Democracia Destaques Império

A dimensão histórica da mudança de paradigma assumida por Trump

Nane Cantatore, 13 de fevereiro de 2025
Tradução: Felipe Fortes

Acho que é necessário levar o Fedorento[1] (Trump) a sério. Não ele em si, que seria uma tarefa difícil demais, mas sim a configuração política geral que ele representa. Explico: a história está repleta de figuras imponentes, cujas habilidades e idiossincrasias parecem ter moldado os contornos de épocas inteiras, mas sabemos bem que seus feitos só foram possíveis devido a dinâmicas muito mais profundas. Se Napoleão tivesse sido atingido por uma bala perdida no dia 13 de Vendemiário, a Europa ainda assim teria sido sacudida pela tempestade revolucionária, que acabaria por sucumbir às suas próprias contradições, resultando em alguma forma de Império desajeitado e atravessando o século entre tribulações, promessas e descobertas. Se Schicklgruber (o pai de Hitler) tivesse se enforcado na cela de Munique, dificilmente teríamos nos livrado dos fascismos que tomaram quase todo o continente e da convulsão necessária para erradicá-los.

Em suma, por mais interessantes que sejam as análises sobre os traços pessoais do Fedorento, acredito que elas falham em atingir o verdadeiro alvo: as condições que possibilitaram seu retorno ao poder, apesar da montanha de escândalos que carrega, e, mais ainda, os fatores que definem seu campo de ação.

Nesse sentido, pode ser útil retomar uma reflexão que esbocei anteriormente ao falar sobre o império, na qual argumentei que uma instituição imperial, para funcionar, precisa do consentimento ativo das “províncias”. Em outras palavras, um império pode até se constituir pelo uso da força — aliás, muitas vezes nasce de conquistas e guerras vencidas —, mas, para se sustentar, precisa de um conjunto de condições que tornem mais atraente para as províncias permanecerem sob seu domínio do que sair dele. Esse aparato é, na prática, uma combinação variável de proteção contra ameaças externas, segurança jurídica, prosperidade econômica, avanços científicos e tecnológicos, hegemonia cultural e um certo sincretismo multiétnico e multicultural, de modo que nenhuma das principais nacionalidades do complexo imperial se sinta completamente alheia ao sistema.

Como mencionei, tudo isso tem um custo, mas também apresenta vantagens — vantagens que, no entanto, só fazem sentido dentro da lógica imperial, ou seja, da manutenção da influência do centro sobre as periferias e de um desenvolvimento que se mede pelo conjunto do império, e não apenas pela nação dominante. Este é um dos pontos de atrito entre o império e a nação: para o primeiro, o que importa é a situação global e, pelo menos internamente, a competição entre diferentes regiões não é um jogo de soma zero, pois cada parte contribui para o todo, e a concorrência desenvolve a eficiência geral. Já a nação está em competição constante com as outras e, sempre que perde, o benefício vai exclusivamente para outra nação.

A nação, em suma, está em oposição dialética com o império (e o mesmo vale para nacionalismo e imperialismo): a primeira é compacta, unitária, contraposta ao que lhe é externo, conservadora; o segundo é articulado, plural, aberto ao exterior (pelo menos como possível território de expansão), progressista.

Estou falando de forma aproximada., mas o quadro geral é esse e, a partir daí, derivam comportamentos completamente distintos. Por exemplo, um elemento central para o funcionamento de um império é a confiabilidade dos compromissos assumidos, sobre os quais se baseia a credibilidade dos pactos imperiais e a estabilidade das relações dentro do sistema imperial. Um exemplo clássico da importância desse fator é a oposição entre a fides (confiabilidade, lealdade, fidelidade) romana e a perfidia (deslealdade) cartaginesa, descrita por Tito Lívio: se os aliados itálicos não abandonaram Roma para seguir os apelos de Aníbal quando, após a vitória em Canas, ele dominava por onde passava e percorria o sul da Itália tentando romper os laços de aliança que sustentavam o imperium romano, isso aconteceu justamente porque os aliados sabiam que podiam confiar na fides dos romanos, enquanto os púnicos os teriam deixado na mão na primeira oportunidade. De fato, a ideia do interesse nacional como bem supremo subordina até mesmo a lealdade aos compromissos assumidos e pressupõe idêntica volatilidade nos compromissos alheios.

A essa altura, deve estar clara a importância histórica da mudança de paradigma assumida por Trump. Se a administração Biden, com todas as suas falhas, tinha a aspiração explícita de continuar a vocação imperial que guiou a política americana pelo menos desde Teddy Roosevelt (basta pensar na sua referência aos EUA como essential nation devido ao seu papel de garantidores globais da democracia e do rule of law), a de Trump remete explicitamente ao movimento isolacionista (e filofascista) America First. Daí vem o seu mercantilismo explícito, que não pode tolerar o déficit comercial americano, mesmo que este seja uma pedra angular da prática imperial — ou talvez justamente por isso. Daí também a tendência a bravatas e mudanças bruscas de posição, incompatível com a fides imperial. E, por fim, daí vem o substancial desengajamento do contexto europeu anunciado por Hegseth, que, na prática, coloca em questão todo o arranjo transatlântico, pilar da política americana pelo menos desde a intervenção na Primeira Guerra Mundial.

Enfim, trata-se de uma virada de importância histórica que, se concretizada, indicaria um respaldo muito maior do que o da atual administração e seus homens, especialmente considerando o quanto uma série de pilares fundamentais das instituições americanas — a Suprema Corte à frente — já havia sido desmontada no mandato anterior do Fedorento-em-Chefe. Para compreender essa dimensão, basta olhar para o que está acontecendo dentro dos próprios EUA. Não me refiro tanto à caça às bruxas contra os “woke” ou à cruel e autossatisfeita política anti-imigração, mas sim à destruição programática e sistemática da coisa pública americana, sob o pretexto de cortes nos desperdícios e com a conveniente e gigantesca apropriação de dados por parte de um sujeito que é um monumento vivo ao autoritarismo patronal e ao conflito de interesses — algo que, comparado a isso, fazia do nosso pobre Cavalier Soletta um verdadeiro Di Vittorio[2].

Aqui chegamos ao verdadeiro significado da palavra-chave do mantra fundamental dessa extrema-direita americana: Again. Como quem diz: a América já foi grande um dia, e agora é preciso restaurar essa grandeza perdida. Esse, claro, é o velho mito de todo espírito tacanho reacionário, desde Catão, o Censor[3], em diante, mas o essencial é entender a qual passado dourado eles querem retornar. Por anos, os americanos viveram sob o mito da Golden Generation, aquela que venceu a Segunda Guerra Mundial, experimentou a grande prosperidade dos anos 1950, consolidou a hegemonia global do país e ainda deu início ao processo de dessegregação e direitos civis. Um ideal quase bipartidário, marcado por liberdade, progresso e prosperidade para (quase) todos, que ainda exerce um forte apelo nos cruciais estados industriais que lamentam os bons tempos em que os blue collars americanos tinham empregos estáveis e bons salários. Mas creio que a era ideal a ser restaurada, para o grupo atualmente no poder, remonta muito mais longe: antes de 1913, quando o Congresso aprovou a 16ª Emenda, que constitucionalizou o imposto de renda, ou, melhor ainda, antes de 1894, quando o Wilson-Gorman Tariff Act tentou reduzir tarifas alfandegárias compensando a perda de receita com o primeiro imposto federal permanente sobre a renda.

Tudo se encaixa dentro desse quadro:

  • Um Estado mínimo, que precisa de pouco dinheiro, obtido por meio de tarifas alfandegárias;
  • Nenhuma redistribuição fiscal, nenhum Estado de bem-estar social, nada que obrigue os ricos a dar um centavo ao resto da sociedade;
  • Nenhuma lei que imponha restrições sociais, ambientais ou de responsabilidade às empresas. Fim dos órgãos reguladores, retorno à era dos robber barons[4];
  • Criação de uma nova Tríplice Fronteira — formada pelo espaço, pelo digital e pelas criptomoedas —, a ser explorada por quem quiser se lançar e pegar o que puder, essencialmente sem leis nem fiscalização;
  • Que se danem as minorias e os direitos civis, até porque, com o colapso do bem-estar social e da coisa pública, os únicos espaços de sociabilidade serão os das congregações religiosas.

Nessas condições, o refúgio no nacionalismo não é apenas previsível, mas inevitável — um corolário lógico. Por exemplo, se o seu Estado sobrevive com tarifas alfandegárias, não pode garantir a liberdade de comércio, que é a força vital de um império; se você elimina todas as regulações sobre as suas empresas, não pode manter o conjunto de regras que evita que o império desmorone sob a pressão da competição de soma zero; se faz do nacionalismo tosco sua bandeira cultural, adeus hegemonia — e assim por diante.

Agora, se tudo isso faz sentido, então também se entende a política de retração geral que o Fedorento seguiu em seu mandato anterior e ainda mais no início deste. O fim do envolvimento no Iraque e no Afeganistão, a possível interrupção do apoio à Ucrânia, a recusa em contribuir de forma decisiva para a segurança europeia — são todos movimentos perfeitamente coerentes. Pela primeira vez desde 1945, os EUA declaram que não são mais uma potência global, que precisam escolher em quais cenários se engajar e que não hesitam em sacrificar seus aliados. Se eu fosse Taiwan, não dormiria muito tranquilo, pois, com essa lógica, é bem possível que amanhã o Fedorento ligue para Xi, o chame de great guy, reconheça que ele tem suas razões e sugira que podem fazer negócios juntos — que a China só se aproveitou porque ele não estava no comando, mas que agora dá para voltar a ser razoável.

Quanto a nós, europeus, é preciso ter clareza sobre o tamanho das implicações disso tudo e entender que devemos garantir nossa própria segurança (temos os meios para isso), produzir nossa própria tecnologia (temos os meios para isso) e perseguir nossos objetivos estratégicos em escala global (temos os meios para isso).

[1] No original, “Puzzone”, que é uma forma coloquial romana para dizer que alguém que cheira mal. Nota do tradutor.

[2] Cavalier Soletta é um apelido irônico para Silvio Berlusconi, ex-primeiro-ministro da Itália. “Cavalier” remete ao título honorífico de Cavaliere, que Berlusconi possuía, e “Soletta” pode sugerir algo pequeno, inofensivo ou mesmo deteriorado, em tom sarcástico. Giuseppe Di Vittorio (1892–1957) foi um renomado líder sindical italiano e um dos fundadores da CGIL (Confederação Geral Italiana do Trabalho), conhecido por sua defesa dos direitos dos trabalhadores. Nota do Tradutor.

[3] Catão, o velho, (Marco Pórcio Catão, 234–149 a.C.) foi um político e moralista romano conhecido por sua oposição à influência cultural grega e sua defesa dos antigos valores romanos. Ele via a República Romana como corrompida pela sofisticação estrangeira e pregava um retorno às virtudes passadas. Nota do Tradutor.

[4] Robber baron é um termo usado nos Estados Unidos para descrever certos magnatas industriais e financeiros do final do século XIX e início do século XX, que acumulavam fortunas enormes através de práticas consideradas exploratórias e antiéticas. Nota do Tradutor.

X