Devir-Brasil

A utopia da mestiçagem no futebol brasileiro

Por Bruno Cava | 31/12/2022

Resenha do livro de Mário Filho, “O negro no futebol brasileiro” (1947).

É um livro incontornável e seminal, publicado em 1947 já no caminho da realização da primeira Copa do Mundo no Brasil, em 1950. Não há como compreender e debater a junção de esporte moderno e Brasil sem passar por esta obra, a “Casa Grande & Senzala” da literatura formativa do futebol brasileiro. Pode-se criticá-lo na trama heroica, na narrativa de crônica, na estrutura ensaísta, no estilo. Dispensá-lo como folclore ou fabulário, jamais.

No enredo tecido por Mário Filho, o futebol entra no Brasil pelo andar de cima da hierarquia social. É primeiro ‘foot-ball’: esporte europeu acolhido pelos clubes grã-finos da sociedade urbana, durante a fase da primeira industrialização. Como o críquete, no Brasil, é um esporte para brancos e quase-brancos. Uma vez alcançado os holofotes, o jogador passava por um processo discriminatório de embranquecimento, caso do primeiro craque do futebol brasileiro, Arthur Friedenreich, um produto da mestiçagem, filho de um descendente alemão de Blumenau e uma professora negra, o “mulato de olhos verdes”, no dizer de Mário Filho.
A história do livro prossegue com a disseminação horizontal do esporte, que passa dos campos bem cuidados dos clubes para as várzeas, abrasileirando-se, quando surge a pelada: embate informal de equipes ad hoc, sem uniforme, amiúde com bolas improvisadas. Aí se forma um novo público praticante, mais pobre e mais negro, que vai conferindo um novo jeito ao futebol: moleque, gingado, cheio de malícia e astúcia. O cadinho das várzeas engendra os craques do futebol brasileiro, nutridos do molejo e da improvisação vivenciados na vida dos pobres, no samba e na capoeira.
Nos anos 1930, a capilarização do estilo nacional em estado nascente termina por romper as barreiras da segregação racial e se imprime, graças às próprias virtudes (afinal, ganhava jogos), nos principais clubes brasileiros.
Até chegar à Seleção de 1938, cujos maiores astros eram dois negros, Leônidas da Silva e Domingos da Guia. No tom da antropologia brasilianista de Gilberto Freyre, a mestiçagem havia produzido o espectro completo da estética única e inigualável de um novo modo de praticar o futebol: se o capitão do time Leônidas, com os feitos acrobáticos e a malemolência nas fintas, ocupava o polo dionisíaco; Domingos da Guia, com a sisudez de zagueiro e a precisão à inglesa, exprimia o lado apolíneo. Os outros times da Copa de 38 defendiam as verdades de cada nação, mas o brasileiro podia representar todas: a mestiçagem ampliava o alcance dos tipos nacionais e multiplicava seus potenciais.
A seleção brasileira perdeu aquela primeira Copa da França, ficando em terceiro lugar, mas foi bem recebida quando do retorno. O melhor resultado da história até a data e, para Mário Filho, o que indicava o rumo para a afirmação do Brasil no futebol e em geral: a democratização e o caldeamento das raças constituintes — entendidas não de maneira étnica ou biológica, mas ao modo freyriano, antropológico, enquanto estruturas psicossociais. Afinal de contas, os negros da seleção foram aplaudidos por toda a nação, todas as classes e regiões, superando os preconceitos enraizados.
Mário Filho enxergava na vindoura Copa de 1950 o desfecho da narrativa. A Europa saía arrasada pela guerra e desmoralizada pelo horror dos campos de concentração, ao passo que o Brasil, integrante do Novo Mundo, se apresentaria como paradigma do futuro, um Brasil moderno e democrático, exemplo para a reconstrução do traumatizado concerto das nações.
Como se sabe, a seleção perdeu do forte Uruguai na partida final da Copa do Mundo do Brasil, diante da maior plateia de todos os tempos em uma arena de futebol, os duzentos mil torcedores no Maracanã, estádio descomunal construído precisamente para a ocasião. Um balde de água fria para a consagração da utopia multirracial e multicultural proclamada por Freyre e Mário Filho. Como “só quem precisa de teoria é a derrota”, rapidamente proliferaram as explicações nos jornais: a falta de raça, de fibra, de compromisso com a nação, os jogadores não estariam levando a sério a competição, não estariam à altura do grau de importância para o Brasil, e outros mitemas futebolísticos hoje bem conhecidos.
No prefácio à segunda edição de “O negro no futebol brasileiro”, prefácio escrito em 1964, Mário Filho pondera que a derrota de 50 provocara o recrudescimento do racismo, que era hegemônico no futebol até a competição de 1938. Segundo o autor, a prova disso foi que os bodes expiatórios escolhidos pela imprensa para a derrota foram justamente os negros do time: o lateral Bigode, que jogava no Flamengo, o zagueiro Juvenal, que era de Santa Vitória do Palmar (RS), e o goleiro Barbosa, do Vasco, especialmente estigmatizado por levar o segundo gol, da vitória uruguaia. A desgraça de 1950 teria assim reacendido a consciência infeliz da nação, que culpava a sua própria má formação, a Falta Originária do processo formativo irrealizado: “quando acusava Barbosa, Bigode e Juvenal, o torcedor acusava a si mesmo”.
Para alguns acadêmicos da bola, Mário Filho teria mitificado a posteriori a derrota para o Uruguai no Maracanã; aliás, tantas vezes magnificada no cronicário esportivo nacional. O cronista teria cometido o pecado historiográfico do anacronismo. A evidência é que não haveria, na imprensa contemporânea à derrota, referências com injúrias raciais. Para os críticos, seria esperado, até normal, que a defesa da seleção tivesse sido culpada, na medida em que o Brasil ganhava o jogo e “deixou” o Uruguai virar. O problema é que o tom geral do diagnóstico da “falta de raça e fibra” sugere racismo envergonhado e um velho tropo escravocrata: a presença do negro, resultante da mestiçagem, provocaria a fraqueza mental, a emotividade excessiva.
Na Copa seguinte, da Suíça (1954), segundo a imprensa novamente inconformada com o desempenho, a seleção teria tremido na base nas quartas-de-final diante do ‘dream team’ húngaro. Mesmo sem Puskas em campo, a Hungria goleou o Brasil por 4 a 2. De fato, houve ali certo desequilíbrio dos dois lados durante o jogo renhido que, no apito final, se prolongou em briga generalizada entre jogadores brasileiros e húngaros. Desse ponto em diante, tornou-se lugar comum criticar a falta de estrutura emocional em partidas difíceis, a facilidade em perder a cabeça do futebolista brasileiro.
Tanto é verdade essa percepção difusa que, para a Copa de 1958, a seleção brasileira finalmente entraria no mundo desenvolvido dos esportes, ou seja, organizado e racionalizado: desta vez, haveria planejamento, profissionalismo, preparação física científica e… psicólogo da delegação. O futebol brasileiro ressoava com o pano de fundo nacional-desenvolvimentista em tempos de JK, Celso Furtado e Plano de Metas. Não é mais a mestiçagem a garantir a modernidade do mundo, seu devir-Brasil, mas a modernização do próprio Brasil na forma da adoção das melhores técnicas e da biopolítica.
O dado concreto é que deu resultado e a Copa do Mundo de 1958 foi nossa.
No prefácio de 1964, Mário Filho fala que a figura de proa dessa nova fase foi Pelé — o “Domingos da Guia do ataque”, segundo Nelson Rodrigues (em 58, Pelé era o apolíneo, enquanto o mulato Garrincha substituía o lugar estrutural de Leônidas, como o polo dionisíaco). Pelé era disciplinado, técnico, fisicamente condicionado. Não era apenas a reunião atlética de todos os fundamentos do futebol, além disso, Pelé ostentava na postura a plenitude de confiança, certeza e otimismo. E era negro, não se podia reduzi-lo a quase-branco, como Friendereich, nem o estrelato o tornava quase-negro (como outros aludidos por Mário Filho, sem serem citados nominalmente): Pelé se assumiu negro em toda a sua caminhada ao trono do futebol e durante a permanência nele.
O desfecho da epopeia de Mário Filho, que era para acontecer no Maracanã na Copa de 1950, se dá em 1958 na Suécia, quando o drama do racismo e da falta originária do país encontram a resolução no futebol brasileiro, o futebol mestiçado, moleque, criança, mas também disciplinado, científico, adulto. Pelé era o herói que faltava, o redentor predestinado, que chegou na hora certa, no lugar certo.
Que a obra mereça críticas de muitos ângulos e por dentro do texto, é claro que sim. O autor morreu em 1966 e não pôde escrever uma sequência que abordasse a continuação dessa história entre a formação do Brasil e do futebol brasileiro, na Copa de 1970, quando o nacional-desenvolvimentismo já não tem mais nenhuma ambiguidade, nenhuma tensão democrática e pluralizante, como havia no período do imediato segundo pós-guerra. O que não anula a densidade, nem a força mitogênica do trabalho de Mário Filho, cuja leitura nos confere uma contínua sensação de deja vu.
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