Na contramão de uma “economia da sobrevivência” (trabalhar ou/e morrer), é a cooperação social e institucional o que tem permitido criar as condições necessárias para se realizar a travessia da crise sanitária sem precisar colocar em xeque a vida.
Texto de autoria coletiva: MultiNômade
O mês de maio de 2020 inicia descortinando o que parece ser uma nova fase brasileira da pandemia mundial. Primeiro, o aumento significativo do número de casos confirmados e de mortes, tornando visível a natureza exponencial do atual contágio viral e a possibilidade do Brasil de vir a ser o novo epicentro epidêmico. Segundo, uma baixa na adesão à quarentena, o que aponta uma relativa desmobilização da sociedade civil no esforço de desaceleração da curva epidemiológica. Terceiro, a crise interna do governo federal e a incapacidade geral dos governantes de evitar o colapso do sistema de saúde. O contexto atual parece revelar um cenário de completa incerteza quanto ao que está por vir no país e os seus possíveis horizontes políticos. Tomando como ponto de partida as ideias desenvolvidas no primeiro texto da série O vírus e o paradoxo da democracia , seguimos agora tentando capturar as linhas sociais, políticas e econômicas que ganham força nesse segundo momento da crise sanitária.
Se a aproximação do pico do contágio nos envolve em uma apreensão quanto à nossa capacidade de atravessar esse arrastão viral, essa sensação ganha amplitude com as “guerras políticas” do presidente, que emolduram o debate público a contrapelo da urgência de um esforço intergovernamental e de coordenação nas ações de enfrentamento à COVID-19. Tal frenesi ganhou acentuada intensidade com as saídas dos ministros Luiz Henrique Mandetta (Saúde) e Sergio Moro (Justiça e Segurança Pública), indicando uma virada na plataforma de governo de Jair Bolsonaro. Embora fora uma figura de pouca expressão nacional ao longo dos seus anos de carreira política, Bolsonaro capturou uma confiança geral ao congregar diferentes frentes que haviam se tornado dominantes no cenário político brasileiro: a vertente ultraliberal na economia, representada por Paulo Guedes; a pauta da moralidade política, com seu ícone em Sergio Moro; um discurso da técnica e da ordem, manifestado pela presença de generais e oficiais das forças armadas; uma mobilização cultural, com suporte de lideranças religiosas e intelectuais, mas que tinha na postura escrachada, debochada e reacionária de Bolsonaro a sua melhor expressão política. Salvo essa última frente, as outras três dependiam da presença de figuras alheias, por incapacidade de Bolsonaro, por si próprio, de preconizar o liberalismo, a moralidade e a disciplina.
Foi através dessas diferentes coordenadas que, em um primeiro momento, desenharam-se as novas condições de governo, com a pretensão de se contrapor ao velho sistema, caracterizado por alianças partidárias, pela política econômica populista e pela hiprocrisia do que se tornara o discurso progressista. Sob os motes da campanha eleitoral (a técnica em detrimento do esquemão do “toma lá, dá cá”; o honesto em detrimento do politicamente correto; a representação da nação em detrimento das representações minoritárias), Bolsonaro procurou tecer na sociedade as bases da confiança em seu governo, o que garantiria a “retomada” da economia, impactada profundamente pelos últimos anos de instabilidade política.
O primeiro ano de mandato anunciou e apresentou turbulências consideráveis produzidas pelo presidente, que foram agravadas com a nova situação social, instaurada pelo advento da realidade epidemiológica. Esta deslocou as coordenadas políticas para outros lugares, questões e urgências. Era uma outra pragmática de condutas que se reorganizava e que surpreendia o próprio Bolsonaro, como ficou evidente na sua participação na manifestação do dia 15 de março de 2020, que ia na contramão da nova preocupação da população em torno da saúde individual e pública. Se o atual desafio que se colocava a todos permitia retomar com força o discurso técnico, da integração nacional no enfrentamento de um “inimigo comum” (o vírus) ou do interesse do país acima das preferências/desafetos partidários, Bolsonaro preferiu não só manter a mobilização política contra seus adversários políticos visíveis (Maia, Congresso, STF, China etc.), como também não abriu mão de sua postura negacionista, de escracho e de displicência com as normas e protocolos de segurança sanitária. Enquanto a sociedade tentava entender e se adaptar à nova realidade do isolamento, mesmo que esse não fosse absoluto, o presidente fazia questão em não adotar nenhuma medida de distanciamento social, mantendo abraços, apertos de mãos, dentre outros cumprimentos desnecessários.
Além disso, ele começava uma campanha pública contra quarentena, como se tal medida fosse uma opção, de natureza exclusivamente política, adotada (unicamente) pelos governadores. Procurou ainda disputar nos espaços das redes sociais e no noticiário o seu modus operandi discursivo que havia ensaiado desde a eleição e baseado num jogo de operação da (des)confiança: incentivar um quadro de desconfiança generalizada contra a ciência, a imprensa, o sistema político, as instituições e até mesmo os dados produzidos por órgãos públicos, a fim de construir, como único vínculo de confiança possível, a ligação do povo à sua pessoa. Embora tal populismo tenha força em parcela significativa da população (aproximadamente 30 %), ele enfrenta não poucos desafios.
Primeiro, a sua incompatibilidade com uma política de saúde baseada no discurso técnico, delineado em escala global, não só opondo cinicamente a economia à saúde, como também promovendo um deboche público e indisciplinar às normas de distanciamento social. Seu negacionismo generalizado procurou ainda, de forma charlatanesca, apresentar a qualquer custo um remédio (o milagre da cloroquina), como um coelho que sai da cartola. Segundo, a incapacidade e a recusa de tentar costurar e coordenar entre os diferentes níveis federativos o aspecto nacional e cooperativo da política de saúde, preferindo manter uma política de divisão e de “guerra” com seus adversários políticos. O ápice se dá quando, a situação se encaminhando para saturação hospitalar, ele publicamente repassa a sua responsabilidade na condução da crise enquanto presidente da república, sem ter logrado oferecer em nenhum momento um pacote substancial de medidas e de condições sanitárias que possibilitariam a flexibilização do isolamento com um grau mínimo de controle e segurança (testes em massa, por exemplo). Terceiro, a impossibilidade de se alinhar com as medidas propostas na esteira do movimento anti-corrupção, que observamos já em 2019 com o não veto à Lei do Abuso de Autoridade e ao juiz de garantia; a interferência na nomeação do Procurador Geral da República com um nome fora da lista tríplice eleita pelos procuradores federais; a tentativa de mudança do Superintendente da polícia federal do Rio de Janeiro, de onde construiu o reduto político de sua família. Entretanto, foi no meio da pandemia que ele consubstanciou o seu rompimento com a Lava Jato, após a exoneração do diretor-geral da Polícia Federal de acordo com suas preferências político-pessoais e a consequente quebra de aliança com Sergio Moro.
Em que pese a Bolsonaro uma desconfiança sobre sua capacidade de conduzir o país na atual crise sanitária ou sobre sua moralidade política no que diz respeito aos processos de investigação criminal contra seus filhos por corrupção e manipulação da informação, a problemática que se coloca é a virada política personalista e autoritária que assistimos crescer com seus cínicos ataques genéricos ao sistema – do qual ele faz parte há 30 anos e continua a costurar suas alianças, como vemos com Roberto Jefferson. Com seu rompimento com algumas frentes políticas dominantes na sociedade civil, Bolsonaro tenta restabelecer a confiança através da fermentação de uma relação mistificada em torno da sua pessoa, despregada de qualquer percepção pragmática e independente do que faça ou do que diga enquanto governante. É através da inflação diuturna das imagens de 2018 (do “mártir que tomou a facada”, do “herói da verdade que disse o que ninguém tinha coragem de dizer” e do “messias que veio salvar o país da ameaça comunista”), que ele tenta sedimentar a imagem do “mito” (idealização moral) e, portanto, fora do terreno político, econômico e mesmo ético da ação. Além disso, os efeitos políticos de seu modus operandi errático contribuem para um instabilidade política que tanto é prejudicial à economia quanto favorece o crescimento de um desejo por ordem que aceite a qualquer custo a “lei da força” (comando pessoal) em detrimento da “força da lei” (Estado de direito).
A aposta é alta e o cálculo arriscado. Perdido diante da nova realidade que emerge (a epidemia do coronavirus) e em seu próprio frenesi, Bolsonaro ainda recorre aos generais como forma de ostentar um aspecto de equilíbrio e ordem, para servir de contrapeso à desestabilização institucional que ele mesmo promove; mantém também de modo claudicante Paulo Guedes à frente do Ministério da Economia, para não perder por completo e por enquanto seu vínculo com o mercado. A fim de retomar a confiança econômica no governo, o liberal segue defendendo a cartilha das reformas e os militares repetem o velho enunciado do crescimento econômico através de medidas desenvolvimentistas. Ao reduzirem a economia a uma técnica contábil ou de planejamento estrutural, ambos parecem ignorar, porém, o cerne do atual desafio econômico que consiste na capacidade de combinar dois elementos econômicos imprescindíveis para a mobilização das forças sociais: a circulação (mobilidade e logística) e a segurança (proteção social + saúde). Sem considerar tal combinação como um problema central, a “retomada da economia” parece se tornar, diante do contágio viral, um lugar fora da realidade, uma utopia.
O frenesi político de Bolsonaro tem, porém, um vetor econômico. Sem nenhum discurso técnico, o presidente populista tenta imprimir desde o início de seu mandato uma série de artifícios que indicam uma espécie de terceira via econômica: a liberação dos circuitos econômicos não mais condicionada por mecanismos descentralizados de regulação e de segurança como preceituou a Constituição. Relembremos aqui sua medida de suspender a fiscalização eletrônica nas estradas, que, sob o verniz de acabar com o esquemão político da “indústria da multa”, tinha como pano de fundo os gargalos de nossa logística rodoviária. Outro exemplo é a sua revogação das portarias de controle de armas e munição do Comando Logístico do Exército, que cria um cenário perigoso do aumento do fluxo de armas acompanhado da diminuição do controle e rastreamento dessa circulação. Semelhantemente, Bolsonaro quer agora retomar a circulação de pessoas, independentemente da existência de medidas de controle (testes em massa e diminuição da velocidade do contágio) e de proteção (aumento considerável da capacidade do tratamento intensivo). Trata-se de um tipo de governança que pretende, pela redução dos dispositivos de segurança, liberar as forças produtivas para imprimir um tipo de intensidade econômica, que incorporaria e naturalizaria em sua dinâmica a expansão dos riscos negativos e fatais sobre a vida.
É nessa direção que segue a movimentação de Bolsonaro. Ela desconsidera toda a circulação produzida no distanciamento (circulação de infraestrutura, de informação, de tecnologia, de liberdades, de apoio psíquico/espiritual e da biodiversidade) para, por uma espécie de incentivo à desobediência civil, pressionar o “retorno” das atividades econômicas e sociais. Podemos até nos questionar se seria possível uma volta ao mundo antes do coronavirus. O que causa espanto, porém, é que a “normalidade” que se pinta, diferente do que se espera, é a norma da vida exposta aos riscos; dos limites de uma vida sem proteção (social e sanitária). Trata-se da perversidade de um discurso da “economia da sobrevivência” (trabalha-se para não morrer), que tem como efeito colateral a sabotagem a toda a cooperação e movimento de solidariedade, promovidos no interior da sociedade civil (apoio aos profissionais de saúde, articulação comunitária e empresarial para grandes doações, organização das favelas para a quarentena dos moradores, desenvolvimento das pesquisas biomédicas e de tecnologias para o enfrentamento e tratamento do COVID-19 etc.). A desmobilização bolsonarista esgaça, assim, a trama de confiança horizontal e descentralizada que vinha sendo construída em torno do enfrentamento da epidemia; procurando, por seu lado, enraizar uma linha populista autocrática na sociedade.
Entretanto, o seu jogo político avança e pende o sistema democrático constitucional para uma instabilidade aguda. Desde 15 de março, a rotina dominical do presidente passou a ser o fomento e participação em manifestações extremistas contra as instituições e a oposição política. Confundido a vontade do povo com a sua vontade, Bolsonaro estica a corda e reage aos conflitos e divergências com um tom autoritário. Assim, a linha econômica de lançar as pessoas ao encontro do vírus acompanha também a operação que põe em risco a ordem política federativa e republicana, cuja estrutura demonstrou ser o que vem dando suporte institucional ao país para enfrentar essa longa crise política e agora sanitária: desde os mecanismos de restrição, fiscalização e controle do poder, distribuídos por diferentes órgãos e instâncias federativas, até a repartição tripartite e cooperativa das funções estatais, que organiza também o nosso sistema de saúde.
A alta aposta política populista carrega, porém, um grande risco: a precipitação de uma desintegração político-institucional do sistema democrático pode conduzir tanto a uma perda total na confiança da capacidade governamental, quanto a uma fragmentação social e, consequentemente, a uma desidratação geral da economia. Nesse caso, o trágico cenário passaria de uma crise sanitária para uma crise humanitária. Quais são os nossos horizontes políticos? Aquilo que conseguimos construir até agora enquanto sociedade – da cooperação social à cooperação institucional -, é o que podemos vislumbrar como as nossas condições de travessia.