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Liberalismo fora do lugar

Por Bruno Cava, UniNômade

Causa consternação a presença de ideias liberais num governo de direita? Seria estranho se não estivessem presentes. O liberalismo político e econômico foi uma arquitrave de todos os governos da redemocratização. Liberais e neoliberais estiveram nos três governos do PT, durante a era FHC, no período Collor. Na realidade, a história do liberalismo brasileiro é vasta, profunda, complexa, admite dezenas de correntes. Participou com relevância central de praticamente todos os episódios marcantes. Estavam organizados politicamente na Independência, na Abolição, na primeira República, na Revolução de 1930, na Nova República. Não deveria despertar nenhuma surpresa que, mais uma vez, seja um protagonista da conjuntura nacional.
 
É que as ideias liberais costumam acompanhar, lado a lado, os projetos de modernização. E não se iludam: a força do governo atual está calcada num programa modernizador – econômico, político e social – que boa parte da população entende como imperativo. Não tem nada de regressivo, se por tal qualificação entendermos um contraste ao que seriam, de FHC a Dilma, governos progressistas. O nó do problema é o sentido que se confere à modernização.
 
Na literatura, existem gêneros propriamente nacionais que conseguem repercutir o gênio de um determinado país. São livros que, agrupados, enchem estantes inteiras das livrarias e bibliotecas de uma sociedade. Na Argentina, seria a estante peronista; na Itália, a operaísta. Aqui, no Brasil, dispomos do paradigma da Formação Nacional. Uma literatura pátria que investiga a gênese social, política e econômica do Brasil na sua longa duração, por meio de uma síntese de diferentes áreas do conhecimento: filosofia, sociologia, economia política, história, crítica literária e antropologia.
 
Um dos maiores esforços dessa literatura formativa foi reabrir o dossiê do liberalismo brasileiro. Fez isso, exatamente, porque o caso suscita uma surpresa inicial. No período do Império, as ideias liberais eram predominantes e a maior parte da elite política professava o liberalismo clássico. E não era simplesmente um liberalismo de salão ou academia. A Constituição de 1824, outorgada por Pedro I, era das mais avançadas do mundo. Exibia um rol de direitos liberais de dar inveja a qualquer nação civilizada e chegou a ser chamada, à época, de “revolução libertadora”. Até hoje monarquistas e admiradores da monarquia se orgulham do arcabouço moderno da que é a Constituição brasileira mais longeva, 65 anos de vigência até a proclamação republicana. Enquanto isso, no restante da América Latina, se alternavam períodos de estabilidade republicana e ditadura caudilhesca.
 
A surpresa está no fato que um país onde o liberalismo era forte e efetivo se baseava na escravidão e no tráfico negreiro. É verdade que, na segunda metade do século, ideias liberais foram um reforço à luta de escravos e abolicionistas, o que demonstra a complexidade do liberalismo. Porém, o dado concreto é que, em sua maioria, a elite liberal brasileira era escravocrata. Não só os políticos eram proprietários de outros seres humanos, como defendiam teoricamente a escravidão. Mas como conciliar liberalismo e escravidão? O argumento principal era o das “ideias fora do lugar”, que é um alicerce do pensamento conservador. É que as ideias de liberdade e igualdade que valiam na Europa deviam ser aclimatadas em solo nacional, antes de aqui ganharem curso. Para muitos liberais tupiniquins, seria primeiro preciso nacionalizar essas ideias tão avançadas, sob pena de provocar uma desorganização geral do país e prejudicar, inclusive, os próprios escravos.
 
Os defensores nacionalistas da escravidão eram parecidos com esses críticos contemporâneos do ambientalismo pela via do social: ideias ecológicas como as de Greta Thunberg até teriam a sua pertinência numa sociedade avançada como da Suécia, mas cá no Brasil, importá-las seria inviabilizar a mais urgente agenda contra a pobreza…
 
Neste ponto, uma maneira de resolver a discussão sem nem mesmo começá-la seria arrematar que o liberalismo é meramente um mascaramento do real. As ideias liberais não passariam de um véu acobertador das práticas reais. Na Europa, confere um verniz civilizado à dominação por meio da exploração do trabalho assalariado e, no Brasil, além daquela, a escravidão. Bastaria, portanto, com um gesto desmascarador, denunciar a função do liberalismo como cortinado ideológico para a dominação real.
 
Por que isso seria fulminar o problema sem entrar nele? Porque não explica o principal: por qual razão é que as classes dominantes precisariam da mediação das ideias liberais para exercer a dominação em primeiro lugar? Por que não o fazem diretamente? No caso europeu, teóricos críticos ainda no século 19 expuseram como as ideias liberais eram um dado estrutural do funcionamento da economia moderna. As revoluções inglesa, francesa e americana puseram fim ao Antigo Regime, quando a sociedade passou a ser organizada por meio do trabalho livre, isto é, assalariado. A cada ser humano era reconhecida uma igualdade e liberdade essenciais, de maneira que poderiam contratar voluntariamente a sua atividade no mercado de trabalho. Essa é uma base das ideias liberais: cada um dotado de autonomia da vontade para desenvolver livremente as suas potencialidades, na medida em que, fazendo-o, desenvolve a sociedade como um todo, levando o conjunto ao máximo rendimento.
 
Uma linha fraca de contestação seria afirmar que essas ideias são máscaras. Que a igualdade e a liberdade seriam prédicas metafísicas de um liberalismo formal, resumindo-se à pregação de formas ocas a fim de camuflar a dominação e a desigualdade reais. É o velho atalho do portrasismo, haveria algo por trás das categorias liberais, um complô para enganar as massas e vender gato por lebre. Mas esta postura não passa de uma miragem tranquilizadora. Pois instaura o benefício do locutor: aquele que denuncia essas ideias, simetricamente, se coloca num púlpito de superioridade epistêmica, o qual transpira de moralidade. As percepções diferentes às suas encontrariam explicação em desvios da reta razão, oriundos de ignorância, cegueira (“não querem ver!”), ou má fé e interesse.
 
Um teórico da Revolução Industrial, Karl Marx, escreveu que o trabalho livre não era simplesmente uma forma camaleônica para prolongar o trabalho escravo ou servil. Havia uma diferença de natureza entre o escravo e o assalariado. Marx concordava com os críticos dos liberais que, no cenário geral, a liberdade para trabalhar só encontrava a sua condição sistêmica para existir na medida em que havia uma situação induzida de penúria que constrangia a pessoa a trabalhar. Noutras palavras, a situação social coagia as pessoas a buscar os meios de sua subsistência e, por essa lei da sobrevivência, tinha que trabalhar, apresentando-se ao mercado do trabalho em posicionamento desvantajoso, de frágil negociação. A escolha do trabalho, portanto, se dava em estado de necessidade, limitando não só as opções de trabalho como também os termos do contrato.
 
Não é diferente, na sua lógica, do que acontece hoje. Sabemos que temos algumas opções de trabalho, mais ou menos restritivas, mais ou menos negociáveis, mas ninguém se ilude. Em última instância, trabalhamos porque as contas teimam em chegar no fim do mês. A inovação de Marx não é demarcar esse fato notório, para isso não precisaríamos de filosofia. O que Marx diz é que o modo como o trabalho *aparece* como livre é fundamental. Embora saibamos que, no fundo, há um grau de exploração no trabalho que fazemos (mesmo que se dê indiretamente, digamos, pelo imposto de renda), nos comportamos mesmo assim como trabalhadores livres: aceitamos o salário e tocamos a vida. Ou seja, para Marx, na esteira de La Boètie, o trabalho assalariado é um tipo social de servidão voluntária, com a diferença de ser mediada pelo dinheiro. O capitalismo, para Marx, se define justamente pelo salário. O capitalismo é a sistematização da conversão da liberdade em bem vendável, comensurado pelo dinheiro.
 
O trabalho livre, que é uma ideia do liberalismo, é uma mediação ancorada na realidade social. Tomada isoladamente, se poderia dizer que é uma aparência, pois na base há a dominação do homem pelo homem. Porém, na medida em que essa mediação faz funcionar o sistema, tomada em seu dinamismo social, ela é real. Não é uma ideologia fátua, pelo contrário, as ideias liberais são a força motriz do sistema econômico, o que produz a riqueza social, o que define as hierarquias de poder entre as nações. O liberalismo não é uma pasteurização da exploração do trabalho, mas um eixo de transmissão, para impelir o movimento do conjunto da sociedade.
 
Qual é a inovação de Marx? É que o sujeito passa a estar fraturado entre o ser e o aparecer. Coexiste em seu âmago uma ambivalência constitutiva, uma reserva existencial em relação à atividade socialmente útil de contribuir para o movimento de conjunto. Essa fissura tanto pode ser alargada por meio da organização dos trabalhadores, no que Marx apostou como superação da dualidade, quanto numa infinidade de outros usos. Por exemplo, estudar filosofia ou escrever críticas literárias, como faziam os operários fabris do oitocentos, de que o filósofo Jacques Rancière nos conta em “A noite dos proletários” (1988).
 
E o que dizer do liberalismo transplantado aos trópicos, onde havia escravidão? A literatura de formação nacional comparece nessa discussão para explicar como aqui era o contrário do que acontecia na Europa que se industrializava. Na economia da Monarquia Brasileira de Pedro I e II, o que propiciava a modernização do país eram os lucros da exportação de gêneros primários no regime escravista do latifúndio monocultor, assim como o grosso capital implicado no tráfico negreiro. Não somente a estruturação econômica do país se deu na franja de expansão do capitalismo comercial-financeiro capitaneado pela Europa Atlântica, — e nesse sentido a escravidão brasileira era um fato da modernidade, — como o que permitia a existência de uma elite liberal era o regime escravocrata. No Brasil, a escravidão e o capitalismo marchavam juntos, numa dualidade integrada. E mais: foram as fontes de acumulação de capitais gerados nesse comércio triangular uma das alavancas para a construção do primeiro parque industrial europeu.
 
É por isso que autores da Formação Nacional insistem que, sim, o liberalismo escravocrata tinha um aspecto modernizador. O sentido da modernização é que deveria ser colocado em xeque. O trabalho livre e as ideias liberais eram viabilizadas graças ao tráfico e à escravidão e não apesar deles. Crise dos modelos explicativos dualistas: o arcaico-agrário-exportador não é nenhum empecilho ou obstáculo aos projetos de modernização, mas o seu pressuposto. Não há sequer contradição aí, senão numa camada bastante superficial de um discurso retrospectivo, que nem mesmo era o da época. Assim como, no liberalismo do Império, o pressuposto social das ideias era a própria escravidão.
 
Isso explica também como, na Abolição, liberais radicais foram relevantes para reforçar a luta dos escravos e abolicionistas, no entanto, quando da reacomodação do sistema, o efeito foi ambivalente. Abolida formalmente a escravidão, não houve nenhum movimento revelador da responsabilidade social pela situação degradada do negro, nem redefinição de atitudes e expectativas da sociedade dos brancos em relação a eles. Sim, o negro liberto não era comparável à situação do escravo, no entanto, tampouco se equiparava ao trabalhador livre. Assim como o proletário europeu, um sistema subjetivo dual se implantava no interior de cada um, entre o ser e o aparecer. Os autores da Formação Nacional vão desenvolver em vários pontos como a estrutura da Colônia e do Império se prolonga, em novos arranjos e esquemas, ao longo do período republicano, até a atualidade das respectivas obras.
 
É nesse panorama teórico-político que um crítico paulista, Roberto Schwarz, escreveu o ensaio “As ideias fora do lugar” (1973). Para o crítico literário, a discussão vai mais longe. É que, no Brasil, devido às muitas camadas históricas, aos muitos esquemas interpretativos, é inevitável que o autor nacional não deixe de pressentir uma sensação bastante característica. Que é uma mistura de inquietação e mal-estar. É o que Raymond Williams chama de “estrutura do sentimento”. Essa estrutura repercute a estrutura desconcertante da formação brasileira. Ao tomar posse de ideias americanas ou europeias, tem-se o pressentimento de que sejam ideias postiças, mal aplicáveis ao disforme da matéria local. Aqui, afinal, o jogo seria outro, seríamos o filhote da cobra d´água com o jacaré, o videogame nível very hard, o lugar desconcertante em que governos de esquerda montam cartéis de grandes empreiteiras e liberais caminham de mãos dadas com a extrema-direita. Todo um rol de esquisitices nacionais, que se revela num arsenal de expressões jocosas.
 
Para Schwarz, isso provoca uma segunda redobra da dualidade entre ser e aparecer, uma nova ambivalência ideológico-moral. Daí ele chamar o liberalismo brasileiro de ideologia de segunda ordem. É um pensamento ao quadrado, porque aqui, sequer tivemos (em período algum) o predomínio do trabalho livre que marcou a Revolução Industrial no Velho Mundo. Eis por que o crítico recomenda que o método mais adequado para conceitualizar as formações nacionais, no que elas têm de específico, envolve percorrer os mesmos ziguezagues e revezamentos de sua gênese histórica. O que exige a paciência do conceito e um espírito de finesse. O estilo alusivo, machadiano, se infiltra na crítica por necessidade formal. Somente assim, se pode começar a deslindar o ‘hard’ embutido nas bizarrices brasileiras, como também apreender o seu posicionamento no interior da globalização e, por tabela, compreender o global a partir de um sistema concreto de mediações dado pelo local.
 
Novamente, não se trata de cortina ideológica a esconder as relações reais de dominação. Tome-se, por exemplo, outro item do ideário liberal, a ideia de meritocracia. Não só a escravidão se desdobrou em inúmeros gradientes de alforrias e mestiçagens, como o próprio trabalho livre nunca se dissociou da prática clientelista no país. Se, na Europa, surgiram os profissionais liberais, aqueles que, sem patrões fixados, vendem os seus serviços no mercado aberto e não devem nada a ninguém; no Brasil, tais trabalhadores mais autônomos sempre dependeram de um extenso repertório de favorecimentos e acertos. O exercício da profissão, amiúde, estava condicionado a favores na burocracia pública, jeitinhos, ajudinhas, permissões informais para atuar de tal modo ou em tal lugar. Numa palavra, o favor, que desde os primórdios coloniais acompanha o funcionamento do mercado de trabalho, com seus QIs (Quem Indica) e empurrãozinhos.
 
E isso se dissemina por todo o tecido social da experiência, num degradê. O que não significa que o mérito inexista. É claro que existe. Só que o mérito é um hemisfério da realidade, que tem de conviver com outro. Isto provoca, na mente brasileira, uma reserva de hesitação, uma desconfiança íntima. Quando alguém passa no vestibular e, com justeza, lhe reconhecemos o mérito, não deixamos de pressentir que, avizinhado, há outros elementos partícipes. Talvez o suco de laranja trazido pela empregada doméstica enquanto estudava o material do cursinho poderia também ter algo a ver.
 
Em suma, todas as ideias estão no seu lugar. Os liberais no governo estão no seu lugar. Os anarcoliberais estadofóbicos de Chicago também estavam durante a ditadura Pinochet. Ou os social-democratas durante o auge do Petrolão. Ou a esquerda socialista quando da remoção de favelas no Rio de Janeiro. Ou o socialismo do século 21. E por aí vai. Todas as ideias estão no seu lugar. O que muda é a relação entre as ideias e o lugar, o complexo entrelaçar que engloba múltiplas dimensões e camadas. Sem explicar isso, sem explicar no que o atual governo participa de uma ampla modernização em suas dimensões global e local, ficaremos apenas na superfície dos eventos, no anedótico casamento da cobra d´água com o jacaré.
 
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