Por Bruno de Seixas Carvalho
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Quadrilha
João amava Teresa que amava Raimundo
que amava Maria que amava Joaquim que amava Lili,
que não amava ninguém.
João foi para os Estados Unidos, Teresa para o convento,
Raimundo morreu de desastre, Maria ficou para tia,
Joaquim suicidou-se e Lili casou com J. Pinto Fernandes
que não tinha entrado na história.
Carlos Drummond de Andrade
AS DOBRAS DA POLÍTICA (OU O PAPEL-QUADRILHA)
Os famigerados versos de Drummond em seu poema “Quadrilha”, dir-se-ia, tratam do amor e seus descompassos, sua não-linearidade, e mesmo antagonismo, pois a personagem que não amava ninguém (Lili) é a que justamente consegue casar-se. Sérgio Buarque de Hollanda já argumentava que um dos traços da cordialidade brasileira – isto é agir com o coração, em uma espécie de vulgarização da intimidade – assenta-se no poder no primeiro nome; o nome próprio é o próprio nome. Não importa o nome de família de João, Teresa, Raimundo, Maria ou Joaquim; o que os individualiza é o coração, pelo amor que sentem e, portanto, seu primeiro nome.
Lili é como que um ponto de inflexão, pois trata-se um quase-nome, um apelido. Não poderia ser diferente, justamente porque ela é amada, mas não ama. É justamente enquanto resultado dessas tendências antagônicas – nome contra sem-nome; amada, mas não ama – e como ponto de inflexão que Lili torna-se o elemento chave no poema. Ela casa-se como um sujeito sem nome próprio, de modo que sequer sabemos se J. Pinto é João ou Júlia. Em verdade, isso pouco importa porque o J. só ressalta a imprevisibilidade e impessoalidade de “não ter entrado na história”.
J. Pinto Fernandes poderia ser visto como de alguém fora da narrativa, talvez colocado como a salvação de Lili, afinal, ela ama quem ela quiser e não simplesmente quem a ama; o amor não é uma mera retribuição é preciso que ele seja afirmado. Só que Drummond não fala que Lili ama J. Pinto Fernandes, mas somente que eles(as) se casaram. O casamento não explica o amor, nada mais óbvio, e o poema de Drummond vem nos confirmar, não apenas isso, mas que as tendências não se explicam nas instituições em que elas se atualizam. Enxergar uma lógica linear em algo complexo, como, digamos, o amor é reduzi-lo à soma de suas partes. Fica um enigma, pois não sabemos se Lili ama J. Nada surpreendente, pois o que realmente Drummond quis demonstrar é a lógica aberrante e material da vida. O casamento, portanto, não é o “fora” do amor, como que o clímax que baliza, julga e orienta sua proliferação. Não é que não exista um final feliz, é que antes, existir um fim é uma ideia infeliz.
Assim também ocorre com a política no Brasil. A cordialidade brasileira não somente nos faz torna-la tipicamente pessoal, mas também impele a necessidade de uma instância de fora resolver seus problemas. Com efeito, isso acontece desde a nossa primeira constituição de 1824, na figura do poder moderador, onde o coração das instituições estava contido no coração do Imperador. Na prática, isso significou que a política era manobrada por um “fora”, por uma força que, apesar de formalmente inscrita, não operava nas regras normais do jogo e que intervinha quando o jogo não estava indo bem.
Proclamada a República, muda-se a constituição em 1891 e o poder moderador, evidentemente, é eliminado. Entretanto, em uma verdadeira “síndrome do membro fantasma”, mesmo com a amputação do poder moderador, as conjunturas políticas acabam por invoca-lo e a legitimar um fora que sequer houvera existido. Assim foi com Getúlio; assim foi com a turbulenta posse de JK; assim foi com a eleição de Jânio Quadros; assim foi com o segundo golpe militar de 1964 – o primeiro foi a própria República – ; assim foi a crença no lulo-petismo e agora estamos diante do bolsonarismo, literalmente com o Messias que salvaria nossa pátria da corrupção a partir da verdade; “conheceis a verdade e a verdade vos liberatrá”.
Na miopia de se tentar sair da interioridade das conjunturas, do inferno dos possíveis, dos amores já prontos, como um gato que procura procurar cavar no ponto de luz que é emitido da própria sala onde se encontra, brigamos em vão para sedimentar o dentro de que procurarmos sair. O problema maior é justamente esse: buscar uma saída achando que ela já está pronta, pairando a espera de ser desenterrada. J. Pinto Ferndandes não é esse exterior, mesmo porque o casamento é o que há de mais material, em especial quando Drummond escreve, na década de 1930.
Nada surpreende, pois é a lógica aberrante que move a novela da Lava-Jato. Espasmos do poder moderador também se fazem sentir no STF, reverberando mais precisamente, talvez, na figura do Dias Toffoli. Dizia-se que o juiz era defensor dos interesses do PT no judiciário, mas essa articulação tornou-se difusa na medida em que suas últimas decisões mais beneficiavam o Bolsonaro do que o próprio Lula, que o houvera indicado para o cargo. Bolsonaro que odiava o PT que odiava o Moro que odiava o Lula que odiava a Lava Jato que odiava a corrupção que odiava o STF, conseguiu encontrar justamente em Toffoli – que apoiava o Lula que odiava o Bolsnaro que odiava o PT… – alguém que endossava seus interesses ao suspender a investigação sobre Flávio e a COAF. Tudo ia bem até ontem, 07 de novembro, Toffoli emitir seu voto de minerva que, em última instância, poderá beneficiar justamente o Lula.
Tergiversar sobre as intenções toffolianas, buscando desvelar seus reais interesses seria um problema inexistente, na medida em que antes, é justamente a lógica que subjaz à sua decisão é que deveria ser repensada. O movimento de Toffoli só confirma a quadrilha de Drummond. Tudo são máscaras, mesmo por detrás de outras máscaras, de modo que o que as define é muito mais a dinâmica com que são colocadas e retiradas do que as máscaras em si. É disso que Drummond fala: ao retirar-se todas as máscaras do amor – de João a Joaquim – sobra Lili que não é seu ponto originário, mas tão somente outra máscara que perverte o amor em casamento.
Buscar o amor fora do mundo material – onde as pessoas se casam mesmo sem se amarem – é buscar no STF a solução dos problemas para o Lula/Bolsonaro, estes que por si só já são um pseudo-exterior da política. Assim a política aqui é como um papel amassado, com dobras e mais dobras, que se redobram e desdobram se transformando, no final em microporosidades. Fazer de um desses poros uma caverna-saída é o movimento introspectivo que marca a folha de papel, infinitamente superficial, mas acreditando ser profunda. A complexidade do Brasil de 2019 está em que as Lilis estão se casando diversas vezes, ainda acreditando que é por amor. Entretanto, não é exagero afirmar que a política brasileira é literalmente uma infinita quadrilha.
Rio de Janeiro, 08 de Novembro de 2019