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O anti-imperialismo de mão única

Por Germano Monti | Em revista Micromega, fevereiro/2023 | Trad. UniNômade


Vinte anos depois das manifestações contra a guerra no Iraque em 2003, passando pelo divisor de águas da guerra síria na década passada, as contradições do olhar pacifista sobre a realidade mundial vieram à tona com a guerra russa na Ucrânia: a dificuldade em reconhecer as dimensões globais e a verdade da opressão leva a ver o mundo através do espelho retrovisor de um anti-imperialismo unidirecional, que enxerga nos Estados Unidos e na OTAN o mestre de marionetes dos destinos humanos.

Em 15 de fevereiro de 2022, entrevistado ao MicroMega por Daniele Nalbone, o responsável pela Peacelink (uma das mais importantes plataformas pacifistas na Itália) Alessandro Marescotti declarou: “Não acho que amanhã terá algum ataque da Rússia à Ucrânia”. Para o presidente da Peacelink, os alertas vindos da inteligência ocidental não passavam de “pura propaganda americana”. Marescotti não era o único a pensar assim. Em 23 de fevereiro, poucas horas antes do início da invasão, Marco Travaglio escreveu ironicamente no jornal de que é editor: “Na noite passada, enquanto eram disseminadas as enésimas fake news americanas sobre a invasão russa na Ucrânia (mais uma vez adiada devido ao bom tempo), estávamos todos com a respiração presa, à espera do Verbo”.

A atitude assumida pelo presidente da Peacelink não foi isolada no interior do campo que se define como  “movimento pacifista”, que se ressente da carga histórica e ideológica herdada do confronto entre grandes potências e seus blocos de alianças, bem como da tradição da esquerda italiana. Sem precisar recuar muito no tempo, basta comparar a dinâmica atual à mobilização pacifista que se seguiu à invasão do Iraque em 2003, para que possamos refletir sobre as dificuldades encontradas hoje pela mobilização contra a guerra desencadeada por Putin, em 24 de fevereiro do ano passado.

A segunda Guerra do Golfo começou em 20 de março de 2003, com a invasão do Iraque pela “Coalizão dos Voluntários”, organizada pelos EUA sob a presidência de George W. Bush. Amplamente divulgada nas mídias, causou profundas divisões na comunidade internacional e desencadeou mobilizações pelo mundo. Na Itália, aconteceu o que provavelmente fora a maior manifestação de nossa história: em 15 de fevereiro de 2003, Roma foi invadida pacificamente por centenas de milhares de pessoas vindos de todas as partes do país. As estimativas mais conservadoras indicaram a participação de 600-700 mil manifestantes. Outras estimativas chegavam a apontar a presença de mais de três milhões de participantes, ou seja, o dobro da população de Roma. À época, estimava-se que pelo menos 110 milhões de pessoas haviam saído às ruas contra a guerra no mundo todo e o New York Times chegou a definir o movimento como “a segunda potência mundial”. A magnitude da mobilização popular, no entanto, não impediu o governo de Berlusconi, no verão de 2003, de enviar um contingente militar italiano ao Iraque ocupado.

O fracasso em alcançar os objetivos daquelas manifestações foi repetidamente apontado nos anos seguintes como tendo sido a causa da crise dos movimentos pacifistas. Porém, se olharmos mais de perto, podemos ver que as razões da fragilidade e da inconsistência, tão escancaradas depois de 2003, já se encontravam presentes bem antes. Ainda que a guerra desencadeada por Bush filho tenha ofuscado as profundas divisões do movimento, elas já vinham de antes (em especial, quanto à situação palestina) e voltariam a aparecer nos anos seguintes.

Ter um inimigo comum bem definido e “habitual” – os Estados Unidos e seus aliados – favoreceu a confluência de diferentes forças e culturas políticas. Contra a agressão ao Iraque, se juntaram tanto as convicções da esquerda radical mais ou menos comunista, quanto as das associações humanitárias e de defesa dos direitos humanos, assim como de uma fração enorme do universo católico. Foi favorecida assim a construção de momentos de mobilização em que as diferenças puderam se integrar numa iniciativa comum. Como o responsável pela guerra podia ser identificado no “clássico” imperialismo norte-americano e seus aliados habituais – países da OTAN e o Estado de Israel – tinha ficado bem mais fácil para os propósitos da mobilização pacifista.

Naquelas mobilizações, estiveram presentes a herança ideológica da Guerra Fria e a percepção do imperialismo estadunidense (que havia saído vitorioso contra a URSS) como o inimigo principal. Todos os regimes que se opunham aos Estados Unidos, se não eram de imediato classificados como amigos, eram ao menos enquadrados como “inimigos do meu inimigo”. Valem lembrar as relativizações do regime iraquiano, um  “Iraque moderno, secular e socialista”, não importando que Saddam Hussein tinha exterminado os comunistas locais e massacrado alguns milhares de curdos.

Não queremos com esta crítica legitimar as ações do governo dos Estados Unidos e de seus aliados, inclusive dos governos italianos, mas fornecer alguns elementos de reflexão sobre a paralisia que atingiu os movimentos pacifistas depois de 25 de fevereiro de 2022.

O divisor de águas sírio

No período entre os últimos meses de 2010 e o início de 2011, quase todos os países do Oriente Próximo foram palco de revoltas populares que ficaram conhecidas por “primavera árabe”. A faísca para o incêndio se deu com o suicídio de um camelô na Tunísia, Mohamed Bouazizi. Mohamed sustentava a família vendendo frutas e legumes nas ruas de Sidi Bouzid, uma pequena cidade tunisiana onde a pobreza e a corrupção institucional eram desenfreadas. A polícia local continuamente o perseguiu com cobranças de propina, apreendendo seus bens. Na manhã do dia 17 de dezembro de 2010, Mohamed havia sofrido mais um abuso: os policiais o detiveram para novamente apreender a mercadoria. Diante dos protestos do camelô, os policiais viraram a carroça de ponta cabeça e uma policial o esbofeteou. Mohamed foi então ao gabinete do governador pedir uma audiência, que lhe foi recusada.

Menos de uma hora depois, Bouazizi voltou ao gabinete do governador, derramou sobre si o conteúdo da lata de gasolina que acabara de comprar e ateou fogo ao próprio corpo. Ele morreu em 4 de janeiro de 2011, após dezoito dias de sofrimento. O ato extremo de Mohamed Bouazizi deflagrou uma onda de protestos contra o regime cleptocrático e corrupto de Ben Ali pela Tunísia, logo assumindo um caráter insurrecional, que terminou por forçar a fuga de Ben Ali para a Arábia Saudita. A vitória popular entrou para a história com o nome de “Revolução do Jasmim”.

Na esteira da revolução tunisiana, as revoltas afetaram outros regimes do Oriente Próximo, em particular o Egito, o maior e mais populoso país árabe, governado havia trinta anos pelo autocrata Hosni Mubarak. No Egito, a corrupção tinha sido elevada a mecanismo central de poder e secundada por políticas liberais. O resultado foi o empobrecimento de setores cada vez mais amplos da população, juntamente com a repressão de qualquer oposição. Como na Tunísia, a insurreição popular levou ao rápido colapso do regime.

Os acontecimentos da primavera árabe também repercutiram na Itália, mas – ao contrário do que seria legítimo esperar – não provocaram um forte movimento de solidariedade. Por um lado, havia desconfiança e preocupação quanto ao papel desempenhado nas revoltas pelos movimentos inspirados pelo Islão político, em particular a Ikhwan, a Irmandade Muçulmana: organização sunita atuante pelo Magreb e pelo Mashreq, particularmente enraizada no Egito. Por outro lado, já se alastravam as teorias da conspiração de que as primaveras árabes seriam promovidas pelos serviços secretos ocidentais e pelo Mossad israelita, com o objetivo de desestabilizar a região e desarticular as entidades estatais, facilitando a obtenção dos objetivos imperialistas sobre os recursos locais.

Esta narrativa ganhou força com a propagação dos tumultos na Líbia sob Qaddafi, mas permaneceu relativamente morna até que os ventos da revolta atingiram a Síria. Foi nesse momento que a chamada “geopolítica” começou a sobrepor-se entre os movimentos e substituir a análise das dinâmicas sociais e de classes, como tinha sido o foco nas décadas anteriores. Isto ocorreu não só na teoria, como também no comportamento político.

Os tumultos na Síria começaram em março de 2012, quando as forças de segurança do regime encabeçado por Bashar al-Assad devolveram o cadáver mutilado de uma criança à sua família, na cidade de Daraa. Ela havia sido presa junto com outras pessoas por escrever slogans antigovernamentais em um muro. As manifestações se espalharam pela Síria e, apesar da brutalidade da repressão, por seis meses mantiveram um caráter substancialmente pacífico. No entanto, ao contestar um regime considerado hostil aos EUA e a Israel empurrou de imediato as formações “anti-imperialistas” italianas e alguns expoentes pacifistas a desmoralizar as mobilizações sírias, alegando que seriam arquitetadas por CIA, Mossad e petromonarquias como Arábia Saudita, Catar e Emirados Árabes.

O caráter laico, democrático e inclusivo das manifestações na Síria, com protagonistas representando todas as comunidades (sunitas, alauítas, cristãos, curdos) não impediu a difusão na Itália de teorias – forjadas sobre um grande número de falsificações – apontando uma natureza (supostamente) fundamentalista islâmica e violenta dos protestos. A propaganda foi inicialmente fabricada por indivíduos e organizações ligadas ao regime de Bashar al-Assad e seus aliados iranianos e russos. A maioria das organizações pró-Assad era inspirada pela extrema-direita, inclusive na variante conhecida na Itália como “rubro-marrom” [NT. fascismo de esquerda ou rossobruno]. Na primeira fase, quem se encarregou de apoiar o regime de al-Assad foram entidades e personalidades pouco conhecidas, como o jornal Rinascita e o seu diretor Ugo Gaudenzi Asinelli, antigo expoente de grupos “nazi-maoístas” atuantes nas décadas de 1960 e 1970. Além destes grupúsculos, o movimento italiano pró-Assad incluiu algumas formações e personagens da esquerda (ou ao menos é assim considerada), tais como o Partido Comunista Italiano (PCI) e o jornalista Fulvio Grimaldi. A propaganda a favor de al-Assad logo se fortaleceria com a entrada em jogo do Forza Nuova [NT. partido de extrema-direita, homofóbico, xenófobo e no-vax], da Casa Pound [NT. movimento de direita radical antissemita, antiamericano e antiliberal, de caráter nacional-comunitário] e do envolvimento de membros da Liga [NT. antiga Lega Nord, partido de direita ultranacionalista, eurocético, encabeçado por Salvini] e dos Fratelli d´Italia [NT. partido de direita familista da atual primeira-ministra Meloni, herdeiro do antigo MSI de G. Almirante e da Aliança Nacional dita “pós-fascista”]. Por outro lado, mesmo diante da ferocidade da repressão na Síria contra as populações revoltadas, a maioria das esquerdas partidárias e as associações pacifistas se manteve em silêncio. Nem mesmo quando o regime brutalizou refugiados palestinos, isso mudou, com apenas uma voz se erguendo de entre as maiores e mais conceituadas associações pacifistas: a voz corajosa, mas solitária, do grupo Uma ponte para. Quanto à chamada ‘esquerda radical’, os únicos a se mobilizarem a favor dos resistentes populares sírios foram os ativistas de La Comuna, enquanto as declarações e posições de organizações maiores e mais estabelecidas, como o Partido da Refundação Comunista, oscilaram entre o silêncio e a ambiguidade.

Três meses depois do início das revoltas em Damasco, um grupo grande de intelectuais, jornalistas e acadêmicos, conhecedores dos acontecimentos sírios, publicou um apelo criticando o “apoio à repressão na Síria”, reivindicando o caráter espontâneo e popular da revolução e denunciando a corrupção e as políticas econômicas liberais do regime de al-Assad. Os autores do texto diziam que “a revolução eclodira sobretudo a partir dos desejos por redistribuição da riqueza e por justiça social”. O apelo desmantelou ponto a ponto o clichê que a essa altura se tornava dominante em meios da esquerda italiana. Fez isso, por exemplo, ao lembrar como, na sequência dos atentados de 11 de setembro de 2001, o regime sírio manteve-se durante anos um importante interlocutor do governo dos Estados Unidos e fator de estabilidade regional. Declarando-se contra qualquer intervenção militar estrangeira no país, os signatários do apelo concluíam que “as considerações geopolíticas sobre o futuro da Síria são pertinentes, mas não podem servir de pretexto para confusão de responsabilidades nem inversão de papéis entre opressores e oprimidos”.

Esse manifesto não conseguiu contrariar eficazmente a propaganda obsessiva dos “anti-imperialistas” nem o silêncio ensurdecedor da maior parte dos movimentos pacifistas, apesar de ter sido assinado por dezenas de professores e pesquisadores, personalidades da cena italiana como Estella Carpi, Paolo Dall’Oglio (o fundador da comunidade monástica de Mar Musa, e dele não se tem mais notícias desde o sequestro posterior pelo Daesh), Enrico De Angelis, Lorenzo Declich, Gennaro Gervasio, Giuseppe Giulietti, Alberto Savioli, Younis Tawfik , Mattia Toaldo, Lorenzo Trombetta, Farid Adli, Cristina Carpinelli, Riccardo Cristiano, Amedeo Ricucci, Ettore Siniscalchi e muitos outros. O mesmo destino coube no ano seguinte ao “Apelo Internacional pela Revolução Síria”, desta vez assinado por centenas de intelectuais e jornalistas de projeção internacional, incluindo Ilan Pappe, Alice Walker, Elias Khoury, Étienne Balibar, Gilbert Achcar, Norman Finkelstein, Tariq Ali e Richard Seymour.

César

O episódio mais significativo do nível de má fé e desinformação em que caíram tanto os pacifistas quanto a esquerda política na Itália foi provavelmente o ocorrido na mostra fotográfica “Codinome: César”, em Roma. César era o pseudônimo atribuído a um ex-oficial da PM do Estado Sírio que desertou em janeiro de 2014, portando consigo para o exterior quase 55 mil fotos que documentam as mortes, os desaparecimentos e as torturas sofridas por presos nas prisões do regime de al-Assad, entre 2011 e 2013. A exposição fotográfica, já exibida nas Nações Unidas em Nova York, na Comissão de Assuntos Externos do Congresso dos Estados Unidos, no Museu do Holocausto em Washington, no Parlamento Europeu e nas principais cidades europeias, chegou à Itália em 6 de outubro de 2016. A mostra foi montada no museu Maxxi [NT. Museu do Século XXI], em Roma, depois que Laura Boldrini negou a utilização dos salões da Câmara dos Deputados, sob a justificativa da extrema violência contida nas imagens. A organização do evento envolveu as organizações Anistia Internacional, Federação da Imprensa, Articolo 21, Focsiv-Volontari, Coordenação de Universidades do Mediterrâneo e o já citado Uma ponte para.

A exposição consiste em uma seleção de trinta imagens entre as milhares de fotografias tiradas por “César” por ordem de seus superiores. No propósito imaginado pelos superiores, as fotos serviriam para manter um arquivo preciso das execuções ocorridas, com uma mentalidade burocrática e metódica que lembra a dos “administradores” dos campos de concentração nazistas. Apesar da importância do evento, o único comentário publicado advindo do campo de esquerda foi um artigo assinado por Manlio Dinucci no tradicional jornal Il Manifesto. Nele, o autor definia a exposição “César” como uma psy-op, “em que serviços secretos e unidades especiais das Forças Armadas americanas estão envolvidos (…) orquestradas pelo Pentágono para induzir as emoções e motivações e, portanto, o comportamento da opinião pública, a favor de organizações e governos estrangeiros, de modo a fortalecer atitudes favoráveis aos objetivos políticos traçados (…) exatamente o mesmo propósito da colossal operação político-midiática lançada sobre a Síria”. O artigo de Dinucci sobre a exposição ainda pontua: “Para este fim, uma exposição fotográfica financiada pela monarquia absoluta do Catar será apresentada em Roma no início de outubro, por iniciativa de várias organizações ditas ‘humanitárias’. […] contém parte das 55.000 fotos que um misterioso desertor sírio, de codinome César, diz ter tirado em nome do governo de Damasco, para documentar as torturas e assassinatos de prisioneiros, ou seja, seus próprios crimes”. Naturalmente, para Dinucci o objetivo da mostra não podia ser outro senão “desestabilizar o regime sírio, na sequência da desestabilização provocada por forças estrangeiras, internamente por meio de grupos terroristas armados e infiltrados, causando assim mais de 250.000 mortes. […] Mas agora que a operação militar está falhando, se apela a uma operação de guerra psicológica, para fazer o governo e todos os sírios que resistem à agressão externa aparecerem como os verdadeiros agressores. A ponta de lança desta psyop consiste na demonização do presidente al-Assad (como já havia sido feito com êxito com Milošević e Gaddafi), novamente apresentado como um ditador louco e sádico, que gosta de bombardear hospitais e exterminar crianças, contando para isso com a ajuda de seu amigo Putin (este retratado como uma espécie de neo-Czar do Império Russo redivivo)”.

A repercussão midiática da exposição em Roma provocou nada menos do que a reação da Forza Nuova, cujos militantes invadiram os corredores do Maxxi em que as imagens estavam expostas, agitando bandeiras do regime sírio, gritando palavras de ordem e desfraldando uma faixa de elogio a Assad e Putin, tendo se evadido do local logo antes da chegada da polícia. Como mais uma prova da conivência sentimental entre a extrema-direita e a “esquerda”, nenhum dos partidos, coletivos ou movimentos que se autodenominam antifascistas pronunciou uma única palavra de condenação sobre a ação direta da Forza Nuova.

A razão pela qual nos detemos no caso sírio e suas implicações na Itália é que nessa história encontramos a mesma situação revivida agora, tanto em relação à invasão russa da Ucrânia, quanto às manifestações no Irã contra o regime teocrático dos aiatolás. Não causa estranheza que muitos dos protagonistas sejam exatamente os mesmos, como o usual Manlio Dinucci, expulso da redação do Il Manifesto em março do ano passado, na rebarba de um artigo seu no mesmo tom daquele contra a exposição “César”. Segundo Dinucci, no artigo em questão, a legitimidade da invasão russa da Ucrânia está assegurada, pois é uma reação “à expansão de instalações da OTAN na Ucrânia”. Isso foi um pouco demais até para a redação do Manifesto, que há anos vinha cedendo espaço às mistificações do próprio Dinucci e de outros partidários do regime de al-Assad.

Ucrânia: guerra nova, esquemas velhos

Nos dias imediatamente seguintes à invasão russa da Ucrânia, o slogan da esquerda radical era “Nem Putin, nem OTAN”. A ausência de qualquer referência ao povo ucraniano, vítima da agressão russa, restava evidente. Durante os longos meses da guerra, foram organizadas dezenas de manifestações pela esquerda radical contra os escritórios e sedes da OTAN e da União Europeia, enquanto nenhuma iniciativa foi adotada perante as representações da Rússia na Itália, como a embaixada em Roma ou os diversos consulados pelo país.

Além de duas manifestações promovidas pela Anistia Internacional e pela Federação da Imprensa, poucos dias após o início da invasão, a manifestação de esquerda seguinte em frente à embaixada russa em Roma só viria a ocorrer em 7 de outubro de 2022, depois de mais de sete meses de guerra. Foi uma manifestação organizada pelo comitê “Parem a guerra na Ucrânia”, pelo La Comuna e por duas pequenas organizações de inspiração trotskista, a Esquerda Anticapitalista e o Partido Comunista dos Trabalhadores. Nenhum partido ou movimento de “esquerda radical” e nenhuma associação pacifista participou dela, exatamente como aconteceria depois em relação às manifestações em solidariedade às mulheres iranianas.

Os mesmos esquemas usados para a guerra síria foram recauchutados para a guerra na Ucrânia. Como vimos no caso mencionado de Dinucci, os esquemas funcionam por meio de dois trilhos paralelos: a justificação e defesa do regime de um lado e a mistificação da realidade de outro. Sobre o primeiro trilho, do mesmo modo como ontem se argumentava que o regime “legítimo” de Assad tinha sido constrangido a usar a força para se defender de uma agressão comandada por potências estrangeiras (EUA, Israel, Turquia, petromonarquias); hoje se afirma que a Rússia foi forçada a atacar a Ucrânia para se defender da expansão da OTAN. Até parece que, não tivesse ocorrido a invasão, a OTAN teria atacado primeiro a Rússia, a partir de suas (inexistentes) bases localizadas no território de Kyiv. Ontem, a realidade do “inimigo” era mistificada, os rebeldes sírios seriam jihadistas manipulados; agora, os ucranianos são indiscriminadamente rotulados de “nazistas”. Se, nessa narrativa, a revolta popular na Síria contra um regime corrupto, brutal e mafioso não passava de obra de manipulação dos poderes ocidentais; a revolta popular ucraniana de 2014 contra o regime de Yanukovych só poderia ter sido mesmo um “golpe contra o governo legítimo”. Para completar a distorção da realidade, a história do que aconteceu em 2014 igualmente aparece invertida, ao se afirmar que a guerra em curso na Ucrânia não seria senão a continuação daquela deflagrada pelos “nazistas ucranianos”, quando da agressão militar contra populações russófonas do Donbas.

A invasão russa da Crimeia pelos “homúnculos verdes” (soldados regulares das forças armadas russas com o distintivo destacado da farda e outros enviados pelo Kremlin sob o disfarce de “voluntários”) e a atuação desses mesmos “homúnculos verdes” bem como das forças especiais russas no Donbas são fatos simplesmente ignorados. Sempre à “esquerda”, nunca se disse uma palavra sobre o êxodo forçado do Donbas ocupado pelos russos, onde quase duas milhões de pessoas foram forçadas a abandonar suas casas, para se refugiarem noutras cidades e aldeias ucranianas, tornando-se assim “pessoas deslocadas internamente”. Em paralelo, legitima-se a tese de Putin sobre um alegado “genocídio” perpetrado no Donbas pelo exército ucraniano e seus componentes neonazistas, tais como o famigerado Batalhão Azov. Oculta-se com isso o dado real, que o número de cerca de 14.000 mortos ao longo de oito anos de conflito no Donbas inclui combatentes caídos de ambos os lados, de modo que as mortes confirmadas de civis não excedem 3.000, no contexto de um conflito de “baixa intensidade”. Em todo caso, é uma realidade muito distante de poder ser enquadrada como um “genocídio”.

Por fim, face à evocação contínua de “nazis ucranianos” e do Batalhão Azov, nada se diz sobre formações russas semelhantes que estão operando em território ucraniano desde 2014, especialmente no Donbas, mas agora também em outras regiões ocupadas militarmente pela Rússia. Entre essas formações, valem citar os mercenários do Grupo Wagner, sob o comando de um autodeclarado nazista, Dmitry Utkin, além do Batalhão Rusich, o Batalhão Esparta e o Movimento Imperial Russo, todas milícias criminosas a mando do Kremlin.

Anti-imperialismo de mão única

Os objetivos políticos apontados por esta “esquerda radical” são tão unilaterais quanto a abordagem teórica subjacente. De fato, a agenda que reclamam por debaixo dos panos da paz consiste na suspensão do fornecimento de armas à Ucrânia e na revogação das sanções econômicas contra a Rússia, sem empenhar uma única palavra de solidariedade ao povo ucraniano, ou aos russos que se opõem internamente à guerra e que sofrem a fortíssima repressão do regime de Putin.

Situação semelhante ocorreu após o assassinato de Masha Amini, espancada até a morte pela polícia de costumes a serviço dos aiatolás, por não usar corretamente o véu compulsado a todas as mulheres no Irã. O movimento de protesto iraniano vai além da questão – por mais fundamental e disruptiva que seja – dos direitos das mulheres e congloba cada vez mais setores importantes da classe trabalhadora. Contudo, em manifestações de solidariedade aos homens e mulheres, trabalhadores e trabalhadoras iranianas que desafiam o poder teocrático, não se constata nenhuma participação da esquerda radical, ao passo que proliferam as teorias da conspiração sobre a interferência dos EUA, OTAN, Israel, que estariam usando as manifestações para desestabilizar o regime “anti-imperialista e anti-sionista” de Teerã. Em última análise, persiste na esquerda italiana certa cultura política herdada de décadas passadas, nunca totalmente superada. O inimigo é sempre e apenas o imperialismo dos EUA. Quem se opõe aos Estados Unidos deve ser considerado, se não um amigo, um aliado objetivo. Chega a ser óbvio que tal postura torna esta esquerda algo de incrível aos olhos de uma população a qual, ainda que receie ser envolvida em um conflito mais abrangente e desastroso, não nutre nenhuma simpatia pela autocracia de Moscou. Os resultados práticos não deixam margem à dúvida: na França, a esquerda radical representada por Mélenchon, com sua clara posição ao lado do povo ucraniano e dos pacifistas russos, se mantém como uma força política de primeira grandeza. Já na Itália, a esquerda radical local, apesar do mal-estar e do sofrimento que permeiam a sociedade italiana, fica melancolicamente limitada a um apoio social na casa da vírgula (abaixo de 1%).

A manifestação pacifista de 5 de novembro de 2022 parece ter marcado um momento inicial de revigoramento do movimento pacifista e denotou uma importante novidade. Pela primeira vez, ao lado das bandeiras e estandartes das associações e sindicatos, muitos ucranianos estavam presentes com a amarela e azul. Não poderia ser de outra forma, uma vez que o conteúdo da mobilização era explícito: “Condenamos o agressor, respeitamos a resistência ucraniana, estamos empenhados em ajudar, apoiar, resgatar o povo ucraniano, estamos do lado das vítimas. Estamos com aqueles que rejeitam a lógica da guerra e optam pela não-violência. A inaceitável invasão da Ucrânia pela Rússia trouxe a guerra de volta ao coração da Europa, que parece prestes a se tornar um confronto global entre blocos militares, com consequências dramáticas para a vida e o futuro dos povos ucraniano, russo e europeu como um todo. Estamos próximos e solidários com a população afetada, com os refugiados, com aqueles forçados a fugir, a abandonar suas casas, seus empregos, vítimas de atentados, violência, discriminação, estupros, torturas”. O apelo não era pela interrupção do envio de armas para a Ucrânia nem pelo levantamento das sanções contra a Rússia, mas pela “convocação urgente de uma conferência internacional pela paz, para restabelecer o respeito pelo direito internacional, para garantir a segurança mútua e exigir o compromisso de todos os Estados em eliminar as armas nucleares, reduzir os gastos militares em prol de investimentos no combate à pobreza e do financiamento para a economia sem armas, voltada à transição ecológica, ao trabalho decente”. Sinalizava o objetivo de alcançar uma solução política, ciosa da impossibilidade de um solução bélica, que não seja arriscando o desastre nuclear.

A esperança é que essa manifestação seja o ponto de partida para a renovação da bagagem cultural e política de uma esquerda que ainda parece com a cabeça voltada para trás, com o olhar fixado em um mundo que não existe mais. Uma esquerda tão necessária neste momento, talvez o mais cinzento de nossa história republicana [italiana], quando os descendentes diretos e nostálgicos do fascismo histórico sentam-se no governo. Enquanto isso, a crise econômica e social, na ausência de referências alternativas críveis, não conduz a lutas e oposições, mas a mais frustração e renúncia.

 

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