Murilo Duarte Costa Corrêa[1][2]
“Não seja aquele que desmascara, mas aquele que se reúne; nem aquele que levanta os tapetes sob dos pés dos crentes ingênuos, mas aquele que oferece arenas para reuniões.”
Bruno Latour
Quando uma figura crucial para as práticas ecológicas mundiais como Bruno Latour desaparece, isso pode ser um sinal de que as ecologias também estão desaparecendo um pouco. Este desaparecimento parcial das resistências ecológicas pode ser sentido especialmente no Brasil, um país assombrado pela quase-possibilidade de um segundo mandato presidencial da milícia/família de Bolsonaro.
Eu não gostaria de fazer, e não farei, deste texto um obituário; nem estou disposto a esboçar aqui uma pequena peça que coletaria as mil razões pelas quais nós, no Brasil – e com maior razão no mundo –, deveríamos nos sentir todos condenados.
Ao contrário, prefiro lembrar que Baruch Spinoza escreveu que “Um homem livre não pensa em nada menos do que na morte; e sua sabedoria é uma meditação não sobre a morte, mas sobre a vida”. Se assim for, o desaparecimento de alguém sempre aponta para a necessidade de um esforço coletivo para relançar a potência do que Gilles Deleuze, no limiar de seu próprio desaparecimento, chamou certa vez de uma vida…
Por outro lado, o surgimento de neofascismos aqui e acolá, em todo canto do mundo, exige uma remontagem do pensamento, do sentimento e da ação coletivos diante desta meditação sobre a vida. E isso se faz em meio às sentenças de morte ditadas pela corrente imaginação dos poderes em curso. A recente eleição de Giorgia Melloni na Itália nada mais foi do que o mais recente – e muito provavelmente não terá sido o último – empuxo vindo desta onda feroz que tudo arrasa ao redor do globo.
A esta altura, alguém poderia estar se perguntando: “o que liga o desaparecimento de Latour ao neofascismo brasileiro?”. A resposta está no fato de que o cruzamento destes dois eventos poderia ajudar a diagnosticar o perigo em que nos situamos atualmente, assim como ajudaria a evitar o erro de imaginar que “o que resta” dos partidos de esquerda no Brasil ainda encarna uma verdadeira alternativa política ao bolsonarismo. Não encarna, e não há novidade alguma (nem boa, nem má) em dizer isso.
Enquanto lutamos com os dualismos metafísicos da imaginação política tradicional na ânsia de enfatizar “a insistência das forças sociais progressistas”, a extrema-direita literalmente ganha terreno e dissolve todas as alternativas remanescentes de centro e de esquerda. Perceber isso apenas desloca o domínio onde as lutas devem se situar a partir de agora; e mesmo que as lutas possam passar por Brasília, certamente não estão confinadas ao centro aparente do poder político do Brasil: elas estão dispersas por toda parte, apenas esperando por ecologias que as agenciem em transversais e as carreguem em vetores de proliferação.
O Brasil acaba de enfrentar a possível reeleição de um presidente cujo governo foi responsável por 11% das mortes globais relacionadas à Covid, quando o Brasil responde por não mais que 3% da população mundial (Rede Brasil Atual, 2020).[3] É crucial lembrar que a maioria dessas vítimas eram pessoas pobres, negras, pardas e indígenas vivendo por todo o território brasileiro. Como se esta quantidade de tragédia não fosse suficiente, a administração Bolsonaro também é responsável por um aumento de 56,6% no desmatamento da floresta amazônica brasileira desde que seu governo começou, em 2019 (IPAM, 2022).[4]
Surpreendentemente ou não, ao digitar estas palavras, leio online que as pesquisas eleitorais acabam de captar um aumento nas intenções de voto pró-Bolsonaro justamente nas áreas de intensificação do desmatamento (Folha de São Paulo, 2022).[5] Como podemos entender o enigma em que todos nós estamos?
Tudo isso desenha duas linhas, locais e ameaçadoras da vida em geral, ligadas à circulação global dos fluxos de informação e dos afetos que se prolongam em suas pontas soltas. Linhas que definem uma crise muito mais preocupante do que aquela que o cenário social e político brasileiro parece encarnar com precedência.
O que este cenário pode tornar mais claro para todos é que a eleição brasileira testemunha o desaparecimento das ecologias num duplo sentido, ambos em relação à vida. O primeiro, diz respeito ao óbvio desmatamento da floresta amazônica e, com ele, a liquidação da sua diversidade étnica, social e biológica. Ela diz respeito à vida e seus modos, à vida no movimento de estender linhas transversais entre terra, plantas, animais, humanos e não-humanos, à variedade de usos e técnicas, bem como às múltiplas formas de ser, de fazer e de se relacionar uns com os outros. Quando mineradores ou indústrias madeireiras se organizam para liquidar a Floresta, eles estão desaparecendo com todas as possíveis ecologias que a Floresta contém.
A segunda, diz respeito a uma crise de subjetividade que é delineada pela crise mais ampla das ecologias. Esta crise é alimentada pelo desaparecimento da vida, de campos sociais heterogêneos e etnodiversidades, e alimenta as áreas urbanas e rurais com os componentes subjetivos e fluxos de crenças que permitem que o desmatamento se intensifique e continue sem cessar.
No entanto, esta crise parece ter um caráter particular. Ela é marcada por um enigma que liga liberdade e morte, no qual a liberdade é expressa e vivida de forma fascista – uma forma que se sustenta no exercício de um poder de distribuir a morte em torno de si mesmo de forma ampla e desigual. A obsessão assassina de Bolsonaro em armar a população civil é a metonímia perfeita dessa relação. Este tipo de poder funciona em todos os lugares, varando cidades e Florestas; atravessando áreas rurais dinamizadas por tecnologias agroindustriais e pesticidas que envenenam os solos e as águas subterrâneas.
As redes sociais funcionam como um dos modais logísticos que intensificam a viralização de componentes neofascistas da subjetividade. Elas são também o palco para a luta encenada dos fascistas patriotas contra as forças sociais supostamente progressistas (digo “supostamente” porque, hoje, elas orbitam a defesa necessária e urgente das instituições do Estado e da democracia liberal).
Não se trata de uma batalha entre pessoas, e menos ainda de uma guerra civil. O que acontece é, em toda parte, uma guerra molecular na qual fluxos de subjetividade, crença e afeto – incapazes de criar alternativas construtivas e coletivas – confrontam-se e medem-se com uma intensidade variável de violência política, e recompõem sua sensibilidade ressentida em torno de líderes catalisadores.
O enigma é que a guerra molecular online efetivamente faz algo. Ela lança uma (anti)ecologia paradoxal de conceitos e subjetividades que neutraliza e restringe a implantação das ecologias ambientais e reais. E, pelo menos no Brasil, ela funciona em toda parte. Não estou dizendo que as mídias sociais online determinem o que quer que seja. Digo, sim, é que elas constituem um terreno privilegiado, de uma semiótica mista, em que ecologias e subjetividades se atravessam, compondo e decompondo umas com as outras.
O neofascismo é um tipo de slogan mutante e maleável para as subjetividades, preparado e intensificado online, que é capaz de produzir efeitos reais e governamentais. Lembro que no pior período da pandemia, os discursos de Bolsonaro contra as vacinas, aliados à proliferação do WhatsApp e dos grupos negacionistas do Telegram, ganharam terreno no campo social e incubaram os movimentos Anti Vax no Brasil – um país mundialmente conhecido por suas políticas de vacinação historicamente bem sucedidas.
Tudo, mesmo “o que restou” da esquerda brasileira, faz parecer como se tivéssemos que enfrentar um cenário social e político já aprisionado nos axiomas de extrema-direita. No Brasil, o agronegócio e as indústrias extrativas tornaram-se o modelo de capital e de produção de superávit para as finanças do Estado e os acionistas privados. Sua predominância deixa a impressão de que há cada vez menos espaços políticos semelhantes aos que Bruno Latour chamaria, e endossaria, como um “Parlamento das Coisas”.
As religiões familiaristas e cristãs estão engolfando todas as outras possibilidades de crença, e dissolvendo as fronteiras modernas entre os domínios teológico e epistêmico. Isso não significa, como diria certo filósofo italiano, que a Medicina ou as Ciências se tornaram uma “nova religião secular”. O que acontece é o exato oposto: a religião é que está dissolvendo as ciências de uma forma pós-moderna e pseudodemocrática que Bruno Latour nunca imaginou, desejou ou afiançou.
O desaparecimento das ecologias está nos levando a constituir um Parlamento cada vez mais Moralista de Homens e Mulheres (não raro, ambos brancos, heterossexuais, cristãos e conservadores, familiaristas e morais) declarando a superioridade das commodities sobre a vida; preferindo desmatar modos de ser e de viver, ao invés de ajudar a produzir o que a pensadora brasileira Barbara Szaniecki (2020; 2022) vem chamando de “Florestamento”[6] de espaços urbanos, áreas rurais, florestas e – acrescentaria eu, lado a lado com Félix Guattari – conceitos e subjetividades.
Dirigir as crenças para os Céus sob a forma da Fé Cristã constitui a dimensão religiosa do enigma ecológico dos fluxos subjetivos que estamos enfrentando. Esse enigma convoca a reabrir a Fé na direção do mundo; a redirecionar os fluxos sociais de crença e de criação de volta para a Terra, como as religiões de matriz africana tendem a fazer. Ao lado disso, podemos tentar redirecionar esses fluxos subjetivos de crença para as ecologias de múltiplas aberturas das cosmologias ameríndias. Elas fabricam um mundo que funciona, já e a seu modo, como um Parlamento das Coisas, no qual a ecologia, os seres humanos e os seres não-humanos podem “ser” e são “deixados estar”.
Nosso verdadeiro dilema não é que não existam alternativas progressistas à espera de uma subjetividade política que apareça e se inscreva nela. Nosso dilema consiste na falta de uma ecologia consistente do meio ambiente, da subjetividade e dos conceitos, que possa desmontar o vínculo prático entre a morte e a liberdade, que dá consistência ao ecumenismo da extrema-direita.
Nosso desafio não se limita a deter o desaparecimento das ecologias em todo o mundo, mas precisa produzir o desaparecimento desta ecologia de destruição que hoje responde pelo nome da extrema-direita. Por mais contraintuitivo que possa parecer, seremos derrotados se não começarmos a recuperar nosso próprio terreno, e reaprendermos a cultivar as nossas próprias ecologias. Ou seja, reagenciar a liberdade e a morte por nós mesmos e na direção da Terra, nos termos de uma vida…
[1] Este texto foi escrito antes do resultado das eleições, em 10 de outubro de 2022, e uma versão em inglês dele foi publicada em 02 de novembro de 2022 em <https://criticallegalthinking.com/2022/11/02/on-the-vanishing-of-ecologies-latour-and-global-destinies-imagined-from-brazil/>.
[2] Professor Associado de Teoria Política na Universidade Estadual de Ponta Grossa, Brasil.
[3] Fonte: https://www.redebrasilatual.com.br/saude-e-ciencia/com-3-populacao-brasil-tem-11-das-mortes-por-covid-19-no-mundo-em-2020/
[4] Fonte: https://ipam.org.br/desmatamento-na-amazonia-cresceu-566-sob-governo-bolsonaro/
[5] Fonte: https://www1.folha.uol.com.br/ambiente/2022/10/bolsonaro-avanca-em-votos-nas-cidades-campeas-de-desmatamento-na-amazonia.shtml
[6] Szaniecki, B. (2020). « A » comme Amérique, Amazonie et abeilles. Multitudes, 81, 169-174. https://doi.org/10.3917/mult.081.0169. Há uma versão brasileira na revista Lugar Comum (UFRJ) que pode ser consultada em: https://revistas.ufrj.br/index.php/lc/article/view/40885. Ver, ainda: Szaniecki, B. (2022). Reassembling People, Redesigning Forests, Reforesting Democracy. In: Proceedings of the Participatory Design Conference 2022 – Volume 2 (PDC ’22). Association for Computing Machinery, New York, NY, USA, 20–24. https://doi.org/10.1145/3537797.3537803.