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A polêmica de Tarso Genro, Estado de Exceção e Democracia

Recentemente, o governador gaúcho Tarso Genro, em sua coluna na Carta Maior, colocou-se frontalmente contra a ideia de que vivemos em um estado de exceção permanente, fez uma apologia ao Estado de Direito – e sua vigência no Brasil de hoje -, criticou o mote de que a “ditadura venceu” e  defendeu as conquistas do governo Lula. Pois bem, há muito a dizer sobre o artigo em questãoe, mais ainda, a respeito do debate gerado. Mas há uma série de questões de fundo e é uma conversa tão importante quanto complexa. Honestamente, eu não subscrevo integralmente a fala de Tarso, embora concorde bastante com algumas assertivas, mas vamos por partes nessa confusão toda.

A questão prévia dessa conversa é que o artigo de Genro consiste em uma réplica ao conteúdo da reportagem de Bia Barbosa, publicada na mesma Carta Maior, que traz declarações do filósofo uspiano Paulo Arantes e de alguns intelectuais alinhados ao seu pensamento: eles defendem que houve um corte no golpe de 1964 em relação ao qual o regime atual é apenas uma continuidade – ou, se muito, um desdobramento do mesmo evento fundador. Trata-se de uma leitura que parte de uma apropriação bastante peculiar de Giorgio Agamben.

Viveríamos, pois, dentro da mesma ordem de 1964, caracterizada pela transição consentida pelos militares, o que seria comprovado pela manutenção da Lei de Anistia. Arantes fala em Estado Oligárquico de Direito, o que é curioso, se lembrarmos que a noção mais notável da obra de Agamben é a tese de que existe uma contiguidadeentre regra e exceção.

Não, não é que isso nasça de um fato histórico exclusivo em relação a um “Estado de Direito”: não importa se estamos falando de antes de 1964 ou depois de 1985, regra e exceção sempre coabitaram do mesmo modo, portanto, Agamben não fala na possibilidade, em circunstâncias históricas específicas, de existir a exceção de forma concomitante a um Estado de Direito, mas que essa é a sua regra geral, pelo menos de forma latente, logo, eventos como golpe militar apenas são manifestações disso, mas não seu surgimento.

Esse mesmo engano se vê em colocações como a de, por exemplo, Edson Teles: a Constituição de 1988 teria instituído um estado de exceção permanente no Brasil – como se pudesse ter sido instituído um Estado de Direito verdadeiro (e que isso pudesse antagonizar com o estado de exceção). A ideia é acompanhada pelo jornalista José Arbex Jr, que recorrendo ao exemplo das mortes causadas pela violência policial no Brasil de hoje, defende essa continuidade da ditadura por dentro da democracia brasileira – não é bem isso, se pensarmos, inclusive, que a violência contra negros e pobres remonta há muito mais tempo do que isso…

Se dentro da filosofia agambeniana a questão está mal colocada, saindo dela, tudo fica um tanto pior. A afirmação de que, no apagar das luzes, a ditadura venceu é ilusória. Ela demanda uma premissa falsa que é, precisamente, a de que o Poder é realmente aquilo que ele se pretende, que ele faz parecer, isto é, onipresente, onisciente e onipotente…é como se o rei da fábula de Andersen, aquele desfila nu sob a prerrogativa de que veste uma roupa que só os inteligentes veem, fosse criticado pela opulência dos seus trajes.

O fato é que o Poder é parasitário e perverso, ele nada produz, a ideia fantasiosa de que a ditadura cedeu espaço porque cumpriu seu papel, atingiu seus grandes objetivos, é antes de mais nada superestimar o regime, além de apagar a memória das lutas que o dobraram. Crer nessa capacidade de organização e nessa vontade de ter se desfeito é supor um Poder produtivo, em certa medida bondoso, uma ratificação às avessas da lógica da outorga varguista, na qual as cessões de anéis eram vendidas como boa vontade para reagir à efetividade das lutas reivindicatórias.

Se existe, por exemplo, uma CLT hoje, foi porque preexistiu à sua edição um movimento sindical ativo que massacrou a golpes de martelo o capital durante o começo do século 20º, ela não foi ato de vontade ou de benemerência do Poder, embora ele tenha precisado fazer parecer isso, como Vargas o fez. Dizer que a CLT é uma catástrofe e que não resolveu a exploração do trabalho pelo capital, ou que foi um plano perfeito da ditadura é, em outras palavras, esquecer os ganhos, a causa dos ganhos e criar um mitologema que não serve a quem vergou o Estado.

E não confundamos a captura que consiste adequar em termos jurídicos-estatais grande parte das demandas trabalhistas, com o fato disso não ser um vetor favorável, causado pela força do movimento sobre o poder, um excesso, uma abundância de demandas que sufoca sua capacidade de negar – afinal de contas, presumo que se de um ponto de vista de esquerda a CLT é insuficiente à luz da questão social, ninguém, ao menos nesse canto, defende sua abolição para um retorno da normatização das relações laborais pelo direito privado, como era até ali e nivelava empregados a patrões.

O Poder, com efeito, não constitui nada. Não é que o único Poder real seja apenas e tão somente o de veto, mas que a realidade do Poder é dizer não podemos – ou que não devemos para fazer parecer que é impossível -, tornando impotente o sujeito ao cindi-lo de sua capacidade de ação, uma parte arremessada para o futuro ou para o passado, a outra parte paralisada. Para que poder, senão para dizer não? As demandas que o Soberano autoriza não surgiram dele, são da multidão, pertencem à vida, ele o faz para dizer que sua mediação autorizativa é necessária, o que é diferente do veto, a suspensão da política pela recusa – o que só pode estar dentro de uma relação de poder.

O fato é que os ditadores-generais perderam a luta histórica e foram derrotados pelo movimento democrático. Tanto que os problemas da transição se devem, justamente, à torpeza daqueles que capturaram representativamente o clamor multitudinário das ruas. A Lei de Anistia, a propósito, serviu para anistiar apenas e tão somente quem não pegou em armas, ela nunca anistiou qualquer guerrilheiro – e a interpretação judicial perversa que amplia aos torturadores as benesses daquele texto legal, é uma admissão tácita de que a ditadura cometeu crimes: coisa que de uma simples leitura do texto do dispositivo se depreende, isto é, se é um crime que não podemos acusar a ditadura, é de ter se autoperdoado, pois ela jamais reconheceu, durante sua vigência, seus crimes.

Se os defensores extemporâneos da Ditadura no judiciário precisaram disso, é porque foram vergados e obrigados a recorrer a esse ardil. Se eles conseguiram manter sua interpretação, é porque precisaram de muitos ex-campeões da esquerda, liberal ou comunista, que hoje integram o governo, aderissem à lógica do Poder – fazendo às vezes das multidões que derrubaram a ditadura, e cuja potência eles capturaram. Curiosamente, esses ex-combatentes acabaram, embora do jeito e no sentido errado, não encampando o punitivismo que muitos veem como purgante para o nosso passado militar.

Em termos práticos, o impacto dessa visão é a hesitação de lutar pelo temor da captura, ou de derrota, ou a uma perspectiva de esquerda que mistura o niilismo com a história dos grandes nomes (e homens). Adotar a imobilidade como saída é ignorar que a imobilidade já está por aí, servindo ao Poder. Eu ratifico a outorga e digo que foi o Estado criou mesmo, e apago de uma vez a memória da luta de milhões de trabalhadores além de, por outras vias, repetir que o soberano está vestido com algo mais do que imagens.

Tarso Genro, contudo, se equivoca quando faz um elogio ao Estado de Direito – ou, em termos gerais, veja exceção e regra como opostos. Embora sua posição, em termos gerais não seja diferente dos seus críticos, pois eles cultivam, ainda, uma fé mínima nessa mesma instituição quando negam a existência de um Estado de Direito no Brasil – como se a existência de um Estado de Direito verdadeiro pudesse mudar tudo. Pior ainda, mesmo por um viés agambeniano, é certo que o Brasil é um Estado de Direito, só que o Estado de Direito implica na existência de uma exceção latente – e isso não tem nada a ver, necessariamente, com a Ditadura Militar.

Elas por elas, este blog concorda com Bruno Cava e prefere mais Benjamin no que toca ao mérito dessa conversa, sobretudo quando o mestre alemão diz, em sua famosa e repetida Tese VIII sobre o Conceito de História, que precisamos de construir um verdadeiro estado de exceção que dê conta do estado de exceção fascista (por interpretação extensiva nossa, embora essa não tenha sido a denotação exata dada Benjamin, sua conotação nos permite ampliar ao fascismo histórico ou não).

Também, há de se considerar que quando Tarso entra nesse debate respondendo as horas certas quando se perguntou qual o dia da semana, pelo menos ele não deixa de dar uma dentro ao criticar uma doxa tipica ao governo Lula, quando a indigência teórica da oposição retratava o então mandatário como se fosse um líder fascista, um “soberano schmittiano”. Pura bobagem. Mas foi essa tese que, por exemplo, Gilmar Mendes tentou utilizar para fazer valer, ironicamente, uma medida de exceção que poderia resultar na extradição do perseguido político Cesare Battisti para a Itália – e Tarso sabe disso muito bem, tanto que foi das figuras da República que mais se empenharam para evitar esse desastre.

Mas o que importa na fala evidente que ele tem razão em dizer que se hoje não temos uma ditadura, ou que hoje experimentamos conquistas sociais, é porque houve algo no Brasil que fez isso acontecer e não foi o Poder que concedeu nada por si. O problema dessa segunda visão, está tanto menos em entender que só uma revolução daria jeito nos problemas brasileiros como Tarso pontua, e mais no fato dela própria ver em tudo uma tragédia sem fim, na qual a beleza da resistência acaba apagada, o que é o mesmo que esterilizar as sementes de uma transformação.

De repente, o Pinheirinho vira uma derrota, as favelas tornam-se exemplos de que o campo de concentração ainda é um paradigma e quetais. Por isso, eu não posso concordar com gente que eu respeito muito e tenho um profundo carinho, como Idelber Avelar. Há o que se criticar na fala de Tarso, várias coisas, mas não que ela seja uma fala conservadora, embora não seja plena de potência pelos limites óbvios do republicanismo que ele abraçou – ao contrário da curiosa apropriação de Agamben que ele rebateu, aí sim, acidentalmente reacionária.

por Hugo Albuquerque, publicado originalmente no Descurvo, em 28/07/2012

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