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Aleppo, a tumba da esquerda

Por Santiago Alba Rico, em Contexto y acción, 14/12/2016 | Trad. Sindia Santos

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Ao aceitar o falso jogo geopolítico e sem entender a nova desordem global, o povo sírio está sendo entregue a um ditador assassino, à Rússia de Putin, ao Irã dos aiatolás, ao Estado Islâmico e às teocracias do Golfo.

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FILE - In this Sunday, March 4, 2012 file photo, Syrians hold posters of Syrian President Bashar Assad, far left, and Russian President Vladimir Putin, second left, during a pro-Syrian goverment protest in front of the Russian Embassy in Damascus, Syria. In ramping up its military involvement in Syria's civil war, Russia appears to be betting that the West, horrified by Islamic State's atrocities, may be willing to tolerate Assad for a while, perhaps as part of a transition. (AP Photo/Muzaffar Salman, File)
 (Foto: Muzaffar Salman/AP)

1 – Para matar em grande escala, sabemos, foi necessário mentir e ademais insultar e depreciar as vítimas. Isso é o que têm feito os Estados Unidos no Iraque, o que tem feito desde sempre Israel na Palestina. Toda a esquerda compartilhou em 2003 esta denúncia ao lado das pessoas decentes após o bombardeio de Bagdá e de Gaza. Pois bem, acontece que isso que tanto nos dói e enraivece quando são os Estados Unidos ou Israel os executores, mas se converte na ruína mental da esquerda quando se trata do que acontece na Síria. Temos aceitado mentir em grade escala para o que o regime de Assad e seus aliados – Rússia, Irã e Hezbollah – matem em grande escala; e ao fazê-lo não só temos abandonado e desprezado as vítimas, como também nos separado das pessoas decentes. Uma boa parte da esquerda mundial tem se colocado, com efeito, à margem da ética e ao lado de ditadores e dos muitos imperialismos nessa região. Numa Europa em que cresce o neofascismo – e o terrorismo islâmico – em velocidade acelerada, mais esse novo erro, somado a tantos outros,  pode nos custar muito caro.

2 – Para permitir a Assad que faça uma matança em grande escala tem sido necessário mentir muito, tem sido necessário não somente negar que o regime sírio é ditatorial como também afirmar, adicionalmente, que é anti-imperialista, socialista e humanista; tem sido necessário, além disso, negar que houve uma revolução democrática bastante transversal, não sectária, na qual participam milhões de sírios, muitos deles de esquerda, que não se reconheciam numa direção ou num partido (uma espécie de 15M gigantesco que se cristalizou em conselhos e coordenadorias locais); tem sido necessário negar a repressão brutal dessas manifestações, as prisões, as torturas, os desaparecimentos; tem sido necessário negar a legitimidade do Exercito Livre Sírio (ELS); tem sido necessário negar os bombardeios com toneladas de TNT e o uso de armas químicas por parte do regime de Assad; tem sido necessário negar ou justificar os bombardeios massivos da Rússia de Putin; tem sido necessário negar a complacência de todos (Assad, Rússia, Irã, Estados Unidos, Arábia Saudita, Turquia) diante do crescimento do ISIS/Daesh; tem sido necessário negar a ocupação iraniana na Síria; tem sido necessário negar o imperialismo russo e a sua relação excelente com Israel; tem sido necessário negar a indiferença vacilante dos Estados Unidos, que só intervêm para deixar o caminho livre ao mesmo tempo para o regime sírio quanto para a Arábia Saudita; tem sido necessário negar como o embargo de armas tem deixado a rebelião nas mãos dos setores mais radicais, tão contrarrevolucionários quanto o próprio regime; tem sido necessário negar a existência de manifestações simultâneas contra Assad e contra o ISIS (e contra outras milícias jihadistas), negar que povos e cidades têm sido destruídos e cercados; tem sido necessário negar a ausência do ISIS em Aleppo, pois foi expulso pelo ELS em 2014; tem sido necessário negar o sofrimento e o terror da população aleppina sob o cerco; mas tem sido necessário negar – o pior de tudo – negar o heroísmo, o sacrifício, o desejo de luta de milhares de jovens sírios, que são nossos semelhantes e querem o mesmo que nós; tem sido necessário negar – ainda pior e pior – e desprezá-los, caluniá-los, insultá-los, convertê-los em terroristas, mercenários e inimigos da liberdade. Nunca a esquerda, diante de uma revolução popular, havia se comportado de um modo tão ignóbil: não só não se solidariza com ela nem – uma vez tendo sido a revolução derrotada – honra os seus heróis e o seu desfecho, sem nos cuspir na cara, pois, dessa maneira, essa esquerda tem celebrado a sua própria morte e a sua derrota. Coerente com esse negacionismo tipicamente imperialista (ou estalinista), essa esquerda se colocou do lado da extrema direita europeia e tem reprimido também as mobilizações em nossas cidades, criminalizando ao máximo a esquerda sensata que, ao lado da gente decente, tem denunciado os crimes de Assad e seus aliados, sem deixar de denunciar também a Arábia Saudita, a Turquia e os Estados Unidos, nem – obviamente – o intolerável fascismo, em tudo equivalente ao do regime, do ISIS ou da Frente-al-Nusra.

3 – Como disse o comunista Yassin Al Haj Saleh, preso há 16 anos no cárcere do regime e um dos mais maiores intelectuais vivos, a situação na Síria revela o estado da velha esquerda e atesta o seu óbito. Quando há seis anos disparou uma revolução democrática mundial cujo epicentro foi o “mundo árabe”, a esquerda não estava preparada nem para protagonizá-la nem para aproveitar-lhe as forças; nem sequer para entendê-la. Hoje, quando as contrarrevoluções vitoriosas apresentam as redentoras “ditaduras árabes” aos Estados Unidos e à Europa, a esquerda sai fora do jogo como resistência ou alternativa. Incomodados ou irritados, todos os seus atores abandonaram ou então combateram as forças democráticas sírias e todos – governos, organizações fascistas e partidos comunistas – têm acabado por aderir à narrativa do “mal menor” que condena a Síria à ditadura eterna, ao lugar da violência sectária, e que entrega a Europa ao terrorismo sem fim. Esta teoria do “mal menor” (mal menor: o extermínio de centenas de milhares de sírios, bombardeados, torturados e desaparecidos!) tem sido a matriz histórica dessa “estabilidade” regional, opressora e mortal para os povos, e que justificou durante a segunda metade do século XX o apoio ocidental a todas as ditaduras dessa região. Depois de uma revolução malograda, esse modelo do século passado volta agora com uma  redobrada ferocidade, engajado e lubrificado por um setor da esquerda que aplaude e se entusiasma com “a grande vitória” de Bachar Al Assad; um modelo pertencente de tal modo ao século passado que parece que alguns vivem – tal “grande vitória” – como se, 25 anos depois e graças a ninguém menos do que Putin, a URSS tivesse finalmente renascido das cinzas para ganhar a Guerra Fria. Uma coisa é certa: quem perdeu, também desta vez, na Síria e na Europa, na Rússia e na América Latina, foram a democracia e a justiça, as únicas soluções possíveis diante dos autoritarismos, dos imperialismos e dos fascismos – jihadista ou europeu -, irmãos trigêmeos que vem ganhando terreno sem resistência, e que se alimentam reciprocamente e, portanto, só podem ser vencidos se combatidos ao mesmo tempo.

4 – Como definir essas “revoluções árabes” que hoje morrem definitivamente em Aleppo, com a cumplicidade do jihadismo e a complacência da aliança internacional, das direitas e das esquerdas, todas juntas enterradas e contra a Síria? Essas revoluções foram, sobretudo, um revolta contra o jugo da geopolítica que mantinha congeladas, como em âmbar, as desigualdades e as resistências na região desde, pelos menos, os últimos 70 anos. Num mundo de relações de forças desiguais entre nações-Estado, a geopolítica impõe sempre limites a toda política emancipatória de esquerda. A geopolítica não é de esquerda e, se não a levarmos em conta para lutar por mínimos e realistas progressos ante os imperialismos e em favor de uma soberania [nacional], não poderemos chegar ao ponto de contrariar os princípios elementares associados ao caráter universal de toda ética da libertação. Isso que antes se chamava internacionalismo, o seu impulso é necessário recuperar numa versão não-identitária e democrática. O chamado “mundo árabe” (que é curdo e amazigue e bérbere e tubu etc) é o exemplo mais doloroso de uma região inteira, refém de suas próprias riquezas petrolíferas, sacrificado em nome do “interesse comum” das potências e subpotências que se colocam em fila para assegurar a assim chamada “estabilidade”. Quando os povos da região se rebelaram em 2011 contra esse “equilíbrio” abominável, sem pedir permissão a ninguém e à margem de todos os interesses das nações-Estado, a geopolítica lhes caiu por cima como uma camisa de força, e a esquerda correu, ao lado de seus inimigos, para atar-lhe as mangas e apertar os botões de ferro.

5 – Num contexto em que a hegemonia dos Estados Unidos se debilita, em que outras potências igualmente imperialistas se tornam independentes de sua hegemonia para impor suas próprias agendas, e em que o campismo da 2ª metade do século XX é substituído por um vespeiro de interesses reacionários contrapostos, muito semelhantes ao do período que precedeu à 1ª Guerra Mundial – também porque não há hoje, na região, uma só força ou projeto anticapitalista ou emancipador – a esquerda, sem entender nada da “nova desordem global”, muito menos de sua musculatura reacionária, se precipitou em entregar o povo sírio, atado dos pés a cabeça, a um ditador assassino, à Rússia de Putin, ao Irã dos Aiatolás, além das teocracias sunitas do Golfo. É dizer, o que muito justamente Pablo Bustinduy havia chamado de “geopolítica do desastre”. E em nome do “mal menor” (Franco e Pinochet, um mal menor!?). Irritadas e rodeadas por essas intifadas populares que não entendeu (salvo um punhado de “trotskistas” que eram chamados pejorativamente de “trotskistas” só porque as entendiam e, ao entendê-las, eram levados a apoiá-las apesar das esquerdas), as esquerdas mundiais reagiram desde o começo da mesma maneira que os governos e a extrema direita: achando um ditador para apoiar. Para os imperialistas, isso não seria jamais um problema (sim, são “filhos da puta”, mas são os nossos “filhos da puta”) mas causa espécie que algumas pessoas que se proclamam com certo orgulho em ser “de esquerda”, mas renunciam a compreender o mundo na primeira oportunidade em que poderiam e, além disso, renunciam aos próprios princípios éticos e políticos que professam. Para apoiar os carrascos, para deixar matar em grande escala, dizíamos, foi necessário desfazer-se da verdade e curvar-se aos mesmos clichês culturalistas racistas e islamofóbicos da pior direita europeia.

6 – Apostando num esquema geopolítico superado, que impede de abordar a “nova desordem global”, a esquerda tem abandonado, com efeito, os seus princípios éticos, supostamente em nome de um cálculo estratégico de hegemonia, mas na verdade, o faz a troco de nada, rigorosamente nada; ou, para ser mais preciso, o faz para assim favorecer o retorno, em versão expandida e agravada, das mesmas ditaduras, dos imperialismos e dos jihadismos. Esse grande êxito geopolítico foi conseguido à custa de abraçar uma tríplice contradição, incompatível com uma ética universal da libertação.

7 – Aceitar esse jogo geopolítico – um jogo, de qualquer maneira, calcado em ilusões e muito mal fundamentado – supõe, em primeiro lugar, declarar sem qualquer pudor que um madrilenho tenha o direito de lutar contra uma monarquia constitucional insuficientemente democrática e um bipartidarismo corrupto e a desejar, sem de qualquer modo precisar arriscar a vida, mais democracia e mais justiça social para o seu país, porém, ao mesmo tempo, um sírio deveria restringir-se a simplesmente conforme-se com uma ditadura, porque é um “mal menor”, uma ditadura que o encarcera, tortura e assassina e obriga a renunciar a toda vontade de democracia ou justiça social.

8 – Aceitar esse falso jogo geoestratégico supõe, em segundo lugar, declarar também que é muito mais grave que encarcerem a Andrés Bódalo na Espanha do que a Yassin Al Haj Saleh ou Salama Keile ou Samira Khalil, todos eles comunistas, na Síria; ou que é muito mais grave a detenção de um punhado de titiriteristas, ou o processo contra um vereador em Madrid, do que o isolamento sistemático da população pela fome e o bombardeiro brutal de todo um país.

9 – Aceitar esse falso jogo geoestratégico supõe, finalmente, reclamar com toda a naturalidade do mundo o direito dos espanhóis (ou dos latinos americanos) a decidir se e quando e de que maneira os “árabes” podem rebelar-se contra os seus ditadores. Os sírios, ao que parece, deveriam fazer o que lhes aconselha uma esquerda que tem se revelado impotente, inútil e cega dentro de seus próprios países. Isso implica, ademais, experimentar como uma ameaça, e não como uma esperança, a vontade democrática e as lutas sociais de outros povos: os que lutam em condições mais difíceis pelo mesmo ideal não são vistos como companheiros, mas como inimigos, não como valentes parceiros com os quais é preciso solidarizar-se, mas como criminosos “terroristas”, esse termo que, com tanta justiça, não hesitamos em denunciar e problematizar quando é usado pelos juízes do regime ou pelos governos “imperialistas”.

10 – Uma boa parte da esquerda árabe, europeia e latino-americana – em resumo – tem sacrificado o internacionalismo a uma ordem geoestratégica em que os povos e as suas lutas democráticas não têm nenhum amigo. Fora de um jogo em claro retrocesso, essa esquerda tem deixado avançar sem resistência, agora em todo o mundo, os regimes contra o que se levantaram os “árabes” em 2011. Não temos compreendido nada, não temos ajudado em nada, temos entregado ao inimigo todas as armas, inclusive a boa consciência. A partir da Síria, a democracia retrocede em todo o planeta. Aleppo é, sim, a tumba da esquerda mundial. Justo quando mais a necessitávamos.

Santiago Alba Rico

É filósofo e escritor. Nascido em 1960 em Madrid, vive há duas décadas na Tunísia, onde tem desenvolvido grande parte de sua obra. Seu último livro se intitula Ler com crianças.

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