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A Fraqueza Teórica dos Movimentos Sociais e a Perda de Massa das Instituições Organizadas

Decepção. Este foi, inicialmente, o sentimento que experimentei, há dois dias, ao chegar à Praça do Derby, ponto central de reunião dos movimentos sociais de onde partem as manifestações. No Dia Nacional de Lutas, quando a multidão deveria tomar de assalto as ruas da cidade, a quantidade de pessoas ali aglomeradas era ínfima. Mesmo um pouco mais tarde, quando as diversas organizações que agrupam as mais variadas categorias de trabalhadores começaram a somar-se ao pequeno número de participantes, minha sensação não mudou muito. De fato, ao contrário do que ocorreu em outras oportunidades, particularmente na grande manifestação das 100 ou 120 mil almas, de 20 de junho passado, o cortejo parecia tratar-se de uma dessas maratonas olímpicas, em que os corredores de cada país representam sua nação. Como a quantidade de países não se assemelha à de manifestantes das passeatas dos últimos tempos, é possível calcular o nível dos eventos desta semana . Digo eventos, no plural, porque, ao chegar em casa, procurei assistir ao que ocorria em outras cidades, e o resultado era, mais ou menos o mesmo: 10%, no máximo, dos contingentes explosivos das manifestações anteriores.

 
Algum tempo depois, ao pensar um pouco sobre esses acontecimentos, o que emergiu primordialmente como decepção transformou-se numa preocupação sobre os rumos das rebeliões que dominam o Brasil atual. Por que a convocação das instituições organizadas não recebeu o apoio da multidão que abalou a sociedade nos dias presentes? Afinal, não foi um chamado para o Dia Nacional de Lutas? Essas lutas envolvem apenas determinados setores da sociedade ou seu conjunto de modo geral? Em tese, a resposta pareceu-me tão clara que temi pelo futuro do movimento. A esquerda não está preparada para um combate sério contra as forças governamentais ou mesmo uma direita organizada e preparada para enfrentar as pressões da multidão, a despeito de certo grau de receio nos primeiros momentos das revoltas populares. A esquerda não se entende por uma razão muito simples. O velho está moribundo, mas ainda não morreu; o novo está nascendo, mas não controla ainda seus próprios passos.

 
É possível que, a essa altura, alguém já comece a perguntar: desde quando os atuais partidos, sindicatos – alguns pelegos –, organizações profissionais representam a esquerda, num universo em que a novidade se apresenta nas reivindicações espontâneas da população, em forma quase de democracia direta, depois do esgotamento de uma representação corrupta, cega aos apelos do povo e sem qualquer legitimidade para falar em nome daqueles que a elegeram de boa vontade? Será, porém, que as coisas se apresentam da forma tão simples quanto se quer fazer crer? Até que ponto a “pureza da criança” pode contrapor-se, sem chocar-se violentamente, com a “maturidade” dos adultos? Até onde as instituições organizadas estão em oposição “total” às manifestações “espontâneas” dos novos movimentos sociais? Antes de continuar esta exposição, deixem-me tornar claras as posições aqui assumidas para que não permaneçam dúvidas sobre elas, ainda que reconheça que nada do que eu diga impeça uma interpretação diferente e até mesmo oposta. Se não é aceitável – ate certo ponto – responsabilizar um autor por aquilo que ele não diz, reconheço, igualmente, que as idéias não são inocentes. Isso significa que, não raro, nos defrontamos, em nossas explicações, com nossas próprias ideias. Assim, vamos direto ao assunto.

 
A hipótese que levanto aqui é a de que, O QUE DE MELHOR E MAIS IMPORTANTE SURGIU NESSE PAÍS, NAS ÚLTIMAS DÉCADAS, É O ATUAL MOVIMENTO QUE PRESSIONOU, DE MANEIRA FORMIDÁVEL, OS PODERES CONSTITUÍDOS DESTE PAÍS, a partir das exigências de um pequeno grupo intitulado Movimento Passe Livre (MPL). Contudo, o que seguiu após as primeiras investidas contra o que era seu objeto principal – a anulação do aumento dos transportes, na cidade de São Paulo, – deixou de ser propriedade particular desse grupo, ampliando seu escopo e se tornando patrimônio de todos aqueles que lutam pela dignidade do ser humano, contra as injustiças sociais de todos os tipos, por uma vida mais digna e, sobretudo, por uma sociedade diferente – para além do capitalismo –, embora nem todos tenham consciência de seu objetivo. O princípio da realidade, de extração freudiana, chegou a um “limite sem limites”, a ponto de o princípio do prazer, que o velho mestre austríaco ainda havia deixado como sobrevivência da humanidade, tenha sido inteiramente violentado pelas instituições do sistema vigente, especialmente suas instituições financeiras. Esta violação escandalosa do que existe de mais “humano na humanidade” perdeu todo sentido no sequestro global do interesse coletivo. A resistência tornou-se o símbolo de todas as revoltas populares; de Seattle a Gênova; dos “riots” ingleses aos incendiários movimentos parisienses; dos levantes estudantis no Chile aos protestos da Grécia, da indignação dos espanhóis ao Ocupai o Mundo – uma derivação européia do Ocuppy Wall Street –, e das contestações da Turquia à inovação prática das manifestações brasileiras.

 
Mas tem algo em toda essa história que não deve (e não pode) permanecer oculta. Independentemente da primazia da democracia direta sobre a desgastada democracia representativa, dos governos quase oligárquicos e de suas instituições reformistas, a práxis tem demonstrado (e demonstrou mais fortemente agora), que os resíduos contaminados pelas práticas duvidosas dessas instituições ainda podem servir de alimento para a transformação social que tanto desejamos. Quem leu os escritos de Marx com atenção deve ter notado que, para ele, toda reforma que contribuísse para o avanço social deveria sempre ser bem-vinda. Não é o reformismo gradual (ou reformismo revolucionário, como intitulava Carlos Nelson Coutinho) que caracteriza a ausência de transformação social. É a perda da subjetividade revolucionária e sua submissão ao existente. Vi, com certo pesar, como os movimentos extraordinários das últimas semanas abandonaram o campo de batalha quando deveriam ter “engrossado” a luta e levado seu propósito às últimas consequências. Ficou comprovado que, se a direita não consegue reunir mais do que um punhado de semianalfabetos políticos que insistem na visão de que o mundo caminha para uma prosperidade inigualável (100 pessoas, ao todo, numa avenida de São Paulo, e mais nenhuma em qualquer outro lugar), a esquerda demonstrou, igualmente, sua tradicional tendência para a fragmentação.

 
Indagaria, a essa altura, o que seria do país, se as duas frentes, com todas as suas diferenças, marchassem numa só direção, com um só objetivo, um só propósito, ainda que com organizações diferenciadas? Se os novos movimentos sociais conseguiram provar que são os únicos, hoje, capazes de levar as multidões às ruas (o abismo entre a grandiosidade das manifestações “espontâneas” e o quase vazio das passeatas dessa quinta-feira dia 15 é cristalino), com impulso renovador, as instituições organizadas deixaram claro elas detêm a vantagem de possuir o conhecimento sobre a arte de paralisar um país. A greve geral conseguiu deter o funcionamento de, pelo menos, quase metade das forças produtivas do país e das áreas de serviço. Não obstante haja uma desconfiança dos novos sujeitos para com as velhas esferas da política organizada (eu mesmo me incluo entre essas novas subjetividades), e é preciso lembrar que nem todos se enquadram na categoria de pelego – basta lembrar a participação do MST –, creio que elas não podem ser “completamente” eliminadas. É um engano, do mesmo modo, dizer que os movimentos autuais são inteiramente espontâneos. Em determinados momentos são organizados, através das redes sociais, por pessoas concretas que deles fazem parte; e mesmo durante seu trajeto, há quem sugira o “modus operandi” da manifestação e o caminho que o movimento deve percorrer.

 
Dois exemplos ilustram a forma eficaz de fazer política com um ou vários objetivos. Maio de 1968 é um elemento inspirador (não um modelo a imitar, mas devemos aprender com seus ensinamentos) para os recentes eventos. Sua forma de atuação tem algo de semelhante, ainda que o de 45 anos passados tenha sido bem mais violento, notadamente na França. Mas o governo só esteve perto de cair, no momento em que os trabalhadores deflagraram a greve geral em todo o território francês. Duas versões sobre o fracasso fazem parte da história. Uma delas que De Gaulle chegou a pensar na renúncia. A outra tende a se aproximar mais do imaginário, mas há fontes que admitem a verdade do diálogo. O presidente da França teria consultado o general responsável pelas tropas que ocupavam a Alemanha ocidental sobre a possibilidade de seu exército apoiá-lo, em caso de risco da perda do poder. A resposta do oficial surpreendera àqueles que narram o acontecimento: “Se o povo francês deseja um novo governo, o exército não pode ir contra a vontade do povo”. Verdadeira ou não, a narrativa revela que existia a possibilidade iminente da queda do governo francês. E isso só ocorreu porque os trabalhadores franceses encontravam-se numa situação política de total paralisação das atividades produtivas do país. O que contribuiu para a derrota do movimento foi, precisamente, aquele que deveria ter sido o motor da mudança: o Partido Comunista Francês. Ao contrário, este fez um acordo com o governo e ordenou a retirada total do proletariado (não confundir este conceito com o de operariado) de suas posições nas fábricas, empresas e outras instituições, à medida que, aquele movimento era composto por “filhinhos de papai”. Não é mais ou menos o que muitos dizem a respeito das recentes manifestações?

 
Se de um lado é possível detectar o dogmatismo do PCF e seu apego às velhas fórmulas do “socialismo de caserna”, como denomina o sistema soviético o sociólogo Robert Kurz, do outro, fica definitivamente claro que, sem uma demonstração de força que paralise as atividades mais importantes de uma nação, nenhuma revolta torna-se capaz de mudar seja lá o que for. Está aí a Câmara dos Deputados a ridicularizar o movimento com sua recusa de aceitar as principais reivindicações populares. Como repetiu Giordano Bruno diante daqueles que o enviaram à fogueira: “Que ingenuidade. Pedir ao poder que mude o poder”. A lição que aprendemos aqui é que não se realiza uma transformação social apenas com manifestações bem intencionadas. É preciso ir além do “grito”. Todos conhecem, hoje, a célebre luta dos zapatistas contra o governo mexicano, e seu acordo com as autoridades algum tempo depois. (Sim! Às vezes os revolucionários fazem acordos). Passaram a governar 30 municípios por meio de Conselhos e Comunas no Estado de Chiapas. Como, porém, chegaram a esse ponto?

 
Antes do levante, em 1994, o Exército Zapatista de Libertação Nacional levou mais de dez anos, sem ninguém saber, preparando-se para a batalha. Isso significava uma união da teoria e prática (a práxis), em que se promovia um mecanismo de conhecimento mútuo, entre as formas indígenas de autogoverno e os ensinamentos teórico-práticos de guerrilha a cargo do subcomandante Marcos (hoje reconhecido por todos como o professor de artes gráficas de uma universidade pública da Cidade do México, Rafael Guillén) e outros intelectuais ocultos sob diversos codinomes: Gloria Benavides (comandante Elisa), Fernando Yáñez (comandante Gérman) e assim por diante. Não há, aqui, nenhuma sugestão guerrilheira para os movimentos sociais. Chamo atenção para o fato de que o subcomandante Marcos teve que esconder seu passado marxista-leninista do movimento indígena para não causar desconfianças em relação às suas propostas. Mas houve uma integração entre eles sem dirigentes ou chefes. O que se vê, em Chiapas atual, é a formação de Conselhos, comunidades, comunas e outras formas de autogestão onde não há líderes. Um aprendeu com o outro. Como os participantes costumam dizer (eles não denominam suas formas de poder constituinte de “Poder”, mas preferem chamar de “organização”) sobre a maneira com a qual coordenam suas atividades: “mandar obedecendo”. Não existem líderes, mas “atores” que agem oferecendo soluções e recebem de volta o resultado de suas propostas. Essa forma de ação está aberta a qualquer um.

 
Enfim, seria a ocasião de uma boa aprendizagem, mas deixando claro que as instituições tradicionais não têm qualquer prioridade sobre os participantes dos novos movimentos sociais. Ainda há muito para se aprender. Com Beckett se poderia dizer: “Tentar de novo. Errar de novo. Errar melhor”. É uma forma de evitar as grandes catástrofes do passado e terminar naufragando nas disparidades entre teoria e prática que tanto temia Engels, com cujas palavras encerro estes comentários: “O pior que pode acontecer com os responsáveis pelas grandes revoltas é o divórcio entre a teoria e a prática. Se a ênfase recai em demasia sobre a primeira, acaba-se por incidir no erro dogmático; se se insiste apenas na prática, abandona-se os princípios(…). Por isso, os revolucionários descobrem, no dia seguinte, que a revolução que fizeram não era aquela que gostariam de ter feito”. Queremos repetir o Congresso que aí está em 2014? Fica a questão aberta para reflexão.

 
*Fernando Magalhães é Professor do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da UFPE.

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