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A luta contra o biopoder na metrópole hoje

“Em São Paulo, onde o tempo seco da gestão da vida já estão afirmados há tempos, na forma como a polícia planeja a política de habitação e as imobiliárias executam a política de segurança pública,  o que está em jogo?”

Por Hugo Albuquerque, originalmente no Descurvo, 20/10/2012

Até que ponto podemos dizer que a esperança e o medo, a dupla-hélice do DNA do discurso tirânico, são dois afetos absolutamente diferentes? A esperança se funda em uma negação da atualidade, um abrir mão do aqui-agora em virtude da Promessa — o que, embora se deva a um bônus, essa lacuna protelatória é negativa: medo de viver no aqui-agora. E o medo não deixa de ser a espera(nça) da tristeza. O que interessa nos dois, e não me resta muita dúvida, é a promessa e a expectativa. Hoje, contudo, a promessa e expectativa estão postos de outra maneira: é o desespero e a segurança que avançam e se impõem cada vez como a nova matriz do despotismo.

A diferença está no fato de que as dúvidas sobre a desdita futura, ou passada, são cada vez mais dissipadas: nunca houve tanta certeza sobre o incerto quanto hoje, nunca se morreu tanto de véspera. O cidadão recluso e hipocondríaco das metrópoles pós-pós está certo que, caso saia às ruas e encontre uma multidão, será vítima de alguma violência ou restará contaminado por um mal sem cura. A catástrofe é certa e a única perspectiva que temos, na prática, é das nossas assépticas torres de cristal. Só nos resta a segurança, precisamos lutar por segurança pública — policialesca e inclemente –, por segurança nos nossos posicionamentos e votos — estar de lado até mesmo daquilo que é certo enquanto posição minoritária, nunca ousar –, segurança nas nossas mais íntimas relações humanas.

Em Spinoza, a diferença entre o par medo-esperança — a expectativa ou reminiscência da tristeza-alegria — e o par desespero-segurança é precisamente a ausência de dúvida. Se temos medo, é em virtude de alguma tristeza que nos marcou — a exemplo da dor na forja do Contrato, como nos lembra Nietzsche em Genealogia da Moral — ou que imaginamos que irá nos acometer, mas o desespero é ausência de dúvida sobre o que é por natureza incerto, um senhor abraço à miragem: já não esperamos, irá acontecer. Na segurança ocorre o mesmo em relação a alegria: mas o suposto aumento de potência da alegria está sempre eivado pelo negativo do deslocamento para o futuro, se dizemos que estamos seguros é porque estamos desesperados, é o desespero pela alegria, ele mesmo, que nos faz paranoicos, estar seguro é estar com a potência reduzida em face de um complexo de coisas que, supostamente, nos faz e fará alegres: a portaria fortificada e blindada do prédio, a cerca elétrica, tudo para o nosso bem passado, presente e futuro, enquanto necessário e insubstituível.

O problema é o tempo, sempre o tempo, e como ele se articula: se dinheiro é tempo, e ele o é no capitalismo pós-fordista, testemunhamos a alteração da percepção do segundo e as relações que envolvem o primeiro; com o trabalho dissipado pelo dia, do expediente temperado com a página do facebook aberta até leituras noturnas dos e-mails com os relatórios de vendas, as coisas saem de lugar.

E quem tem reserva de tempo é quem tem dinheiro, tempo para investir, tempo para recuar e fazer opções melhores, segurança, enquanto quem nada tem, ou tem tempo sob a servidão está em desespero; não é preciso brincar com a ameaça de uso da força ou a promessa do bem-estar (pela adesão aos ditâmes do Estado ou o enriquecimento via trabalho duro), basta negociar o tempo curto e dúctil que resta às pessoas comuns: e elas estão certas do mal que virá, logo, o leque de opções é curto.

Talvez a constatação até intuitiva do império do desespero-segurança leve a pensadores como Badiou a darem um novo estatuto para a esperança: precisamos de esperança nesses tempos, cultivar uma potência entre o tempo de aqui e do porvir. Mas em todo caso, a crença — e tratamos de algo que será sempre uma crença — em uma promessa foi o substrato necessário para a construção das redes de segurança social, em outra ponta, da mostra do desespero: “trabalhe e faça parte (da Família, do Estado, da Empresa) porque sem eles você, certamente, estará frito“.

O problema, naturalmente, não é criar meios para dar educação e saúde para populações imensas, mas a forma como isso foi criado, de forma tão pueril que acabou perdido e solapado pela reação neoliberal. E esperança não serve nem para as lutas que se iniciam: é preciso de um virtuosismo renascentista como o de Negri — ou da promessa descumprida do evento Lula, de ser um governo de esperança, quando foi de alegria, apesar de alguma poluição do negativo aqui e acolá.

O despotismo pós-moderno não precisa da força do welfare ou do workfare, tampouco da ameaça do uso de forças militares, ele apenas e tão somente negocia a ansiedade alheia frente ao futuro construído, faz apostas sobre as reservas de tempo, as expectativas e as especulações: o risco, aquilo que há de mais próprio e belo na vida humana, torna-se problema, é preciso depositar nossa liberdade para os soberano por conta do risco.

Olhando a metrópole, as cidades-mãe, vemos algo parecido no Rio: como Paes venceu? Primeiro, porque ele é um aspecto próprio aos paradoxos internos do Lulismo, capturador e capturado, depois porque ele não pertence a um grupo de políticos conservadores que irá para o confronto, como o velho Serra e Kassab, mas sim negocia: ao negociar, nega o ócio, institui um regime de obrigações que, aqui, diz respeito ao tempo esgarçado dos dias atuais, e da pouca reserva de tempo dos removidos nas comunidades frente a uma proposta de quem detém uma reserva quase imensa de tempo, o poder público. Por que não aceitar o cheque e ir embora nas minhas condições?

Foram os removidos ou removíveis que elegeram Paes, enquanto muitos dos que lutaram por eles ficaram no campo eleitoral oposto — que pouco tinha a oferecer frente ao Um Rio, justamente, por não se aliar ao monstro da classe sem nome. O Rio está mais seguro, afinal. O confronto precisa ser, antes, na concepção de tempo: ao negócio, opôr o ócio. É preciso tornar o tempo não suficiente (segurança), mas devir-abundante. Uma esquerda precisa avança mais e mais no sentido de dizer “ou é para todos ou é para ninguém”, na alegria carnavalesca disso, do que “ou tudo ou nada” ou apostar no regime moral da denúncia: “as premissas estão postas, queremos segurança, a falta está introjetada desse modo, eu irei ser complacente com as milícias sim, a minha adesão é funcional, não moral, nem cambiável pela moral”.

Em São Paulo, onde o tempo seco da gestão da vida já estão afirmados há tempos, na forma como a polícia planeja a política de habitação e as imobiliárias executam a política de segurança pública,  o que está em jogo? Haddad não lidera simplesmente por conta do PT, pela sua campanha, embora ambos catalisem bastante apoio, em contraste com o foi recorrente ao longo do anos 00 com Marta, isso não é suficiente por si só: o que interessa ali, mais do que a presença de corpo e alma de Lula, é o movimento espontâneo da multidão das periferias, nas universidades ou mesmo fora de tudo isso, andando nas ruas; não é Haddad que puxa o movimento, é o movimento que potencializa Haddad e é esse o real evento Haddad: ele está muito além das questões internas do PT, das disputas e das certas poluições burocráticas.

A questão não é que Haddad pouco importe, ele importa, mas importa por nada fazer, por não agir na obstrução dos setores vivos que fazem o partido, dentro e em torno dele. Há tempos não se via algo assim em São Paulo, mas certamente nunca se viu desse modo: é o devir-Brasil de São Paulo, ainda que confrontando-se com o tornar-se Brasil, das disputas, do equilíbrio de poder na base e, é claro, da fome do próprio capital paulistano: sim, o capital paulistano, que sabe muito bem que é o governo federal quem tem dinheiro e disposição para investir na cidade, uma vez que Alckmin, no governo do estado, não tem nenhum nem outro, seja pelo seu plano pouco funcional de economizar em tempos de crise — o que vai custar muitas prefeituras no interior — e sua antipatia aguda por Serra.

Como equilibrar, a fome do capital que financia campanhas e controla do mundo e a  efetuação das demandas sociais? Foi ser capaz de dar esse nó que permitiu a Lula levar a cabo boa parte das conquistas dos último anos, maquiavelicamente: aliar-se intensivamente com a classe sem nome, sabendo que é você quem está em função dela e que sua força, por sinal, é imensa. São os paradoxos e o jogo complexo de tudo isso que, inclusive, explica Paes no Rio, conservador, capturado e ao mesmo tempo capturante, face direita do Lulismo que não deixa de abrir-se à esquerdização de fora, ao contra-déspota que vem de fora.

O novo biopoder não se volta para organizar o medo da morte, mas o desespero em vida: estar sem tempo, embora a reserva dele não seja nada menos do que anestésico e cancerígeno. Remete o centro da nossa vida para trás, ou para frente, nos prendendo em um ciclo de remorso e angústias, ele se infiltra, o que exige que nos infiltremos: é mais fácil derrota-lo o abraçando e tirando fotos com ele do que o denunciando. Esse biopoder não precisa da nação, mas da pólis, da metropólis global, pequena mônada onde vive um mundo inteiro — e como diria Clarisse, citada por Negri no Multidão: “O mundo inteiro terá de se transformar para eu caber nele“. O nosso mundo é a metrópole, locus mais global do que o próprio globo; nada mais global do que a pautas meramente municipais que pautam, muito mais do que as nacionais, as presentes eleições.

A biopolítica exige um estado de exceção constitutivo, organizar o desejo de vida, de viver intensamente o aqui-agora porque não se ama no amanhã, só no hoje. A emergência dos que foram feito submersos. Se o problema é tempo, que ele seja abraçado e desembaraçado. O novo Brasil entrará em um novo momento nas próximas semanas: a crise mundial, o STF como tribunal de exceção e a fome do capital de um lado, a classe sem nome em sua fúria monstruosa de cupidez do outro.

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