os esquerdistas da América Latina somente podem ver as imagens ilusórias da “luta revolucionária” na Venezuela.

Mas, enquanto uma criança do Terceiro Mundo tratará de experimentar materialmente a opulência dos mundos da publicidade na primeira oportunidade, nenhum esquerdista do mundo é tão estúpido para chegar a experimentar, na própria carne, a “utopia” que a revolução está construindo na Venezuela a menos que, precisamente, ele seja pago para isso e se mantenha numa bolha onde estará bem protegido.

O resultado é uma atividade, ou se poderia dizer um serviço, que consiste em fazer a apologia recorrente do governo. Ante um governo que se chama de esquerda, o esquerdista sempre é, antes de tudo, um advogado. E só vai atuar como fiscal na medida em que advoga por um governo possível prenunciado na condenação crítica dos governos realmente existentes, tal como no caso do trotskismo ou dos que falam em “Estado Operário”. Governo atual ou virtual; possível, imaginário ou real; não importa, o esquerdismo sempre fala a partir do governo e do aparelho de estado, a partir da “perniciosa superstição do estado” de que falava F. Engels.

Do ponto de vista do governo, esse serviço se manifesta numa forma específica de propaganda. Já do ponto de vista dos fãs do governo, na recepção dos argumentos para defender o governo, argumentos que podem ser repetidos tanto entre eles quanto ante os demais.

Trata-se de um agenciamento ou combinação ativa não somente de interesses pragmáticos (financiamentos, apoio), como também entre os discursos e toda a semiótica envolvente — signos, imagens — com que são expressos e administrados os interesses. Em definitivo, trata-se da relação entre um sistema de interesses materiais e um sistema de clichês (pois na esquerda quase não sobram signos que não sejam clichês). A estreitíssima aliança do Podemos espanhol com o chavismo é o melhor exemplo dessa combinação.

Tudo isso pode ser incluído, sem dúvida, no campo da publicidade e da propaganda, mas somente se a separamos de noções pouco úteis como “doutrinação” e “ideologia”. Em seu caráter funambulesco, o chavismo  delata claramente a sua própria falta de ideologia, no sentido tanto de uma doutrina como de uma falsa consciência: pouco sério e inconsistente demais para ser uma doutrina jocosa ou um materialismo histórico, e preguiçoso  demais para preocupar-se em preencher-se de falsas representações, não chega nem mesmo a isso. Como o peronismo ou o velazquismo, o chavismo não ofereceu nenhuma doutrina além da palavra do caudilho quem, aliás, passou quase 13 anos da vida pública sem jamais ter mencionado o socialismo.

Ser chavista é, em essência, estar enamorado de Hugo Chávez e aceitá-lo como salvador. É uma relação amorosa e crística com Hugo Chávez, que deve ser estendida ao governo, o qual, por sua vez, deve ser a emanação do líder. Assim, o chavista não tem de crer numa doutrina ou ideologia: tem de crer no que o caudilho fala — ou o governo em seu nome. Ele não tem uma falsa consciência, mas uma consciência e uma percepção confusas que podem  sempre ser modeladas continuamente.

O chavismo certamente tem as suas crenças, como a identidade entre estado e povo, e os seus slogans — unidade, unidade, unidade — que nos remetem a tradições autoritárias tanto de direita como de esquerda: corporativismo, integralismo, estalinismo. Como fusão de um militarismo de direita e um de esquerda ou comandantista, que aprofundam, as suas raízes nos subterrâneos das tradições autoritárias do século passado. Mas seria muito exagerado falar de um discurso coerente: desorganizado demais, desarticulado, inepto, seria para ele muito difícil transmitir uma “doutrina correta” à qual se reclamaria a adesão. O que os críticos de direita chamam “doutrinação” na realidade é a mistura entre algumas poucas crenças e muitas confusões.

Assim, as crenças na “guerra” do inimigo malvado contra a “bela revolução”, ou no caráter extraordinário e soteriológico do chavismo (antes do chavismo havia o mal e a barbárie) simplesmente são forjadas. Sobrepõem-se a qualquer situação, mas não servem de nada sem a ação das confusões: por exemplo, aquela entre especulação e inflação.

Muitos chavistas creem, honestamente, que antes de Chávez não havia educação ou saúde pública na Venezuela. Durante a crise de 2009, muitos se convenceram que o nível de vida na Venezuela era superior ao da Europa e é possível que Hugo Chávez tenha morrido acreditando que havia eliminado a pobreza. Mas não se trata de como o chavista entende as coisas, mas do modo como não as entende: no multipartidarismo, na política cambial e em outras questões, se fará necessário infiltrar a maior confusão possível, para que no final se creia no que o governo diz. O chavista deve estar confuso para seguir crendo.

Por isso, há uma economia para chavistas, uma história para chavistas, uma teoria política para chavistas, que não têm circulação ou credibilidade fora dos simpatizantes do mesmo chavismo. Não pseudociências — pois fazê-las daria muito trabalho — mas sim fragmentos e confusões. Como qualquer economista de esquerda diz que a inflação não existe ou que a desvalorização das moedas seja causada por “máfias cambistas”, nenhum historiador sério aceitaria a tese que a história dos direitos sociais ou dos direitos da mulher se iniciaram com Hugo Chávez, mas tudo isso pode ser objeto de crença por aqueles suficientemente enamorados e confusos.

Anos de bombardeio neuropolítico tornaram impossível a compreensão dos princípios básicos do estado de direito, da democracia representativa ou da ciência econômica, que são tratadas simplesmente como ilusões burguesas. Entende-se porque fazer uma crítica real de uma ou de outra esteja fora de seu alcance, pois não somente não as entendem, como também as consideram meras representações, ilusões, falsidades. Aqueles que desconfiam da realidade de tudo são os que creem em qualquer coisa, os trapaceiros veem em tudo a sombra da trapaça.

Os operadores externos — por exemplo, o triunvirato Monedero, Serrano, Teruggi — fazem essa trabalho, mas na direção do público estrangeiro — o famdom. Confundindo sobre a situação na Venezuela e, nessa confusão, inventando as crenças, confundindo a situação atual com a do Chile em 1972-73, confundindo Chávez com os grandes líderes revolucionários dos anos 60, gerando confusão a respeito das causas dos problemas ou da situação interna, confundindo as comunas venezuelanas com o Soviete de Petrogrado.

Trata-se de fazer a mímese entre o chavismo e as grandes revoluções do século 20, mas a diferença é tão grande que, não importa o quanto elas sejam imitadas, o quanto sejam copiados os seus slogans e signos, é simplesmente impossível identificá-las ao caso venezuelano a menos que, de princípio, se esteja muito confuso, como ocorre com a maioria das pessoas que acolhe as formulações da esquerda. Além disso, agora que o chavismo tem um sex appeal tão fraco que o objetivo passou a ser fazê-lo o menos repulsivo possível, o uso tático da confusão é necessário para evitar que as pessoas formem um juízo crítico com as informações amplamente disponíveis. Daí ser preciso convencê-las de que o que escuta sobre a Venezuela é falso (tese da “crise é uma ilusão da mídia”). E se não for falso, não é responsabilidade do bom governo (tese da “guerra econômica”) e se, aliás, esse governo está, de alguma forma, falido ou contaminado, o problema é só de uma fração do chavismo que, entretanto, vai além disso e merece continuar sendo apoiado apesar da decadência do governo (tese do “chavismo não oficial” e da “comuna”).

Tudo isso requer usar a confusão numa determinada esfera e, quando já não consegue mais, deslocá-la para outra esfera distinta. Por isso, o chavista, sobretudo o chavista profissional, o trapaceiro profissional, tem sempre que ocultar e deslocar o problema, mudar o tema da conversa, focar no irrelevante. Aparece a foto de gente comendo no lixo? Então comecemos a falar das estratégias dos meios de comunicação privados. Não conseguimos mais convencê-los que as imagens perturbadoras seriam manufaturadas pelos meios internacionais? Então saltemos até outra instância, na qual dizemos que o desastre é real, mas que a culpa não é do bom governo, mas da guerra econômica ou da sabotagem. Não podemos explicar como é que, precisamente, sejam as empresas e instituições públicas as que pior funcionam, que os autores da corrupção sejam funcionários chavistas? Então falaremos do “chavismo não oficial” e da Comuna, esses sim, puros, incorruptíveis e abnegados e que merecem todo o apoio das belas almas da esquerda.

“Saltar de um círculo para outro, deslocar sempre a cena, representá-la noutra parte, é a operação histérica do trapaceiro enquanto sujeito”. E o chavista profissional, o operador discursivo, semiótico, do chavismo, é o “artista” em sua trapaça: trapaças para confundir, para capturar os aluguéis, as bolsas e as cestas básicas. O único que sabe fazer e o único que serve.

Chavistas profissionais

A guilda dos trapaceiros emerge entre as classes médias de esquerda, entre os progressistas, entre os funcionários do governo e do partido, entre os quadros médios e os intelectuais que se encarregam de toda a ação midiática e a comunicação do chavismo. São os seus trabalhadores intelectuais: produtores de discursos, imagens e signos. É que os apologistas do chavismo, sejam venezuelanos ou não, não vivem na mesma Venezuela do que a gente que sofre a crise, eles não estão com os “joelhos no chão” em nenhuma trincheira, mas sim vivendo numa posição relativamente cômoda — por vezes, confortável demais — mas falando em nome de um “povo” ou de uma base social, a qual por vezes lhe usurpam a palavra ou, no melhor dos casos, eles deixam falar quando lhes convêm.

Sem dúvida, a Venezuela que Teruggi, Serrano et alia conhecem não é a que sofre a crise. Mas então: em qual Venezuela é que vivem os apologistas do chavismo? Respondo: na do chavismo de esquerda de classe média, a esquerda que, aqui na Venezuela, chamaríamos de sinfrina. Cada país do mundo tem um termo para aqueles que são fúteis porque desfrutam de uma vida fácil: gomelos, sibaritas, fresas, mauricinhos, preppies, pijos, chetos. Sinfrinos se diz, na Venezuela, da classe média acomodada, os filhinhos de papai; e sinfrinismo, de seus maneirismos comportamentais. Chegamos ao êxtase da esquerda sinfrina e essa esquerda demasiado mimada é a que gerencia as relações internacionais do chavismo.

Que, desde os anos 1980, a esquerda tenha se retraído às classes médias é algo bastante conhecido — exceto, obviamente, pela própria esquerda — enquanto diferentes discursos conservadores, integristas, direitistas (Islã político, cristianismo evangélico, populismo, xenofobia) se disseminaram tanto entre as classes médias quanto entre os mais pobres. A esquerda foi se convertendo cada vez mais em algo próprio à subjetividade da classe média universitária. O sucesso de Hugo Chávez consistiu em conseguir um agenciamento entre o esquerdismo das classes médias com um populismo paternalista dirigido aos pobres. Um nacionalismo militarista, um comandantismo, foi o fator comum entre um e outro.

Mas não é mais de uma divisão entre trabalho manual e intelectual, o trabalho que se faz na base local dos vizinhos e da comunidade do chavismo é sempre intelectual e afetivo (organização, comunicação). A divisão é mais odiosa: se dá entre a cidade e a sua periferia. Para a periferia, o bairro pobre, cabe o trabalho interminável e não pago da organização comunitária. Para a cidade, ficam os salários, honorários, bolsas, cestas, viagens e benefícios. Entre esses dois polos, transita o que podemos chamar de chavismo profissional. Desse jeito, se distingue a “comuna” dos precários (com as suas próprias limitações, corrupções e taras) da comuna dos trapaceiros, isto é, dos “peixados”, da mentalidade grosseira da classe média.

Mais além do chavismo na Venezuela, alguém poderia falar, em geral, dessa mentalidade grosseira de classe média que funciona por reação e pensa por clichês. A sua vulgaridade é bem conhecida e os nossos vizinhos tiveram já ampla oportunidade de familiarizar-se com ela. Na classe média venezuelana, há um provincianismo, um excesso de pretensões, um ressentimento velado ou aberto contra a inteligência, uma vulgaridade visceral que é bem fácil de reconhecer.

A mentalidade grosseira de classe média é o oklos, a chusma, mas uma chusma com privilégios e pretensões: é a chusma que crê ser alguém importante. O núcleo da corrupção dessa mentalidade de classe média é uma mediocridade que não é somente desvalorização da virtude, da capacidade de agir, como também uma relação social à qual é preciso conformar-se para poder ser efetivo.

Na guerra fria venezuelana, essa mentalidade grosseira de classe média teve um papel desproporcional em relação ao seu próprio tamanho. No seio do antichavismo, ela fez do Twitter uma espécie de território, a partir do que os mais extremistas e reativos chantagearam, basicamente, toda a oposição venezuelana. Menos conhecida é a posição da classe média chavista na versão latino-americana das cultural wars e esse desconhecimento é deliberado, pois o chavismo profissional de classe média sistematicamente fala em nome de uma base social ou popular à qual ela mesma não pertence. É como se “o povo” fosse o protagonista de uma telenovela roteirizada, produzida e dirigida pela classe média, que é quem diz quando, como e de que modo esse povo deve falar.

Assim, quando um intelectual ingênuo — ou cínico — como Teruggi fala “a partir da Venezuela”, não está falando a partir da perspectiva dos que estão aprisionados por meia hora num vagão de metrô atrasado, ou dos que passam oito horas numa fila para comprar comida, ou dos que veem seus familiares morrerem por falta de remédios. A perspectiva de Teruggi, Serrano, Monedero ou Boaventura, não encarna a crise, a precariedade, a angústia, a raiva, os apagões, os cortes d´água, a emigração massiva e desesperada, o drama de ter de alimentar-se de mandiocas e bananas enquanto espera a chegada da cesta básica. É uma outra, que ganha apartamentos e automóveis com dinheiro do estado, que saca dinheiro, produtos e benefícios de contratos, empregos e bolsas, onde quer que possa meter a mão. É a que trabalha no CELAG ou assessora algum ministro, empanturrada por generosas fundações alemãs vermelhas, com dinheiro para viajar para defender a revolução. É uma que não perde peso, que glorifica os criminosos truculentos como heróis populares, que constrói galinheiros em bairros pobres — que jamais precisou deles para fazê-los — e instrumentalizam esses bairros ora como parque temático, ora como lugar de trabalho. Fala do bairro pobre o tempo todo, mas vive em coberturas e apartamentos da Zona Leste de Caracas, glorifica a pobreza mas não a conhece, trabalha menos para sobreviver do que para sustentar um status.

Se não está totalmente isolada da crise — como ocorre com a classe política, a nomenklatura e a boliburguesia — pelo menos está acolchoada contra os seus impactos. A classe média chavista se esquiva da crise o mais que pode, graças a uma ligação privilegiada com o estado.

Trata-se de um funcionariado, certamente, mas é também uma categoria de trabalhadores intelectuais e operadores políticos dependentes do estado, uma classe média chavista que se converteu no corpo de um genuíno chavismo profissional e existencial, para o qual o chavismo não é apenas a única fonte de renda, como também a quem eles dedicam o tempo livre.

O êxito incomparável do chavismo na aglutinação de gente se deve ao fato de ter conseguido apresentar-se ao mesmo tempo como empresa, partido político, modo de vida e religião. Nele há um tanto de igreja evangélica, de seita ao estilo da cientologia, como de franquia empresarial, e um tanto de corporação militar ou partido político. Assim, não existe somente um único chavismo profissional, mas vários: o explorado e não-pago das comunas ou dos Claps (que é mandado), o dos altos dirigentes (que manda) e o antenado, privilegiado, que acolheu Teruggi, Monedero e Serrano, a classe média de estado, o sifrinato de estado (que passa as ordens e as justifica).

Esqueçam a mítica comuna ou o povo invocado pelo kitsch e mobilizado pelo enorme aparato clientelista: a defesa do chavismo nessa luta cultural ou semiótica vem dessa classe média de estado que não sabe senão produzir chavismo e não poderia manter as suas redes, privilégios ou modos de vida se o governo mudasse: tosca, bêbada, ladra, último elo de uma longa corrente de mediocridade venezuelana, a classe média chavista, o chavismo profissional, é uma forma que vida que come, respira e percebe somente o chavismo e não pode mais respirar sem ele.

Empregados, funcionários, contratados, assessores, essa não é tanto uma classe média de vocação empreendedora, mas cortesã, dependente de um mecenato massivo provido pelo estado. Ela provê a força de trabalho para os meios de comunicação pública, alimenta a delirante blogosfera chavista, executa projetos culturais e coordena com todo o eixo progressista do continente algo que, a título de solidariedade internacional, não passa de uma extensa rede de clientelismos, compadrios e cumplicidades repugnantes.

Nesse contexto, não deve nos causar estranheza que a Venezuela, definitivamente um país do terceiro mundo, tenha assumido o ônus de financiar o Podemos espanhol, um partido de esquerda do primeiro. O chavismo se confunde com uma Internacional populista em que se encontram todos os operadores intelectuais e semióticos dos progressismos latino-americanos.

A Venezuela é duplamente importante para esse eixo progressista. Em primeiro lugar, é um dos últimos baluartes que sobra à esquerda da América do Sul. A Bolívia também o seria, mas não tem o peso midiático e semiótico que a Venezuela. Bem mais exitoso que Hugo Chávez, o governo de Evo Morales não fornece à nossa esquerda os mesmos estímulos e meios do que a Venezuela. E não falamos somente dos petrodólares, como também do vício no kitsch.

Claro que, há mais de uma década, os petrodólares têm escorrido generosamente entre todas as figuras e partidos de esquerda que souberam aninhar-se com o governo venezuelano; porém, para além disso, o chavismo é o ponto comum entre dois períodos da esquerda: a do socialismo autoritário da guerra fria e a do neoestatismo do século 21.

Com efeito, o sex appeal do chavismo para a esquerda decorre, justamente, do seu próprio desastre e das causas para o seu desastre: enquanto o kirchnerismo, o lulismo, o evismo, o correísmo não se afastaram das coordenadas do pluripartidarismo, da competência econômica e da divisão de poderes, o chavismo tratou, sistematicamente, de regredir às fórmulas do socialismo autoritário do século 20. Contrariamente à propaganda, não criou nenhum “socialismo do século 21”, em vez disso, insistiu no século passado de maneira estúpida, acrítica e suicidária.

Noutro lugar, trataremos de explicar por que a dinâmica do chavismo só pode ser chamada de necropolítica. Mas a necropolítica chavista não se explica somente na repetição dessas fórmulas: no caso do desastre venezuelano, são impensáveis êxitos como o sistema de saúde cubano, o lançamento do Sputnik ou a vitória do Vietnã. Nada mais distante dessa trágica grandeza soviética do que a nossa mediocridade caribenha. A Venezuela hoje é certamente a farsa que repete a tragédia, mas parte de sua farsa e de seu desastre consiste num apego doentio ao passado, numa nostalgia crônica que, forçosamente, só pode ser um atrativo imenso às esquerdas viciadas no sentimentalismo, na cafonice, no kitsch e no entulho semiótico.

Realmente, nenhum dos governos do ciclo progressista levou tão longe o kitsch à esquerda. Na Venezuela, se fala em “pavão”, como um azar associado ao mau gosto, e de pavonice tudo aquilo relativo a esse kitsch ominoso. Pois bem, a pavonice de Hugo Chávez era a matéria mesma de seu carisma, a sua qualidade de estar sempre ao lado do maior dos ridículos, das cantarolices infantis, da capacidade de tingir a incompetência de um ar simpático, da falta de seriedade, das declarações estapafúrdias (conseguiríamos imaginar o Rei da Arábia Saudita determinando que a sua empresa petrolífera vendesse frangos? Ou Putin permitindo um apagão em Moscou?). Invocava Trump e Duterte, mas num estilo caribenho que faz o grotesco passar por pitoresco.

Mas a pavonaria de Chávez não era nada mais do que a semiótica de nosso desastre. A sua cor, o seu aroma, trilha sonora, promessa e lembrança. Mas mesmo se o colapso necropolítico da Venezuela não pode ser explicado apenas pelas fórmulas do socialismo autoritário que adotou (por incrível que pareça, hoje Cuba está melhor do que a Venezuela), foram elas que desencadearam a avalanche de degradação que terminou por nos arrastar, uma vez que operaram como um vírus da imunodeficiência adquirida, acelerando a tendência ao colapso que a Venezuela já albergava havia décadas.

E aí está a encruzilhada da esquerda latino-americana com o chavismo. Enquanto alguns poucos grupúsculos de marxistas (desses que não distinguem socialismo de comunismo) repetem o mantra “isto não é socialismo”, o grosso da esquerda latino-americana, por sua vez, tem que ratificar que a Venezuela é, sim, socialista e revolucionária, e para isso negar ou justificar um desastre sem precedentes. A essa esquerda narcisista e ingênua do “isto não é socialismo” (e a ainda mais ingênua quando crê na traição de Chávez por Maduro), é preciso reconhecer-lhe ao menos um princípio de realidade, uma honestidade básica, e até mesmo uma preocupação autêntica pela vida… isso que falta à esquerda chavista e pró-chavista por completo.

Os chavistas profissionais, a seu passo, não tem problema em justificar a miséria:

“Caracas tem um ritmo raivoso e caribenho. Não é para principiantes. O transporte é uma batalha, o caixa é uma batalha, a farmácia é uma batalha, os preços são uma batalha. A conclusão estala como as tormentas tropicais descritas por Maiakovski: no meio de tanta chuva, só sobre um pouco de ar, é uma guerra. Mas não chove em Caracas, são semanas de transição entre sol e chuva, seca nublada. A água é reciclada, passa de balde em balde, economiza-se no banho, na cozinha. Quando volta, o ruído ao passar pelas tubulações causa uma festa nas casas. Andamos perto dos limites, já de costume.”

Jaqueline Farias, uma componente destacada da oligarquia vermelha, já havia dito que as filas são “saborosas”. Teruggi, é claro, vai bem mais longe. É preciso converter a miséria cotidiana numa epopeia de esquerda. Enquanto isso, em Buenos Aires, em Santiago, na Cidade do México, um idiota sorri e suspira. Teruggi nos diz que os bancos públicos são os que funcionam pior, que “o transporte público é uma batalha”, porque ao governo não importam as peças de reposição; e que, em Puerto Ordaz, rodeada por dois enormes rios, também falta água, como acontece em todas as partes por todo o ano e que, no centro do país, e não é raro que a água brote com uma distintiva cor de merda. Mas ele não diz que a “festa” pela chegada da água se dê às três da madrugada e que é preciso sair correndo a essa hora para lavar roupa, os pratos, as crianças…

O purgatório do dia a dia é, para Teruggi, um simples clichê, ocasião para o elogio do pitoresco: agora as horas diante do caixa automático são uma Stalingrado ou uma Baía dos Porcos. Ele não diz, não entende, não quer que ninguém entenda, que, sim, é verdade, tudo isso é de uma luta, terrível, porém, é uma luta contra o estado necrosado e o governo que o dirige, quer dizer, contra os dirigentes para quem Teruggi trabalha.

Por décadas, tanto os chavistas profissionais como a esquerda em geral foram se especializando em romantizar a miséria alheia: bairros, favelas, vilas miseráveis não são mais do que “arquiteturas populares”, a pobreza das maternidades se justifica no “parto humanizado”, não falta muito para que saia de alguma pena iluminada o elogio direto da fome como dieta ou disciplina espiritual.

A justificação do governo deriva, por necessidade, da glorificação da miséria. O projeto chavista de submeter cada habitante do país a relações clientelistas com o estado não exclui, também, as relações de exploração. As máfias policiais, militares, burocráticas, extraem riqueza da população de muitas maneiras, a natureza é explorada terrivelmente, o próprio estado, por assistencialista e clientelista que seja, espera das pessoas, em troca de suas moradias sociais e cestas básicas, a servidão voluntária, a conversão delas em curral eleitoral e a incondicional vassalagem política.

Mas a exploração que a Comuna dos trapaceiros faz do bairro, da vida popular, é distinta: fazer da pobreza, da necessidade, inclusive da violência, algo pitoresco que o intelectual de esquerda, dentro e fora, observa com cândida comoção. Que, no passado, emissoras públicas de TV tenham sido financiadas para glorificar criminosos violentos e gangues armadas, mostra até onde vai a exploração semiótica da pobreza.

A rebelião obediente

Imaginem uma mulher vestida em trapos, o nariz quebrado, um braço numa tipoia e o outro segurando um menino nauseabundo. Imagine-a agora sorrindo – com dois ou três dentes a menos – e dizendo: “sei que temos nossos problemas mas eu acredito neste casamento!”, antes de ir lavar a roupa com a criança às costas. Eis aí o ideal de rebelião obediente dos chavistas de classe média e dos seus sócios no estrangeiro: sei que temos nossos problemas, mas eu acredito nesta revolução!

É a rebelião obediente e masoquista da Comuna El Maizal, que embora padeça de abusos e maus tratos, segue sendo leal, o ideal dos que chamam o “chavismo de luta”, “chavismo não governista” e “sujeito popular”. Um chavismo que é de luta com tudo e todos menos com o próprio governo — diante do que, ao primeiro sinal, se mostra serviçal e temeroso — chavismo não governista que tem de ser leal “hasta la muerte” ao governo. Sujeito popular que é sujeito de enunciado mais do que de enunciação, pois falam dele mais do que o deixam falar, e quando fala, fala quando e até onde o governo e a burocracia autorizam.

A cena de Maduro mandando calar um “comunero” recentemente revela a verdadeira posição dos chavistas de luta, os não governistas e os populares, na estrutura de organização do chavismo. Não se trata que a base popular do chavismo seja passiva per se, é que o chavismo está projetado para assim sê-lo, o ensina e o obriga a tal.

É que o clichê populista e rousseauniano de um “movimento” e um povo chavistas que excedem o governo é, talvez, o mito definitivo que sustenta o apoio tardio ao governo. O chavismo, que abunda em contrassensos e “duplos vínculos”, encontra o seu clímax nesse elogio de um chavismo não governista ou de luta, que tem de obedecer ao governo e pôr-se em guarda somente contra os que não são chavistas. É que inclusive os chavistas mais submissos se consideram a si próprios, de boa fé, “críticos”, sem dar-se conta que, na prática, não somente são líricas as suas críticas como, além disso, mesmo quando não são líricas, não têm qualquer efeito concreto que seja, porque não provocam nos criticados nenhuma diferença real.

O elogio esquerdista, chavista, da miséria alheia se dá então em dois níveis: na fascinação pelo pitoresco do “outro” (algo analisado por Carl Schmitt em seu Politische Romantik, 1919), e na autolegitimação do governo e dos dirigentes políticos ao reivindicar para si a simpatia das bases. A coisa funciona assim: o chavismo sempre é mais do que o governismo, há um povo vigoroso e de luta que acredita nele, e se alguém não se identifica com esse povo e não se põe em seu lugar então não pode nem falar.

O curioso dessa ideia não é, simplesmente, que nem os dirigentes nem os chavistas de classe média estejam — nem nunca vão estar — no lugar em que está a base popular do chavismo, mas sim que a única posição possível para esse povo consiste em reafirmar a sua lealdade ao governo. Isto é, na prática não faz nenhuma diferença a condição excelente de ser chavista não governista, pois de qualquer maneira deverá seguir leal ao governismo. Essa é a posição da Comuna El Maizal, que continuamente se queixa dos dirigentes sem jamais deixar de ser-lhes leal.

E como ser revolucionário passa obrigatoriamente por apoiar o governo, o que sobra é simplesmente o que o chavismo de classe média está esperando desde os tempos de Hugo Chávez: o momento milagroso em que o governo se separa dos elementos corruptos ou burocráticos da classe política. Que esse chavismo de luta, dos chavistas de classe média, não tenha jamais tomado posições concretas contra ninguém da direção chavista demonstra escancaradamente a sua passividade.

Nesse contexto, o chamado “poder comunal” é essencial a partir de dois pontos de vista. Ou seja, a partir do clientelismo ou do corporativismo, porque cumpre o papel que, no passado, cumpriam os sindicatos e as federações operárias: enquadramento, recrutamento, inclusão da população num aparelho burocrático, quer dizer, impedir que a “comuna” e os “comuneros” e todo o suposto chavismo não governista operem com independência em relação ao governismo chavista.

A partir da publicidade, da propaganda, da neuropolítica toda, o problema é outro: desviar a atenção e a interpretação desse espaço belo, pitoresco e aprazível que é “a comuna”, culpabilizar os que denunciam o chavismo de estar também denunciando o “artesão modesto, o sábio ancião, a dona de casa casta”. Essa é a trapaça definitiva que não somente desfoca o problema real — o colapso — como também é cenografia, ao permitir que os leais projetem as suas fantasias. Se a Venezuela, para a esquerda do continente, é o lugar em que algo está se passando, onde se constrói uma utopia, a comuna é a utopia dentro da utopia. Em algum lugar, além do desastre causado pelo imperialismo, haveria gente amável e sadia que está construindo o sonho de Hugo Chávez.

“Ao povo foi atribuída a tarefa de tornar-se o expoente da ingenuidade que o romântico tinha perdido para si mesmo: voltou o povo fiel, paciente, estoico e modesto, que o intelectual impaciente, nervoso e pretensioso admirava, com comoção”. Dizia Carl Schmitt, sobre os românticos.

O problema é que, com a comuna, não se trata, na prática, de projetar sobre o mundo imagens novas com dados novos, mas, ao contrário, simplesmente sobrepô-las num mundo já existente, como trapaça para submergir a gente no “sonho do outro”. Submergir no sonho do outro — no do Senhor — não seria o desejo definitivo das pessoas de esquerda?

Na prática, essa fantasia política é contrariada cruelmente no dia a dia: podem pedir-lhes contas, a um prefeito ou um governador? Podem dar-lhes ordens, à polícia? Quem dá instruções a quem? O governo às comunas ou as comunas ao governo?

Na prática, estamos diante de simples assembleias de vizinhança vinculadas ao estado numa espécie de “grêmio local”, integralmente incorporado ao aparelho de estado e a ele subordinado sem ressalvas. As comunas não têm poder político de nenhum tipo, nem autonomia nem autoridade. Estão aí para executar projetos e políticas sociais e, em última instância, para cumprir a tarefa que o governo achar por bem atribuir.

E como estamos na era do CLAP, em que o caráter claramente clientelista dessas organizações não se discute, há só terceirização de tarefas, de tempo e de esforço aos funcionários comunais, uma burocracia submersa e não paga. Papelada interminável, gestões infinitas, horas e horas de trabalho não pago para mulheres, que à jornada doméstica e laboral têm ainda de se engajar numa terceira, na burocracia comunal. Em certo momento, registrar um conselho comunal chegou a ser uma das gestões mais trabalhosas deste país, em meio a ordens e contraordens de uma burocracia caprichosa, dias inteiros perdidos em marchas e comícios, ressentimentos na comunidade devido aos porta-vozes, domínio pela gangue, impunidade da polícia, péssimos serviços públicos, ruído constante e uma população obrigada a uma contínua atividade empresarial para poder sobreviver, é essa a realidade cotidiana das comunidades que, na fantasia da esquerda internacional, estariam fazendo uma Revolução de Outubro por dia.

Assim, dizer que a comuna é o único lugar a partir do qual se poderia dizer algo sobre a Venezuela é uma trapaça. Nas bases chavistas, são pegas para o trabalho de Sísifo de uma tarefa sempiterna, despolitizada, para cumprir ordens inesgotáveis vindas de cima do aparato. Ao campo progressista e às esquerdas, as comunas ocupam o lugar de objeto da fantasia, transformando-as num banco de imagens que, mesmo sendo repetitivas, alucinam com um povo amável em construção do socialismo… Em qualquer das duas trapaças, seja qual for, se sente o efeito implacável da degradação, da corrupção de todas as coisas sob o chavismo tardio.

E esse tema da corrupção, que não é moral, mas cósmica, degradação do mundo e da vida, é o cenário de uma luta em termos inteiramente outros, e no qual figuras bem mais aptas do que Teruggi entraram na liça.

(fim da parte 1)

Jeudiel Martinez é professor na Universidad Central de Venezuela (UCV), em Caracas, e contribui regularmente com a Universidade Nômade.

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