Por Salvador Schavelzon
América do Sul se mostra em estado de turbulência e sem uma tendência definida que consiga orientar o processo político. Com protestos de distinta natureza em outubro e novembro no Equador, Chile, Bolívia, Colômbia e Peru, o jogo político migra das instituições para o movimento social, sem que a política partidária encontre respostas ou formas de fechar a crise que as mobilizações escancaram.
Na Argentina e no Brasil, sem recentes grandes manifestações de rua, os líderes políticos concentram um alto grau de atenção ao redor de si. Mas o desencantamento generalizado não é diferente aos dos países vizinhos, e o fim do progressismo não se traduz no começo de um ciclo conservador politicamente estável. A alternância política, vivida de forma escatológica, não constitui também um sistema bipartidarista, como nas décadas que seguiram a redemocratização. É possível que os consensos que sustentam o modelo social e político tenham se tornado obsoletos, além de injustos e para poucos, como nasceram, herdeiros da ditadura militar. Mas toda a classe política ainda funciona com eles, garantindo sua vigência e fortaleza, e enfrentando de forma conjunta, por tanto, a oposição das ruas, linha de frente do momento atual.
Na Bolívia e no Chile os protestos de outubro se iniciaram contra os presidentes Piñera e Evo Morales, mas a situação política aberta pelas ruas parece se deslocar para além. Nos dois países com Governos de esquerda e de direita que apareciam com maior estabilidade econômica na região, a crise não se acalma, mas se afasta do conflito pela reeleição, na Bolívia, e da renúncia de Pinera, no Chile. A partir de um acordo com participacao dos legisladores do próprio MAS (Movimiento al Socialismo) de Morales, que mantém maioria no Legislativo boliviano, foram convocadas eleições sem a participação do Evo Morales e a sua volta não parece ser o que organize a política boliviana daqui pra frente, para além de alguns setores.
Mesmo retirados do poder, partidos alimentados pelo sistema não conseguem romper com a lógica com que se acostumaram a funcionar. Ocorreu com o kirchnerismo, que depois da derrota frente a Macri encontrou legisladores próprios construindo maioria com o novo Governo. Também com o Partido dos Trabalhadores, que pouco depois da destituição da Dilma Rousseff continuou fazendo alianças eleitorais com os partidos considerados golpistas. A radicalização discursiva convive com um jogo institucional, eleitoral e da administração burocrática contrária à mobilização e disputa política que busca mudanças.
No Chile, a renúncia de Sebastián Piñera deixa de ser o foco, e nenhuma liderança aparece como salvação. A força das ruas parece afastar a ideia de que a solução virá de cima. É o fracasso do sistema privado de aposentadoria, a mercantilização da saúde e da educação, o custo de vida, e as dificuldades impostas pelo neoliberalismo que estão centralmente em pauta. Buscando recuperar iniciativa política, o Governo faz acordos com a esquerda partidária e convoca um processo constituinte. A esquerda vota a favor de legislação repressiva, e dá lugar a uma convenção constituinte que garante poder de veto para a direita. Numa assembleia nas mãos dos partidos, provavelmente, o conflito aberto pelas ruas não será facilmente encerrado.
O ciclo progressista não é mais possível da forma como foi caracterizado entre dez e cinco anos atrás, com o aproveitamento de preços altos de commodities, aumento do crédito e consumo, bom trato com os poderes empresariais que geraram lucros históricos para o poder financeiro, desonerações fiscais para grandes empresas, e expansão do agronegócio sem precedentes. Políticas sociais e de cultura pretendiam equilibrar um modelo que não deixou de ser de concentração de renda e desigualdade. Crescimento e consumo aconteciam sem ruptura com as bases de uma democracia de poucas famílias donas do poder.
Depois do progressismo, e sem ruptura com as bases da organização econômica ou das políticas públicas de transferência de renda, novas e velhas direitas ganham eleições, mas não conseguem estabelecer uma nova hegemonia. Como no Chile, o Governo colombiano de Iván Duque, também de direita, enfrenta forte oposição das ruas. Bolsonaro no Brasil exibe grandes problemas para sustentar uma base parlamentar e para mostrar uma melhora econômica que beneficie a população. Até agora, só tem um discurso autoritário que se presenta contrário às instituições, mas que tampouco se mostrou capaz de organizar uma base mobilizada de sustentação nem de unificar politicamente as distintas direitas obscurantistas —liberais, conservadoras e oportunistas— que congrega.
A falta de legitimidade política do novo Governo na Bolívia, de Jeanine Añez, apenas o autoriza a chamar novas eleições, enquanto o MAS se habilita para disputar a presidência com novos candidatos, a ser indicados por Evo Morales. O vácuo de hegemonia deixa o MAS com chances de conseguir, por um caminho mais longo, um retorno ao poder parecido ao conseguido pelo kirchnerismo na Argentina que, abrindo mão da centralidade do líder, preserva espaços de poder. Assumindo um tom moderado que seduz setores médios, os consensos que governam o sistema obtêm garantia com esquerdas da ordem, tanto quanto com direitas que assumem diretamente o cuidado dos interesses dos de cima.
No Equador, o presidente Lenin Moreno, que buscou ocupar o lugar deixado pelo Rafael Correa, de quem foi vice-presidente, enfrentou 11 dias de rebelião quando decretou medidas impopulares como o fim de subsídio do combustível, aumento de impostos e corte de férias para funcionários públicos. A fraqueza de Moreno, no entanto, não abre caminho para a volta do correísmo, derrotado na tentativa de buscar uma aliança com o movimento social que paralisou o país com mobilizações. Na voz das organizações indígenas, com destaque nos protestos, a oposição ao Governo vinha junto à oposição à volta do ex-presidente que, como os outros governos progressistas, não se diferenciou dos governos de direita no que diz respeito nem às grandes obras que feriram os territórios e a autonomia de comunidades indígenas e tradicionais nem à criminalização do protesto.
A força das mobilizações remete aos protestos de 20 anos atrás, como em dezembro de 2001 na Argentina, a Guerra da Água na Bolívia em 2000, num ciclo global de mobilizações iniciado em Seattle em 1999 e que nunca se concluiu, com frequentes mobilizações indígenas e camponesas nos Andes, marchas e levantes contra ajustes, ou como os protestos iniciados em junho de 2013 no Brasil, e as mobilizações mais recentes de estudantes, camponeses e indígenas na Colômbia, Chile e Equador. Novamente, as ruas alimentam uma busca de auto-organização dos de baixo com força social e autonomia. Dessa vez, no entanto, não parecem se abrir saídas partidárias ou populistas, com líderes que centralizam a iniciativa política conseguida por movimentos e lutas sociais.
Contra líderes que se tornam alvos fáceis de novas direitas, vemos indignação e revolta que os excede, em movimentos de destituição seguidos de novas administrações e líderes que enfrentam protestos ou desencanto, sem apoio mobilizado fora do tempo das eleições. A aparição de uma direita autoritária e mais virulenta, com discurso de ódio, ausente no ciclo progressista, antagoniza e restaura o progressismo, que também não se retira definitivamente. Nesse jogo, porém, o resultado é o aumento da visão generalizada de falta de alternativas por dentro do sistema.
A queda do Evo Morales, na Bolívia, se ajusta ao mesmo momento regional, de dissolução de hegemonias institucionais. Ela se produz depois de uma derrota eleitoral, em 2016, num referendo em que a maioria votou “não” à reforma da Constituição que permitiria uma nova reeleição —o resultado foi contrariado pelo Tribunal Constitucional que, sob pressão polìtica, autorizou a candidatura, gerando o conflito atual. Depois de 20 dias de protestos nas cidades, uma vitória eleitoral controversa se tornou insustentável para o MAS quando a auditoria da OEA solicitada pelo próprio Governo recomendou a realização de novas eleições, e houve desobediência das forças de segurança para conter a mobilização social.
Sem o Evo, a chegada da direita associada à elite do Oriente do País, como a de Mauricio Macri na Argentina em 2015, e de Bolsonaro no Brasil em 2018, não se explica pela força política própria, mas pela perda do apoio popular que interrompe mais de dez anos de governos sucessivos de signo plurinacional, progressista, populista, bolivariano ou de esquerda. A oposição regional que desde a posse do Evo Morales em 2006 buscou desestabilizá-lo tinha sido neutralizada em 2008, num referendo revocatório contra Morales, cuja vitória por 67,4% isolou a oposição e deu lugar à aprovação da nova Constituição Plurinacional. Mas o preço da consolidação política e avanço do MAS sobre as instituições seria abrir mão das mudanças, negociando, já na própria Constituição, com as elites políticas e econômicas que aprenderam a conviver com um progressismo amigo, e mesmo com Estado Plurinacional quando garantidor dos velhos consensos.
A escolha pela conciliação, os negócios, o desenvolvimento predatório em países de forte perfil de provedor de matérias primas, se afastando das agendas que os ergueram no poder, foi desidratando rapidamente governos populistas ou progressistas. Do outro lado, direitas que se constroem em base na retórica midiática, oposição à corrupção que não se sustenta como linha política uma vez no governo, falta de prometidas respostas para os problemas endêmicos, e dificuldades econômicas que abatem governos de qualquer signo político, abrem a possibilidade, clara hoje para a população do Chile mais do que em nenhum lugar, que para além de sucessões presidenciais, disputas eleitorais e no Judiciário, de colocar o foco da política no arranjo neoliberal e sua continuidade de décadas.
A força eleitoral da direita chilena, mostrada pelo triunfo do Piñera em 2017, mostra pés de barro, como também foram as vitórias recentes da esquerda, incluindo na Venezuela, momentaneamente à margem da dinâmica das ruas. Mais de um mês de protestos diários de rua no Chile, com ocupações de escolas, greves gerais, organização de assembleias populares, com uma visão política que necessariamente passa pela constatação de que a alternância política entre progressismo (neoliberal, de Bachelet) e direita não alterou a estrutura que governa por trás do espetáculo eleitoral e o enfrentamento ideológico desenraizado das disputas concretas com o poder econômico.
Junto com a política das ruas, a repressão policial e militar ganha espaço, gerando diferenças internas no campo da própria direita no poder. Com respaldo de setores políticos conservadores, e também progressistas, a repressão aos protestos expõe a violência institucional que cotidianamente está presente na militarização de bairros populares, encarceramento em massa e assassinato de líderes sociais em vários países. A insistência em limitar a política ao espaço das instituições, no entanto, só aumenta o desencanto porque não há respostas que se mostrem possíveis e à altura da força que mostram as mobilizações, quando estas despertam.
Nas ruas hoje não se encontram respostas e soluções políticas para ser aplicadas. Mas se encontram caminhos para questionar as armadilhas de um sistema que tende a eliminar o trabalho não precário e os espaços da vida não submetidos ao capitalismo. Coloca-se em pauta a destruição de florestas com expansão de um modelo de destruição, que propõe formas de vida miseráveis. Nas ruas, e para além da disputa presidencial, os acordos que estruturam o modelo se visualizam de forma mais nítida e massiva.
Para além de uma política partidária e institucional que entra em desespero e não encontra resposta, estudantes tomam a iniciativa política, grupos de mulheres politizam e ocupam as ruas, povos indígenas lutam pelo autogoverno pondo em pauta o modelo de desenvolvimento, cada vez mais questionado, assembleias de bairro criam afinidade entre vizinhos e se organizam para a manifestação ou a crítica da sociedade do consumo. Nas ruas, o mundo da mercadoria, as dívidas, a falta de horizontes, encontram um lugar de existência política que já é uma resposta e alternativa.
O neoliberalismo se mostra poderoso em governar uma força de trabalho desorganizada e em mercantilizar cada vez mais espaços de vida, mas nas ruas uma nova força política desenvolve ferramentas para enfrentar os desafios de governos, novas direitas, continuidade de um sistema elitista para poucos. A oposição ao neoliberalismo nas ruas coloca a autonomia como alternativa à saída populista ou progressista e, retomando antigas mobilizações, transcende o chamado das instituições para que todo mundo volte pra casa e confie em líderes e em partidos.
Salvador Schavelzon é antropólogo, professor na Universidade Federal de São Paulo e autor de El nascimento del Estado plurinacional de Bolívia, versão de sua tese de doutourado disponível aqui.
Artigo publicado inicialmente por El Pais 7 de dezembro de 2019