Por Paul B. Preciado, em Estado mental, 17/4/16 | Trad. UniNômade
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Vocês passam a noite de pé na Praça da República em Paris e eu passo a noite acordada com vocês nas ruas de Atenas. Cai a noite uma hora mais cedo aqui, quando o céu escarlate se curva atrás do Partenon como num protetor de telas de um MacBook. Melodia que depois vai se deitar sobre Paris.
A revolução (a sua, a nossa) sempre nos cobrou acordar no meio da noite. Ativar a mente justamente quando ela parece entregar-se ao sono. A revolução (a sua, a nossa) é sempre um devir-trans: mobilizar um estado de coisas existente até chegar noutro que só o desejo conhece.
Vocês passam a noite em claro (#NuitDebout) na praça da República em Paris enquanto um grupo de refugiados se reúne numa casa ocupada de Exárchia, para começar a Universidade Silenciosa em Atenas. Aqui na sala têm quase tantas línguas quanto pessoas. Uma rede de tradução explica o funcionamento desta universidade criada em Londres em 2012, pelo artista Ahmet Ögüt. Desde então, ela vem sendo ativada noutros lugares: Estocolmo, Hamburgo e Amã. A frase “todo o mundo tem o direito de ensinar” ressoa uma dezena de vezes: em urdu, farsi, árabe, francês, curdo, inglês, espanhol, grego… Pensada como plataforma autônoma de intercâmbio de conhecimento entre os imigrantes, esta universidade permite que aqueles que sabem algo podem se encontrar com aqueles que querem aprendê-lo, independentemente da validação acadêmica e do reconhecimento institucional dos títulos, da língua falada e dos pedidos de cidadania ou residência.
Alguém diz: “desde que comecei a esperar para conseguir asilo não tenho nada. A única coisa que eu tenho é tempo e nesse tempo posso aprender e posso ensinar.” Foi nesse tempo aparentemente morto da espera burocrática que o artista iraquiano exilado Hiwa K aprendeu a tocar violão clássico pelas mãos de Paco Peña, na Inglaterra. A resposta do governo inglês ao pedido de cidadania nunca chegaria, mas Hiwa K hoje toca flamenco como se fosse de Córdoba. Tenho aqui comigo alguns dos títulos dos cursos concedidos hoje na Universidade Silenciosa: história iraquiana, literatura curda, Herótodo e a civilização medeia, fundamentos do asilo político segundo a convenção de 1951, “como começar o seu próprio negócio”, história da comida através das artes visuais, caligrafia árabe… Se a experiência do exílio tenta reduzir o imigrante à passividade e ao “silêncio”, ao roubar-lhe o estatuto de cidadão político, a Universidade Silenciosa busca que se proliferem os processos de enunciação para dar vida a uma nova cidadania do mundo.
Vocês varam a noite na praça da República de Paris enquanto o coletivo de cineastas anônimos sírios Abunaddara produz a cada sexta-feira, desde o começo da revolução síria, um vídeo em que narra, através do documentário ou da ficção, a vida do povo sírio para além das representações midiáticas tanto do ocidente cristão como do mundo muçulmano. Como se produz e distribui a imagem? Por que é que ninguém enxergou as vítimas do 11-S e, apesar disso, os corpos destroçados em Alepo estão na primeira página de todos os jornais? É possível fotografar um imigrante que deriva pelas águas até as costas de Leros depois de uma travessia com o filho morto nos braços? Diante da captura midiática e burocrática da imagem, Abunaddara propõe uma emenda à Declaração Universal dos Direitos Humanos: que se reconheça o direito à imagem como um direito fundamental.
Vocês varam a noite na praça da República de Paris, enquanto outros corpos despertam também em Amã, em Damasco, em Atenas. Virá o especialista e a sua análise, virá o historiador e a sua memória, virá o professor e o seu currículo acadêmico, virão os políticos e virão os partidos. Dirão que vocês estão loucos, que são ingênuos, dirão que é impossível que aqueles que não sabem possam ensinar. Dirão que todo jornalista tem direito a fazer o seu trabalho de informar. Dirão que tudo isso já aconteceu antes e não serviu para nada. Dirão que o importante mesmo é traduzir a força das praças nas urnas. Mas a revolução não tem um objetivo fora do processo mesmo de transformação que ela abre. Como aponta Bifo, a revolução erotiza a vida cotidiana, revolve o desejo que está capturado pelo capital, a nação e a guerra, para espalhá-lo no tempo e no espaço, vertê-lo em tudo e em todos. Dirão ainda assim que é impossível. Mas vocês, nós já estamos aqui.
Acordemos durante o dia como se o dia inteiro fosse a noite. Aprendamos com aqueles que foram proibidos de ensinar. Ocupemos toda a cidade como se a cidade inteira fosse a Praça da República. Como se a cidade inteira fosse a sua, a nossa noite.
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