Democracia Império

Algumas variações sobre a guerra e a política

Julien Pallotta

Introdução

Um relatório recente do Instituto de Pesquisa da Paz em Oslo afirma que, em 2023, o número de guerras no mundo será o maior desde o fim da Segunda Guerra Mundial (cinquenta e nove, com envolvimento estatal em trinta e quatro países[1]). Mas dentro desse quadro geral, dois conflitos se destacam: por um lado, o retorno de um conflito de alta intensidade em solo europeu com a invasão russa da Ucrânia desde fevereiro de 2022 e, por outro, a guerra de represálias travada pelo exército israelense na Faixa de Gaza após os ataques do Hamas em 7 de outubro de 2023. Cada um desses conflitos tem suas singularidades. A guerra russa é possível graças à posse da arma nuclear: a doutrina de dissuasão nuclear torna possível uma guerra de agressão por um Estado que possui armas nucleares contra um Estado que não as possui. A guerra israelense, sem objetivos de guerra claramente definidos, é agora acusada (oficialmente pela África do Sul) de entrar em uma fase genocida[2]. Neste artigo, proponho retornar à racionalidade política da guerra, colocando a fórmula Clausewitziana (“a guerra é política continuada por outros meios”) no centro da análise e estudando suas múltiplas variações que ela sofreu na história do pensamento, indissociável das transformações da guerra na história efetiva.

 

  1. Guerra como instrumento político do Estado

1.1. Guerra e soberania do Estado

Nosso ponto de partida é a relação essencial entre o Estado moderno e a guerra. É possível referir-se à definição do Estado moderno por Jean Bodin no século XVI no seu livro Les Six livres de la République (livro I, capítulo 10) : o Estado define-se por “marcas de soberania[3]”. A segunda marca de soberania é o direito de decidir da guerra e de conduzir a paz. Então, a guerra é a relação que pode estabelecer-se entre os Estados, e isso pressupõe uma divisão da terra entre territórios distintos e potencialmente rivais e inimigos. Para ilustrar esta ideia, pode-se apoiar sobre o livro de Carl Schmitt, O Nomos da terra[4], no qual ele explica que o Estado moderno caracteriza-se pelo monopólio da decisão política e como poder de territorialização. Carl Schmitt usa a palavra grega “nomos” no seu sentido originário de  “partilha” ou “distribuição” para exprimir esta ideia de territorialização. No seu aspecto abstrato, é o princípio de territorialização da vida dos homens e do direito, que encarna-se nos “atos jurídicos originários” que são os Landnahmen (ocupações de terras, fundações de cidades, conquistas etc.); no seu aspecto concreto, é, entre o século XVI e o século XX, uma certa centralidade da Europa para a determinação das regiões, das fronteiras que “mapearam” o mundo. A territorialização permite a secularização da forma-Estado, tal como vai caracterizar a modernidade, assujeitando a religião (cujus regio, ejus religio, princípio dos Tratados de Westfália em 1648) e organizando a “domesticação da guerra” (Hegung des Krieges), expressão difícil de traduzir porque ela significa ao mesmo tempo que o Estado circunscreve a guerra para objectivos racionais e que ele “civiliza” os meios e as formas de declaração e de conclusão dela.

Mas a territorialização do Estado soberano é possível somente no quadro de uma ordem global, imposta à Terra inteira como “equilíbrio” instável no seu conteúdo e permanente na sua forma. Historicamente este equilíbrio toma a forma de uma dupla partilha : entre os continentes apropriáveis pelas potências determinadas, e os oceanos livres para a circulação e para o comércio, por um lado, e entre a região “central” europeia onde domina o direito dos povos europeu (Jus publicum europeaum) e a região “periférica” aberta à concorrência colonial mais ou menos selvagem por outro lado.

No próprio território estatal, estabelece-se uma partilha fundamental entre o interior e o exterior, e outra entre o público e o privado. No “interior” o Estado pretende pacificar a sociedade, de modo que as dissensões entre os indivíduos são consideradas “privadas”. Para este espaço interior, o Estado exerce uma função de “polícia”. No “exterior”, o Estado mantém as suas fronteiras por meio da “guerra”  contra inimigos considerados “públicos”. O exterior do Estado é somente outro Estado. Na Europa, é o Tratado de Westfália de 1648 que estabelece um sistema de Estados concebido como “equilíbrio europeu”.

No seu curso Segurança, Território, População[5], ministrado em 1978, Foucault mostra como o Estado moderno nasce com o Tratado de Westfália e aparece como “acontecimento reflexivo” : o Estado moderno nasce entrando numa certa racionalidade, a “razão de Estado”. Esta racionalidade tem como objetivo manter e conservar as forças do Estado. Foucault mostra como a razão de Estado exerce-se no quadro de um “balance”, ou seja um equilíbrio entre as potências europeias. O equilíbrio implica uma limitação absoluta da força dos mais fortes, e uma igualização das potências. Neste quadro, o objetivo da guerra é manter e restabelecer o equilíbrio. A guerra é somente o primeiro dos quatro meios do que Foucault chama de “sistema diplomático-militar”. Os três outros são primeiramente a diplomacia, ou seja a organização de negociações praticamente permanentes e o jus gentium, em segundo lugar o dispositivo político-militar permanente (que consiste em uma profissionalização da guerra, uma estrutura armada permanente, um equipamento de fortalezas e transportes, e uma reflexão tática autônoma), e em terceiro lugar, o “aparelho de informação” (que consiste em conhecer as suas próprias forças e conhecer as forças dos outros, aliados ou adversários, e esconder que as conhece).

Foucault, então, mostra como, dois séculos depois, Carl von Clausewitz, no seu livro Vom Kriege (Da guerra[6]), vem prolongar a nova racionalidade do Estado apresentado a guerra como a ativação de certos meios definidos pelo Estado. Vamos desenvolver isso agora.

 

1.2. Guerra como política continuada por outros meios

A definição clássica da guerra exprime-se em duas formulações de Vom Kriege. A primeira encontra-se no livro I ( capítulo I, § 24) : “A guerra é a pura e simples continuação da política por outros meios”. A segunda encontra-se no livro VIII (capítulo VI, B) : “A guerra não passa da continuação das relações políticas com adição de outros meios”. Como sugere Étienne Balibar no seu artigo “Guerre et politique : variations clausewitziennes[7]”, é possível fazer duas leituras destas formulações. Ou afirma-se que a política pode usar de violência, de meios violentos sem transformar a sua natureza; ou a proposição clausewitziana nos avisa que os meios violentos da guerra permanecem “políticos” sob a condição que suas consequências não escapem ao controle da racionalidade política. Então, Clausewitz colocaria aqui duas possibilidades opostas : ou a guerra é o instrumento da política, ou a política é reduzida a ser um instrumento da guerra. Esta segunda possibilidade, autodestrutiva, deve ser evitada. O problema que deduz-se da proposição de Clausewitz, então, é de conter a guerra no campo da política, ou de afirmar que a guerra é racional e pode permanecer (a relação de adequação entre os meios e os fins sendo a expressão desta racionalidade). Pode-se dizer que o problema da guerra é a possibilidade de uma autonomização dos meios táticos violentos de combate em relação aos objetivos “ estratégicos” supostamente ordenados a fins políticos.

Este dilema é claramente visível na distinção que Clausewitz faz entre as “guerras limitadas” e as “guerras absolutas”. As guerras empíricas provavelmente oscilam entre estes dois pólos, com diversos graus de combinação. Mas Balibar, apoiando-se sobre a leitura de Clausewitz por Emmanuel Terray[8], sugere que a realidade histórica nos permitiu nos aproximarmos deles de maneira quase pura em duas séries de circunstâncias. Por um lado, há as Kabinetskriege, ou guerras principescas das monarquias do século XVIII, cujos instrumentos são as armadas de mercenários ou de soldados de profissão. O objetivo destas guerras é uma modificação das relações de forças e uma resolução dos conflitos de interesse no meio do equilíbrio europeu : são por definição guerras limitadas.

Por outro lado, há as Volkskriege, as guerras populares, “novas guerras” que aparecem depois da Revolução francesa, cujo ator é a “nação em armas”, primeiramente vindo da insurreção popular, em seguida transformada por Napoleão em instrumento de seu projeto imperial, que afrontam outras nações em armas das quais cada uma desenvolve uma mística nacionalista e combate para o que ela considera ser o seu “direito à existência”. Estas novas guerras são absolutas no sentido que elas conduzem à novas extremidades da violência. Clausewitz considera com angústia o desenvolvimento destas guerras por diversas razões que todas ameaçam a definição clássica da guerra como instrumento do Estado. As guerras absolutas mobilizam, entre seus “fatores morais”, o patriotismo que dá a coragem de enfrentar a morte mas que, ao mesmo tempo, tornando-se em ódio ao inimigo, pode escapar ao controle dos objetivos estratégicos. Clausewitz, por outro lado, teme a transformação do exército pela conscrição por causa dos riscos políticos que ela implica : com a conscrição, o exército não é mais um simples instrumento, é um “monstro”, ela constitui o ponto no qual fusionam em Um o povo e o Estado, ou seja as duas instâncias entre as quais reparte-se a ideia de nação, sempre exposta a dividir-se em dois.

Assim, para concluir com Clausewitz, pode-se dizer que ele é um pensador ao mesmo tempo clássico e trágico da guerra : clássico porque ele dá a melhor caracterização da guerra como instrumento do “equilíbrio” europeu, e trágico porque ele já percebe os riscos que corre a sua definição clássica. Pode-se identificar dois riscos: primeiramente, o de autonomização da guerra em relação à política, e em segundo lugar, o de divisão da unidade ideal do “sujeito” da guerra (a unidade entre o exército, o Estado e o povo). Vamos ver agora como os pensadores “pós-clausewitzianos” vão desenvolver estes pontos.

 

  1. A “preversão” e a subversão da Fórmula clausewitziana

2.1. A fórmula de Clausewitz : uma inversão de uma “preversão”

O pensamento clássico da guerra funda-se sobre uma partilha entre o interior e o exterior do território de jurisdição do Estado. O adversário no combate só pode ser exterior e estrangeiro. A teoria clássica da guerra exclui a guerra do campo social. No seu curso Em Defesa do sociedade[9], dado em 1976,  Foucault mostra como Hobbes, fazendo da guerra o que pretende eliminar o Estado, é o maior teórico do discurso filosófico-jurídico sobre o Estado.

No entanto, Foucault continua mostrando que o discurso filosófico-jurídico constitui-se em oposição a outro tipo de discurso : o discurso histórico-político da “luta das raças” que explica as instituições civis a partir de uma guerra contínua e generalizada entre conjuntos chamados de “nações” ou “raças”. Na aula do 4 de fevereiro de 1976, Foucault afirma que, para este discurso, o Estado não passa da maneira pela qual a guerra se conduz. Ele dá como maior ilustração deste discurso o livro de Boulainvilliers, État de la France (1727-1728), no qual aquele nobre reacionário defende as posições da nobreza declinante contra a consolidação da monarquia absoluta. No final da aula do 18 de fevereiro, Foucault mostra como a fórmula de Clausewitz sobre a guerra que é a continuação da política por outros foi possível como inversão de outra fórmula anterior que encontra-se em Boulainvilliers : a política é a continuação da guerra por outros meios.

A força das análises de Boulainvilliers é de fazer da guerra uma “tabela de inteligibilidade” [grille d’intelligibilité] do campo social e do Estado. Boulainvilliers opera três generalizações. Primeiramente, a guerra envolve inteiramente o direito. Na história, encontra-se somente desigualdades que exprimem guerras ou violências. A lei desigualitária da história é mais forte do que a lei igualitária do « direito natural ». Em segundo lugar, a relação de forças que exprime-se na batalha depende da natureza e da organização das instituições militares. Boulainvilliers pensa a guerra como instituição (natureza das armas, técnicas de combate, retribuição dos soldados, recrutamento, etc.) e pensa os efeitos dela sobre toda a ordem civil. Em terceiro lugar, Boulainvilliers pensa a história a partir de um cálculo das forças : ele tenta ver como constitui-se um sistema de alianças, de apoios entre grupos.

Foucault não diz que a tabela de Boulainvilliers é verdadeira; ela pode ser falsa mas ela pode ser usada contra o próprio Boulainvilliers. A tabela cria um regime de erro e de verdade. Boulainvilliers é reacionário : ele usa a sua tabela para voltar a um estado anterior de dominação social (a dominação dos nobres feudais). Mas Foucault sugere que ela pode ser usada por outros adversários políticos do Estado moderno. Assim, poder-se-ia dizer que Clausewitz, criando a sua fórmula, inverteu uma “preversão[10]” (a do discurso da “luta das raças”), e que certos pensadores pós-clausewitzianos vão realizar uma subversão da fórmula, como os pensadores revolucionários.

 

2.2. Da preversão à subversão da Fórmula : a repolitização da guerra no marxismo

Foucault sugere que o discurso revolucionário de Marx é uma derivação do discurso das “lutas das raças”. Porém, na verdade, pode-se dizer que Marx re-utilizou o discurso da guerra, no Manifesto do Partido comunista[11], contra os historiadores burgueses (como Guizot) para os quais a revolução foi uma guerra, mas uma guerra que acabou. Então, a reutilização marxiana do discurso da guerra é mais uma subversão da fórmula de Clausewitz do que uma simples derivação do discurso da luta das raças : ela indica que a guerra continua na sociedade burguesa do século XIX e que deve transformar-se em revolução social.

No Manifesto do Partido comunista, Marx afirma que a luta de classes [Klassenkampf] é a tabela de inteligibilidade da história. Ele a apresenta como guerra civil [Bürgerkrieg], uma guerra civil ora oculta, ora aberta. Étienne Balibar, no artigo já citado acima, nos lembra que, para Clausewitz, o conceito de “guerra civil” é tipicamente anti-político, é exatamente o que ele queria excluir da compreensão da categoria de guerra. Efetivamente, Balibar, apoiando-se sobre o trabalho da historiadora antiga Nicole Loraux[12], mostra como, desde os Gregos, as guerras civis são percebidas como ameaça sobre a unidade política como tal. Se Marx usa o modelo da “guerra civil” para pensar a luta de classes, é porque revela a essência do político numa sociedade de classes, e especialmente na sociedade capitalista. Mas Balibar nota aqui uma oscilação de Marx em respeito a seu conceito de político. Marx hesita entre duas vias. Ou ele pensa a política como a autonomização de uma esfera pública organizada ao redor da instituição estatal (que pretende agir para o interesse geral), e a luta de classes não é política nesse sentido: ela representaria mais o que excede o político. Ou ele chama de político o próprio conflito (com sua tendência à polarização dos antagonismos), e pode identificá-lo com esta “guerra civil” permanente que percorre a história mudando sempre de forma e de conteúdo, até o momento escatológico do enfrentamento último (com a transição à sociedade sem classes).

Nesta oscilação, é interessante ver como Marx trata o problema clausewitziano do “sujeito” da guerra. Será que as classes podem ser pensadas como exércitos? É aqui que nós vemos os limites da identificação da política à guerra; numa luta social entendida como  “guerra civil”, os adversários não são realmente exteriores uns aos outros : Balibar afirma que eles são tendências de evolução do mesmo “sujeito” que divide-se em dois. Mas o mais interessante, continua Balibar, é ver por qual motivo Marx parou de utilizar o modelo da guerra para pensar a luta social. Duas razões podem ser avançadas. Primeiramente, Marx abandonou a perspectiva de uma simplificação do antagonismo e o esquema linear de uma polarização crescente da riqueza na sociedade. Em segundo lugar, Marx constatou que o Estado burguês não encontrou dificuldades para esmagar o proletariado francês em banhos de sangue com a utilização de um aparelho militar que aperfeiçoou-se nas guerras coloniais. Ele constatou também que as guerras nacionais (“clássicas”) permaneceram o lugar próprio da articulação do político e do militar. O pensamento revolucionário precisava então voltar a Clausewitz e à inteligência direta dos problemas que ele colocou.

Engels começou este trabalho teórico na sua leitura crítica de Clausewitz no artigo “Army” da New American Cyclopedia. Ele retoma o problema que era para Clausewitz a existência de um exército popular : ele mostra como, para o pensamento materialista, exércitos populares levariam inevitavelmente no desenvolvimento de lutas de classes dentro mesmo do exército (com a vitória de uma consciência de classe sobre o patriotismo).

No entanto, é sobretudo Lênin, continua Balibar, que, a partir de sua releitura de Vom Kriege, repolitiza o clausewitzismo. Ele cria, durante a primeira guerra mundial, a palavra de ordem de transformação da guerra imperialista em guerra civil revolucionária, descrevendo a emergência de um “fator moral” (a consciência de classe internacionalista) como efeito político de uma acumulação dos horrores da guerra “popular”. O clausewitzismo original de Lênin retoma a ideia de uma ofensiva que prepara-se na defensiva. Mas Lênin inventa, contra Clausewitz e sua definição estatal da política e da guerra, a ideia de recriação das condições da política em detrimento do Estado que encarna o político apenas enquanto ele controla o uso popular das armas : com Lênin, o político passa do monopólio estatal da violência legítima a um monopólio de classe da violência legítima.

A repolitização da guerra por Lênin é uma subversão da Fórmula de Clausewitz mas é também uma resposta à uma perversão da Fórmula que acontece com a primeira guerra mundial e a realização do perigo que temia Clausewitz : a subordinação da política à guerra.

 

3.Da perversão à verdadeira inversão

3.1. O clausewitzismo excessivo de Ludendorff : a guerra total

O temor de Clausewitz frente ao desenvolvimento da “guerra absoluta” realiza-se com a “guerra total” que tenta teorizar o general alemão Ludendorff em 1935 no seu livro Der Totale Kriege[13]. Neste caso, pode-se falar de um “clausewitzismo excessivo[14]” . Ludendorff considera que Clausewitz não tirou todas as consequências do caráter popular da guerra : ele identifica três principais.  Primeiramente, a hostilidade opõe nações inteiras e a totalidade de sua população e de sua economia. Em segundo lugar, os objetivos estratégicos estendem-se às infraestruturas econômicas da sociedade. Em terceiro lugar, o centro de gravidade da guerra não é mais um centro : é o todo da sociedade adversa.

Então, Ludendorff exige um alto comando militar para o conjunto do poder decisional. Pode-se falar de “guerra total”, como indica o historiador inglês Eric Hobsbawm no seu livro sobre o século XX[15], porque, diferentemente da “guerra absoluta” de Clausewitz, a guerra total ataca civis. Poder-ia-se também dizer que a guerra ganhou uma autonomia total em relação à política, e que a Fórmula de Clausewitz foi totalmente invertida. Mas é possível recusar esta afirmação porque Ludendorff conserva, na determinação do inimigo, um primado à política. Pode-se também dizer que Ludendorff forneceu aos fascistas a ideia de uma militarização total da sociedade; vamos ver agora como o fascismo-nazismo representa uma abolição da racionalidade clausewitziana da guerra.

 

3.2. Fascismo como abolição da política na guerra

Para pensar este extremismo pós-clausewitziano, pode-se referir às análises de Deleuze e Guattari em Mille plateaux[16] : eles afirmam que com o nazismo uma “máquina de guerra” apropria-se de um Estado. A especificidade do nazismo é a mobilização total da sociedade que vai até uma conversão total da economia à guerra : ele desloca os investimentos em meios de produção e de consumo em direção à produção de meios de destruição. O Estado, no nazismo, não passa de um acelerador de processo : como falam Paul Virilio[17] e Michel Foucault (na última aula de seu curso de 1976[18]), o Estado nazista é um Estado suicidário. Deleuze e Guattari mencionam o telegrama 71 de Hitler que ordena a destruição do próprio povo alemão. Com o nazismo, o aparelho de Estado vale apenas para a destruição, até a contradição com toda condição limitativa de um objetivo político. Pode-se dizer que ele acaba totalmente com a racionalidade clausewitziana fazendo da guerra a abolição mesma da política. Porém, para uma verdadeira inversão da Fórmula clausewitziana, Deleuze e Guattari afirmam que é preciso passar à ordem mundial pós-segunda guerra mundial.

 

3.3. A máquina de guerra mundial toma a paz por objeto

Após a Segunda Guerra Mundial, a militarização dos Estados e o desenvolvimento da economia da guerra realizam-se sem a guerra em ato. A máquina de guerra toma a paz como objeto : a paz do Terror e da sobrevivência. Os Estados são apenas os meios apropriados à nova máquina de guerra, e esta não é subordinada a um objeto político. Deleuze e Guattari concluem então : “É a paz que libera tecnicamente o processo material ilimitado da guerra total”[19].

A paz ameaçadora da dissuasão nuclear faz da máquina de guerra mundial o objeto e o meio de uma capitalização tecnológica, científica e econômica sem precedente que não precisa mais de uma guerra efetiva para desenvolver-se. Dois fatores podem explicar isso. Primeiramente, a transformação tecnológica da guerra com o armamento nuclear suspende uma passagem a ato. A guerra não pode ser efetiva ou a humanidade e a vida desaparecem da terra. A arma nuclear é o paradoxo de uma arma que não pode ser usada por causa de seu poder excessivo. O historiador inglês Edward Palmer Thompson, no seu artigo “Notes on Exterminism, last stage of civilization[20]”, inventa o conceito de exterminismo para descrever uma mudança em relação ao conceito clássico de imperialismo. Ele avança a ideia de supressão do político pela tecnologia militar : a tecnologia militar desenvolve-se de maneira independente de toda vontade política.

Em segundo lugar, o fator é o império de uma “meta-economia” que determina as relações entre a economia-mundo capitalista e os Estados políticos que efetuam as condições de realização dela. Os Estados, no quadro da economia-mundo, têm como função a regulação das repercussões sociais do capitalismo no interior dos quadros nacionais. O objeto da máquina de guerra mundial é estritamente econômico.

Porém, para terminar, deve-se reconhecer que a paz do Terror não impede as guerras, mas elas conhecem duas transformações. Primeiro, as guerras identificam-se à operações de polícia interior à sociedade do mercado mundial. Em segundo lugar, a partilha interior/exterior vacila com a emergência da figura de um “inimigo qualquer” [ennemi quelconque] multiforme e onipresente. Esta ameaça não individualizada precisa ser requalificada, e isso realiza-se na criminalização de práticas contestatórias.

Conclusão

Poder-se-ia concluir este percurso sobre a relação entre guerra e política tomando dois pontos de vista: o do Estado e o da política de transformação revolucionária. A política “radical” ou “revolucionária” às vezes usou a definição de guerra como política para operar uma desmistificação da política oficial ou institucional e desconstruir o discurso que o Estado tem sobre si mesmo. Esta política tem como objetivo uma re-politização da guerra que consiste numa contestação do monopólio da guerra pelo Estado. Mas, deve-se botar em evidência os perigos deste “paradigma da guerra” para o pensamento revolucionário: entre outras coisas, uma revolução “vitoriosa” pode ter a tentação de tratar as contradições políticas num modo militar e confundir o adversário com o inimigo. Deve-se admitir que a própria lógica da guerra pode estar em contradição com a emancipação das relações sociais.

Por outro lado, o Estado, na racionalidade governamental contemporânea (chamada de “neoliberal”), deve adaptar localmente (ou seja, nacionalmente) as condições das exigências do mercado mundial dos capitais; considerando isso, idealmente a guerra não existe (ou somente sob a forma metafórica de “guerra comercial”) e tende a transformar-se em “polícia” ou “operações de polícia”, produzindo uma indiferenciação relativa entre a guerra e as questões da “segurança”. Esta indistinção revela uma crise das categorias da modernidade política e contém o espectro da criminalização das práticas contestatórias. O problema, então, do pensamento de transformação social é de pensar e inventar um jeito de “fazer a guerra à guerra” sob um modo não militar.

 

Bibliografia

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NOTAS

[1]  Rustad, Siri Aas (2024). “Conflict Trends: A Global Overview, 1946–2023”. PRIO Paper. Oslo: PRIO.

[2]  Veja Omer Bartov, “As a former IDF soldier and historian of genocide, I was deeply disturbed by my recent visit to Israel”, The Guardian, 13 de agosto de 2024.

[3] Bodin,Jean, Les Six Livres de la République. Em : BALIBAR, Étienne « Prolégomènes à la souveraineté », in Nous, citoyens d’Europe? Les Frontières, l’État, le peuple. Paris : La Découverte, 2001, p.267.

[4] Schmitt, Carl, O Nomos da terra. Rio de Janeiro : PUC-Rio/Contraponto, 2017, tradução de Alexandre Franco de Sá, Bernardo Ferreira, José Maria Arruda e Pedro Hermílio Villas Bôas Castelo Branco. Ver também o comentário de Étienne BALIBAR, Ibid. P.263-267.

[5] Foucault, Michel, Segurança, Território, População: curso dado no Collège de France (1977-1978). São Paulo : Martins Fontes, 2008 (Coleção tópicos).

[6] Clausewitz, Carl von, Da guerra. São Paulo : Martins Fontes, 1996.

[7] Balibar, Étienne, Violence et civilité. Paris : Galilée, 2010. P.203-249.

[8] Terray, Emmanuel, Clausewitz. Paris : Fayard, 1999.

[9] Foucault, Michel, Em Defesa da sociedade. São Paulo : Martins Fontes, 2005.

[10]  Sibertin-Blanc, Guillaume, Politique et État chez Deleuze et Guattari. Paris : PUF, 2013 (Coleção Actuel Marx confrontation). P.146.

[11] Marx, Karl e Engels, Friedrich, Manifesto do Partido comunista. Porto Alegre: L&PM, 2001.

[12] Loraux, Nicole, La Cité divisée. Paris : Payot, 2005 (Coleção Petite bibliothèque Payot).

[13] Ludendorff, Erich, Der Totale Kriege. München : Lunderdorffs Verlag, 1935. Tradução francesa : Ludendorff, Erich, La Guerre totale. Paris : Flammarion, 1937.

[14] Sibertin-Blanc, Guillaume, Politique et État chez Deleuze et Guattari, op.cit. P. 129.

[15] Hobsbawm,Eric, O Era dos extremos. O breve século XX. São Paulo : Companhia das Letras, 1995, tradução de Marcos Santarrita.

[16] Deleuze, Gilles et Guattari, Félix, Mille plateaux. Paris : Minuit, 1980.

[17] Virilio, Paul, L’Insécurité du territoire. Paris : Galilée, 1993.

[18] Foucault, Michel, Em Defesa da sociedade, op.cit.. P.309-312.

[19] Deleuze, Gilles et Guattari, Félix, Mille plateaux, op.cit.. P. 583 (tradução pessoal)

[20] Thompson, Edward Palmer, “Notes on Exterminism, last stage of civilization”, Em  E.P. Thompson (org.) Exterminism and Cold War. Londres : NLB, 1982.

 

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