Por Ricardo Gomes, no PegarSolcomaMão
– “A tática black bloc, que era vista, mesmo entre os manifestantes, como uma negatividade necessária agora consegue expor toda sua positividade produtiva e excede o puro confronto para participar da criação de uma educação revolucionária.”
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De todo este processo de lutas, acumulações políticas, afetivas e sociais que se intensificou desde junho, o que temos hoje e que salta aos olhos é uma dispersão monumental. Diversos grupos se constituíram nas ruas e fora delas, sem unidade fechada. O black bloc passou de tática para movimento e voltou a ser tática, militantes de partidos de esquerda souberam, em vários momentos, compor com militantes anarquistas e agora os professores começam a se distanciar massivamente dos sindicatos. Ainda poderíamos dar outros exemplos mas este são suficientemente significantes. Esta dispersão é, sobretudo, um anúncio de novo (e outro) aglutinamento. O que vai para rua não volta igual.
O que surge das rupturas e novos encontros não carregam no seu possível nome as formalizações que foram deixadas para trás. Nesse sentido, podemos falar de uma construção real a partir das lutas. Foi criada uma experimentação selvagem nos encontros nas ruas: o que compõe e aumenta potência é mantido, o que tenta inviabilizar os encontros e produções é questionado até se tornar irrelevante. Hoje, não há dúvida sobre a produtividade desta prática. Possíveis dúvidas recaem agora sobre as possibilidades do fortalecimento deste encontro e de sua força produtiva.
O que estamos acompanhando na Cinelândia e no entorno não é só um massacre contra os professores e a população que os apoia, articulado entre os poderes constituídos, a mídia da elite econômica e cultural e a complacência de quem só reage de maneira subserviente. Estamos acompanhando é a feitura, ainda frágil, de uma linha traçando e ligando grupos que até bem pouco tempo estavam distantes, para dizer o mínimo. Quando as greves dos professores começaram boa parte deles se posicionaram contra os black bloc repetindo o já envelhecido julgamento e condenação pela mídia tradicional. Condenação que tentava de um lado identificar os manifestantes, separando os que não se rebaixavam diante de seus desejos, e regular os outros que por ingenuidade, ou mesmo por desejo de obediência, se colocavam abertos às pautas externas que a mídia trazia, enfim um processo de regulação das manifestações desde fora. Mas não se trata de opor às mentiras da mídia uma outra verdade objetiva, mas sim de entender que só existe verdade na produção das multiplicidades. Ou melhor, a verdade é uma espécie de resultado material dos tensionamentos temporais internos a toda multiplicidade ou multidão.
A linha de dispersão, frágil mas cortante, é uma espécie de linha de fuga. O filosofo francês Gilles Deleuze e o psicanalista Feliz Guattari chamavam de linha de fuga “Do esquizo ao revolucionário vai só toda a diferença que há entre o que foge e aquele que sabe fazer fugir aquilo de que foge, rompendo um tubo imundo, fazendo passar um dilúvio, libertando um fluxo…” (Anti-Édipo, pag 357), ou seja, uma fuga ativa, pura permanência de um processo de resistência e invenção. Resistência por que já não se locomove mais através de antigas categorias e instituições apropriadas pelo poder. Invenção por que dentro das condições materiais sabe compor novos corpos que forçam outras temporalidades. Nessa ética experimental, que constitui a formação das multiplicidades cooperantes, chega um momento de conjunção em que aquilo que é destrutivo para a continuidade constituinte é combatido, confrontado. Não é posto para fora porque não há um fora (no sentido de exclusão) em relação a qual as multiplicidades se posicionam, mas há uma estratégia de não uso de elementos que visam enfraquecer a potência das multiplicidades. Sem dúvida alguma os arcaicos ‘aparelhos de captura’ vão continuar funcionando, a força repressiva da polícia militar, as instituições da democracia representativa e mesmo os sindicatos vão tentar desestabilizar o desenvolvimento das multiplicidades. Chamamos atenção para este fato por que o mais fácil é dizer que 68 não aconteceu, o difícil é ter em mente que o Partido Comunista francês e boa parte dos sindicatos, por exemplo, foram responsáveis por não ter acontecido como poderia.
Voltemos às dúvidas. Estas linhas que traçam, cortam e produzem só podem fazer isto diante 1) da dispersão, das linhas de fuga, 2) dos encontros e 3) da composição e produção que os encontros viabilizam, gerando novos corpos sociais.
A dispersão é visível e, cada dia mais, confirmada por diversas partes. Vemos como exemplo fundamental disso o posicionamento público de vários professores apoiando e querendo construir em conjunto com os praticantes da tática black bloc. Portanto, o início e desenvolvimento deste encontro monstruoso, e de tantos outros, é o sinal mais evidente de que uma ‘linha de fuga’ faz fugir todo aquele sistema do qual se foge. Os professores saem dos seus postos hierarquizados, dentro ou fora dos sindicatos, e aceitam dialogar diretamente com que está nas ruas lhe apoiando, e este diálogo não se dá só sobre a manifestação mas desde já sobre uma possível outra educação. Houve contaminação, e a tática black bloc em sua forma e força, ou seja, afeto que é imediatamente coletivo e político, se tornou peça fundamental desta outra educação. A tática black bloc, que era vista, mesmo entre os manifestantes, como uma negatividade necessária agora consegue expor toda sua positividade produtiva e excede o puro confronto para participar da criação de uma educação revolucionária. Eis o que pode gerar o encontros entre ‘linhas de fuga’.
Para falar sobre melhor sobre a composição e produção dos encontros penso ser importante ressaltar: vivemos num momento que é chamado apropriadamente de biopolítico, onde toda a vida é imediatamente política devido a nova configuração dos meios de produção e das relações de trabalho. Sem entrar em detalhes desnecessários para o que desejamos com este texto, cabe lembrar que, segundo um considerável grupo de pensadores, nós não estamos mais vivendo o que foi chamado de modernidade. As categorias e modos de organização social são radicalmente outros, o que nos colocaria no chamado mundo pós-moderno. Aqui utilizaremos as analises desenvolvidas por Antonio Negri, principalmente em Kairos, Alma Venus, Multitudo, pois se trata de, percebendo esta nova configuração, traçar uma positividade produtiva inicial que recoloque a potência do pobre como constituinte de qualquer riqueza.
Para nós o reconhecimento da potência dos pobres é absolutamente fundamental, pois se trata de fortalecer um processo imanente e eterno que se organiza, ora como força anti-colonialista, ora como afirmação de outros modos de vida, outros sujeitos, necessariamente rebeldes, já que persistem numa desobediência amorosa, coletiva alegre e excessiva. Hoje podemos encontrar as mesmas características em vários grupos que se manifestam nas ruas. Portanto, trata-se de perpetuar este processo.
No pós-moderno, segundo Negri, o fim da soberania como forma majoritária de organização política, a mudança na forma do trabalho (a cooperação e o trabalho imaterial, onde o trabalho é ao mesmo tempo intelectual e físico e produz valor através da informação e subjetividade), assume a ponta na desenvolvimento do capital. Além disso, também muda a forma como este trabalho é expropriado pelo capital (explorar agora quer dizer regular, modular, obstruir os encontros, muito mais do que alienar, ou reprimir. Obviamente estes dispositivos não deixaram de acontecer, mas hoje eles estão submetidos às tentativas dos poderes constituídos de obstruir o processo produtivo da multidão, “O Estado no pós-moderno, organiza a exploração do trabalho social vivo sob a forma do controle. Isso significa que, no comum, ele organiza a exclusão daquele pobre que é o produtor do comum.” Kairos, Alma Venus, Multitudo, Antonio Negri, pag 225). Se trata de, como dissemos acima, uma apropriação, pois é a multidão cooperando que cria valores e produtos. Que fique claro, sabemos na pele que a repressão tem sido dura e absurda e que provavelmente continuará, mas interessa afirmar a potencialidade de um encontro monstruoso que ocorreu, apesar da brutalidade. É preciso ter a dimensão deste encontro e fortalecer suas possibilidades, essa é a tentativa.
Acreditamos que não exista uma resposta exata para que o autogoverno da multidão possa se efetivar em toda sua força de renovação temporal, renovação ‘biopolítica’, não só nas manifestações, mas com uma atenção especial para este momento.
A composição interna da multidão, seus encontros e produções e possibilidade de se auto-gerir, são experimentações temporais, novos rascunhos de outros mundos possíveis e isso é feito no limite precário e incerto entre este mundo e os outros, o exemplo da educação deixa isso claro. Mas quem faz esta ponte entre este mundo e outros? O que é fazer está ponte? Quando se faz esta ponte há, do outro lado, algo já formalizado?
Um dos mais conhecidos orixás do candomblé brasileiro é Exu. O significado da palavra ‘Exu’ em yorubá é esfera, infinito, movimento. Por isso ele é a entidade da comunicação, do movimento de levar até os orixás os desejos e oferendas, também encontramos estas definições do orixá ‘grande mestre dos caminhos; o que permite a passagem, o inicio de tudo. É o gerador do que existe, do que existiu e do que ainda vai existir. Exu está presente, mais que em tudo e em todos, na concepção global da existência. É a capacidade dinâmica de tudo que tem vida.’(http://mariapadilhadasalmas.no.comunidades.net/index.php?pagina=1878900701), ou ainda ‘senhor do princípio e da transformação. Deus da terra e do universo; na verdade, Exu é a ordem, aquele que se multiplica e se transforma na unidade elementar da existência humana’ (http://ocandomble.wordpress.com/os-orixas/exu/).
Levando até as ultimas consequências o materialismo das religiões africanas, podemos dizer que uma entidade como essa está em nosso meio, atualizando-se no entorno das possibilidades de comunicação que traçamos constantemente com outros mundos possíveis. Obviamente, não se trata de pensar mundos que estejam acima deste, mas de pensar a criação de outros mundos a partir deste mundo, suas lutas e ações coletivas, um processo de comunicação com um impensado, com um de fora absoluto que está alem de nós, além daquilo que nos forma, um porvir que não se restringe ao futuro dos planos de seguro. Enfim, uma dimensão necessariamente informal do tempo que as diversas forças conseguem colocar em jogo. Isso é produzir dentro do eterno, é restaurar e radicalizar um certo materialismo, com o qual tentamos trabalhar aqui, que Negri captura numa junção entre Maquiavel, Espinosa e Marx, sem deixar de passar pela imanência afirmativa de Deleuze e Foucault.
Enfim, esses meninos que de tantos modos se assemelham a Exú, fazendo este percurso árduo mas fundamental, entre uma recusa total ao estado de coisas atuais e a criação coletiva de possíveis impensados, não nos deixa outra alternativa que não a de nos lançarmos também nesta experimentação temporal onde a única perda será da imposição do presente. Experimentação onde a produção do eterno acena mais uma vez, o que virá não deixará de ter em alguma medida a participação criativa da multidão, trata-se então de fazer com que esta participação seja a mais potente e imanente possível, ou seja, seja produto da e para a multidão.
Para finalizar, afirmamos que, sem nostalgia, o tempo é de ação, uma ação da e pela multidão, pois esta ação é constituída da força irreprimível da geração de um outro tempo.