Por Marilia Muniz Leal
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Uma característica dos sistemas de opressão é operar, também, em níveis subjetivos que custamos a reconhecer. Nisso reside a sua força. Portanto, a esquerda não está livre de reproduzir machismo, racismo, homo/lesbo/transfobia. Os poucos textos e discussões acerca do tema costumam justamente lembrar que é comum que indivíduos perpetuem, mais ou menos conscientemente, certos comportamentos considerados naturais na sociedade em que estão inseridos – o que não os isenta da responsabilidade de desconstruí-los.
Sim, existe machismo na esquerda. Seja nas assembleias estudantis, nos movimentos sociais, nos partidos ou nos coletivos de cultura e arte ditos “progressistas”, é comum que os homens detenham a maioria das falas e que recebam maior credibilidade.
Somos, com frequência, silenciadas de formas aparentemente sutis: falas de mulheres são muitas vezes menos requisitadas; não raro, são interrompidas, mesmo quando homens tem seu tempo respeitado; em outros casos, após ouvir a opinião de uma mulher, os debatedores do sexo masculino continuam sua explanação do ponto em que haviam parado, ignorando aquela colocação.
É o machismo atuando quando uma ativista é tratada por “musa” da juventude do partido, da revolução ou do que quer que seja, porque essa lógica deslegitima a sua postura, ao reduzi-la a um mero incentivo aos homens heterossexuais que – estes sim – desenvolveriam a atividade política séria. Qualquer insinuação supostamente elogiosa de que as mulheres “enfeitam” ou “alegram” o ambiente reproduz a objetificação. Não somos almofadas, somos pessoas.
Não é acaso quando a divisão de tarefas destina aos homens as atividades intelectuais, a moderação, o direcionamento das reuniões e o papel de porta-voz do coletivo, enquanto as mulheres desempenham as funções de produção, logística e trabalhos manuais por “identificação”. Quando o protagonismo é masculino e as mulheres se inserem em atividades organizacionais de apoio, isso não é só “gosto”. É reflexo dos lugares predestinados pela sociedade patriarcal.
A maior comprovação de que os espaços de militância não necessariamente representam segurança para mulheres são as notícias de estupros em ocupações, assim como o surgimento, em discussões, dos tão conhecidos xingamentos que visam constrangê-las por sua sexualidade livre.
Outro ponto essencial à discussão sobre o machismo na esquerda é a forma como são tratadas as relações afetivas e sexuais. A vida privada também é campo – e campo importantíssimo – de ação política. Também é machismo forçar aproximação de mulheres que claramente não estão interessadas. É machismo deixar os afazeres domésticos e o cuidado com os filhos recaírem sobre suas companheiras. É machismo enganá-las, tirando proveito da compreensão de monogamia que controla os corpos femininos enquanto condescende com as experimentações masculinas. É machismo desconsiderar, num envolvimento duradouro com uma mulher, toda a carga de expectativas amorosas incutidas nela desde a infância. É machismo desqualificar suas vivências e posições políticas com argumentos de autoridade.
Mulheres: que reafirmemos que a nossa luta se faz todo dia. Que consigamos, juntas, desbravar e propor novos caminhos. Homens que querem construir um mundo igualitário: tenham autocrítica e revejam diariamente como podem estar se beneficiando, ainda que de formas invisibilizadas, de uma violência que é sistêmica e estruturada. Não se pode ser, a um só tempo, libertário e opressor. Machistas não passarão. Machistas de esquerda também não.