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A glória dos ucranianos, a vergonha de quem os ridicularizou

Adriano Sofri — 22 de novembro de 2025

As comparações com Yalta são desnecessárias, até porque Roosevelt não era um ajudante de Stalin. Há, porém, um ponto em comum: a volta das zonas de influência. Após 1989, a Rússia havia perdido a sua. Putin tentou recuperá-la de graça em 24 de fevereiro, fracassou, lambeu as feridas e tentou de novo, colocando tudo em jogo — sobretudo a chantagem nuclear. Trump, em quem tudo é paradoxal de modo grotesco — inclusive o isolacionismo, alimentado por bombardeios repentinos e invasões imobiliárias — reafirmou sua doutrina Monroe, transformando países centro-americanos em uma espécie de prisões albanesas cheias, e cruzando o caminho da Venezuela de Maduro, regime horrível cuja queda planejada por armas estrangeiras é igualmente horrível. Nesse quadro, falar em separar a Rússia da China é irreal: o plano servil de Trump para Putin funciona também como uma espetacular autorização para que Pequim tome Taiwan, sua zona de influência.

Multiplica-se o entusiasmo em reconhecer à Rússia uma legítima preocupação com a ameaça da OTAN em suas fronteiras. Imaginem como soa essa deferência aos países que já estavam na aliança ou que decidiram entrar justamente por causa da agressão russa à Ucrânia. Além disso, confunde-se a ameaça que a Rússia de Putin realmente não tolera: não a militar, mas a civil — a de uma Ucrânia europeia e de costumes livres. Para o regime russo, romper a frente militar é menos importante do que forçar a rendição da sociedade civil ucraniana. Seu objetivo mais precioso, portanto, não é o colapso do front, mas o da liderança política — e do presidente Zelensky.

Foi dele a resistência inesperada e o vexame infligido à soberba imperial russa. Assim, quase quatro anos depois, o prêmio mais doce só poderia ser sua queda, sobretudo se produzida — ou até exigida — pela própria sociedade ucraniana. E essa possibilidade passou a ser sentida no ar.

Zelensky fora o herói da resistência. Mas, ao longo dos anos que colocaram todo o povo ucraniano à prova, ele não ajustou a condução do país às mudanças acumuladas — até a irrupção de uma reviravolta indecente como a reeleição de Trump. Os homens permanecem parecidos consigo mesmos enquanto as situações se transformam. O resultado é que a liderança ucraniana, já improvisada como permitem as regras democráticas, atravessou uma fase de unidade imposta pela força maior da guerra e foi se centralizando progressivamente. Entre expurgos, rupturas e demissões, reduziu-se a um gabinete de amigos e cúmplices cooptados, marginalizando o parlamento, as instituições eleitas e a opinião pública.

Esse governo informal chocou-se com a própria miopia e com a exasperação dos jovens em julho, quando tentou, num golpe noturno, neutralizar seu principal obstáculo: as agências anticorrupção. E chocou-se definitivamente quando, nos últimos dias, a revelação de um novo e gigantesco roubo atingiu o círculo presidencial: amigos e sócios fugidos ou presos, ministros demitidos, colaboradores próximos de Zelensky sob ataque. A corrupção é endêmica em muitos países — nós entendemos bem disso — e, na Rússia, é a norma. Mas roubar 100 milhões de dólares destinados à energia num inverno em que combatentes e civis enfrentam escuridão e gelo é demais.

Na quinta-feira, 20, esperava-se que Zelensky, ao retornar, fosse forçado a demitir Yermak — por pressão popular e por parlamentares despertos, inclusive de seu partido. Entre os defensores dessa saída estão, naturalmente, velhos figurões como Poroshenko, cuja inclinação à corrupção é igualmente lendária. Mas é a paciência das pessoas — da pobreza, dos bombardeios, da caça aos refratários — que se aproxima do limite; e não para exigir rendição, mas o contrário.

Nada disso ocorreu no dia 20 de novembro. A portas fechadas, Zelensky disse que Yermak — sentado ao seu lado — continuaria. Ele pôde fazê-lo porque nunca fora tão fraco: jamais uma emergência parecera tão urgente e sufocante a ponto de suspender qualquer desdobramento previsível. A História pressionava do lado de fora daquelas portas — e era invocada. O acordo com Macron sobre os Rafale foi declarado “histórico” — embora só terá efeito em dez anos. “Histórico” também foi o primeiro lançamento de mísseis Atacms em território russo, até então vetado pelos aliados. E “histórica”, sobretudo, a publicação do plano de Trump, a ser aceito ou rejeitado “até o dia 27”, como um velho salário estatal.

Sem essa pressão histórica, alguém talvez tivesse convocado novamente as ruas para exigir a cabeça de Yermak. E, num país castigado por uma guerra longa e mortal, mas exasperado por suspeitas e decepções, uma queda numa resistência interna ao estilo de Salò está sempre à espreita.

Quanto ao homem que oficialmente estava nos Estados Unidos negociando — Rustem Umerov, ex-ministro da Defesa e agora secretário do Conselho de Defesa — até a véspera circulava o boato de que ele não retornaria ao país para escapar a uma prisão. Dizia-se também que Yermak prolongaria sua estadia em Istambul para continuar tratando da troca de prisioneiros… Ambos estavam em Kiev — mas esse é o quadro. Ontem, renunciou o vice-procurador de uma das agências anticorrupção, a SAPO, suspeito de ter avisado Mindich a tempo de permitir sua fuga para Israel.

Trump e Putin não poderiam desejar momento melhor para desferir seu golpe. Nos últimos dias, a discussão pública explodiu na Ucrânia. Leram-se na Ukrainska Pravda, no Kyiv Independent e no Post editoriais inflamados — capazes de fazer inveja aos nossos menestréis de Putin. Só que esses autores são ucranianos, e amam a Ucrânia e suas liberdades.

Do exterior, chamou atenção a intervenção de Timothy Snyder, recomendando que se lembrasse: estamos ao lado da Ucrânia, não de Zelensky — e Snyder está longe de ser seu adversário. E Zelensky faz bem em evitar palavras grandiloquentes demais para denunciar a brutalidade do “plano de Trump”, e assim não acabar encurralado, permitindo mais uma vez que russos e menestréis digam que é a Ucrânia que rejeita cessar-fogo, negociação e paz. (Eles ainda dizem isso!)

Os aliados europeus podem fazer pouco materialmente (moralmente, muito, muitíssimo) diante da imposição norte-americana: aceitar o ricatto ou perder informações e armas.

Há, porém, outra incerteza importante: o cálculo russo. O plano de Witkoff é um ótimo negócio para Moscou — mas pode haver um ainda melhor: deixar que ele fracasse e seguir avançando. Em Pokrovsk, em Kupiansk — que ontem diziam ter reconquistado, quem sabe — e, sobretudo, enfraquecendo a Ucrânia pelas margens. A eleição que o plano determina, dentro de 100 dias, é uma promessa tentadora para o Kremlin: ninguém apostaria na reeleição de Zelensky se ele cometesse o erro de se candidatar novamente. Mas conseguir seu escalpo por meio de um repúdio dos próprios ucranianos — isso faria Putin tocar o céu.

Zelensky talvez confie em uma conclusão — mesmo muito custosa — sabendo que ela atrairia a ira sincera ou fingida de seus muitos rivais. Essa conclusão se chamaria fim dos bombardeios — verdadeiro e doloroso desejo dos ucranianos — e colocaria Zelensky e os seus a salvo dos vingadores do dia seguinte, ainda que sem glória ou com uma glória reduzida. (Ontem, em Kiev, corria o boato de que Umerov teria incentivado a inclusão da anistia universal no Plano.)

Tudo permanece aberto — exceto a verdadeira, tenaz e paciente glória conquistada pelo povo ucraniano. E a vergonha de quem a ridicularizou.

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