Por Bruno Cava, no Quadrado dos loucos, 25/7/2016
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Em 1985, a DC Comics lançou a série Crise nas infinitas Terras. Ao completar 50 anos, a gigante dos quadrinhos resolveu unificar as múltiplas linhas do tempo, conflitantes ou paralelas, abrigadas em suas publicações. Décadas de intensa publicação produziram uma mixórdia de enredos, mitos de origem, contradições e realidades alternativas. Até então, a editora vinha lidando com a situação por meio do conceito de multiverso: coexistiam várias Terras com vida autônoma, como a Terra-1, Terra-2, Terra-X, Terra-S… Além disso, os super-heróis existiam em múltiplas versões em função da Terra em que tinham existência. No quinquagésimo aniversário, a solução encontrada pela DC foi forçar a unificação dos mundos lançando a mão do artifício de um cataclismo. Nas doze edições da Crise nas infinitas Terras, as múltiplas versões eram achatadas numa linha única, descartando no processo alguns super-heróis que não sobreviveriam na realidade unificada (como a SuperGirl e o Flash, mais tarde ressuscitado). No desfecho da trama, para arredondar o agora universo DC, os super-heróis remanescentes tinham as suas memórias apagadas. A elaboração do trauma cósmico resultante da perda da multiplicidade ficava para os leitores.
No Brasil hoje, a sensação que se tem também é de uma crise em muitas dimensões. O fim do ciclo progressista na América do Sul, o desmoronamento do mundo petista, a recessão econômica, o desenlace do impeachment, bem como os desdobramentos da operação Lava Jato e o levante de junho de 2013, todos são episódios que fraturaram a normalidade das narrativas sobre o país. Nessa fratura, proliferam diagnósticos. O que, de fato, fracassou? O progressismo populista, o desenvolvimentismo, a esquerda reformista ou como um todo, o lulismo, o pemedebismo, o pós-neoliberalismo, o processo-PT? A redemocratização chegou ao fim? O marco institucional da Constituinte de 1988 se esgotou? Recorre-se a índices temporais para explicar a resultante do momento: retrocesso, onda reacionária, restauração. Mas para onde? Voltamos à década de 90, ao neoliberalismo? À de 80, da “normalização do caos“? Ao ano de 1964? De 1937 e o verde-amarelo integralista? Ou mais além, teríamos regredido aos baronatos do café da República Velha?
As tentativas de explicação linear, no vaivém entre progresso e retrocesso, no entanto, não resistem à cartografia dinâmica de reconfigurações e reposicionamentos que uma crise tão multiescalar determina. Para dar alguns exemplos, a exposição propiciada pela Lava Jato do mecanismo persistente de saque bilionário dos fundos públicos pela casta política, a permanente agitação de redes e mobilização social decorrente de junho de 2013, ou o desmonte de um desenvolvimentismo sublimador de exploração, corrupção e desastre ambiental, nada disso pode ser relegado a segundo plano a fim de se nivelarem as tendências atuantes na conjuntura segundo um vetor de retrocesso geral. Haveria que se analisar também até que ponto algumas reformas do governo interino são obra do diabo, ou se merecem ser ponderadas à luz da experiência dos últimos 13 anos. Não fazer isso seria um desserviço ao espírito de nuance, primeiro requisito para uma eventual recomposição de terrenos de resposta, na ação e no pensamento, aos desafios complexos do presente. Ajuda pouco recauchutar dicotomias quase automáticas que, diante da precipitação do desconcerto suscitada pela crise, se tornaram ideias fora do lugar, o que não impede que elas tenham outras funções, do cinismo lucrativo à utopia impotente. E não é que as ideias outrora estivessem erradas, os fatos é que mudaram.
De todas as narrativas, a com maior ímpeto unificador foi a do golpe. Desde o mensalão, as forças governistas ao redor do PT adotaram a lógica da “guerra de narrativas”, como resposta ao que seria uma hegemonia conservadora da grande mídia corporativa. A guerra de narrativas embute uma narrativa de guerra. Aqueles não entrincheirados na contra-hegemonia discursiva ou fazem parte das elites golpistas, ou estão submetidos a um sobrenatural poder manipulador da imprensa que as representa. Dessa contraposição amigo x inimigo, nomeia-se o “PIG” (Partido da Imprensa Golpista), que seria um dos principais entraves para a efetivação de um projeto popular no país. É a partir dessa gramática hegemonista que as críticas viram “guerra psicológica”; a perda das bases políticas, “tentativas de desestabilização”; e o fiasco do ensaio desenvolvimentista, “sabotagem imperialista”. A narrativa do golpe de estado para qualificar o impeachment foi o ápice dessa falsificação, tentativa extrema de tocar o corno da guerra para chamar uma unidade desesperada, quando o edifício já balouçava além do centro de gravidade. Uma saída fácil e redentora, “saída à esquerda”. Em 2015, a gestão das expectativas do campo governista (a guinada à esquerda) já havia cedido lugar à gestão das frustrações, como num purgatório terapêutico que repõe sem cessar subterfúgios para adiar o óbvio.
Junho de 2013 foi um terremoto que abalou o sistema político, todos os partidos, irreversivelmente. Mas seus dirigentes optaram por encastelar-se no gabinete e no marketing. A eleição de 2014 injetou ânimo na guerra de narrativas, quando por um momento se acreditou que seria possível escapar dos tremores mediante bunkers. Deles, se comandariam as campanhas generosamente financiadas pelos propinodutos. O otimismo durou pouco. Na tormenta perfeita que se abateu no ano seguinte, a guerra das narrativas deu com os burros n´água quando ficou claro que, antes do que narrativa sobre as coisas, era preciso disputar as coisas mesmas. O máximo que pôde conquistar foi ter irritado boa parte da população, que, apesar da justa indignação, se viu rotulada de manipulada, reaça ou coxinha nas redes sociais. Em meio às revelações da Lava Jato, ao fracasso da nova matriz econômica e ao estelionato eleitoral, a perda de um programa de ação levou as narrativas a girar sobre o vazio, numa espiral de tautologias finalmente recodificada como movimento identitário. Ser de esquerda contra a direita (do grupo X contra Y) se converte num bem em si, consolidando a moral cerrada do lugar de fala e da renúncia de privilégio.
Uma virtude de junho de 2013 foi não ter funcionado na lógica da hegemonia, a serviço de uma alternativa de poder ou da sua conservação, e menos ainda de uma guerra de narrativas, que só depois se lhe impuseram. Nesse aspecto, junho ainda é um enigma cuja incompreensão custa caro. Aquela também foi a virtude do ciclo global de lutas disparado com as primaveras árabes em 2011 e a Praça Tahrir, que hoje encontra ressonâncias seja no NuitDebout francês, nas extraordinárias ocupas das escolas brasileiras, ou nas plataformas municipalistas da Espanha. A grande restauração à vista consiste na estratégia de soterrar essas aberturas com o peso das unidades necessárias, à direita ou à esquerda. Diante de desafios que mal mapeamos, agarrar o presente pelos chifres passa, primeiro, pelo gesto despressurizador de recusar essas saídas, aliás, a própria ideia que haja uma saída. Uma constatação desopilante. Há um quê de momento tropicalista em metabolizar os impasses que nos cercam, como um impulso doloroso e criativo. Talvez seja preciso, em vez disso, entrar, abraçar a crise das infinitas terras. Colocar-se à altura de seu multiverso contra a imposição de uma história. Essa crise, afinal, é o que coloca em contato mundos até então separados, numa interferência ao mesmo tempo produtiva e disruptiva.
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