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As indignações conduzem à luta comum

Por Samuel Braun, no Sindicato e a rua, 7/10/13

“Lutas populares e sindicais acabaram por ir formando um híbrido, que à revelia do interesse das direções sindicais, ou em consonância com o brilhantemente captado e planejado por elas, reunificam as lutas contra as injustiças sociais.”

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As indignações conduzem à luta comum, ressignificando-a

Os problemas sociais podem ter diversos nomes, variados disfarces e comportam diferentes estratégias de enfrentamento. Mas no fundo, todos ligam-se por um pequeno arco de afinidades e complementaridades que tornam as lutas populares, sindicais, étnicas, de gênero, políticas e tantas outras um combate à uma mesma fonte de opressão. Nós, no entanto, nos perdemos em nossas disputas de egos e acabamos por vezes criando outras barreiras no processo. Barreiras estas que opõem uma e outra forma de interpretar e combater o mesmo problema social, e que por fim nos desvirtuam deste embate de fundo e nos levam a uma luta fratricida.

Nesse sentido, as tradicionais lutas sindicais, em defesa dos trabalhadores, de seus direitos mais básicos, de continuado enfrentamento com a exploração desmedida, de militante conscientização de milhões para que não reproduzam acriticamente suas condições de dominados e expropriados capitalistas, nos são bastante claras como lutas sociais travadas contra a forma de opressão estruturante de nossa sociedade global: o capitalismo. Independente das denúncias de revisionismo, das críticas advindas das disputas pela direção das organizações de luta, o certo é que os sindicatos são mecanismos legítimos de mobilizar e conscientizar.

Entretanto, desde junho, aqui no Brasil, e há alguns poucos anos mundo afora, temos conhecido, na construção, outras formas de mobilização popular e luta social. Estas formas trazem características tão opostas às que conhecemos tradicionalmente, como partidos e sindicatos, que parecem opor-se-lhes, quando na verdade o que ocorre é uma ressignificação dos mesmos princípios que devem nortear os sindicatos (e partidos, por que não?).

Temos presenciado milhares e até milhões nas ruas, protestando e manifestando sua indignação contra uma miríade de problemas sociais, que como destacamos acima, são consequências e aparências de uma mesma problemática social. Estas pessoas, no entanto, não só não foram organizadas em massa, convocadas e orientadas quanto ao que e como fazer, como também rejeitam esta tutela, tão tradicional e sistemática que não por acaso é o que primeiro damos falta. Enquanto as lutas (legítimas) até então se organizavam através de lideranças, grandes aparatos burocráticos, centralismo decisório, alienação da grande maioria das instâncias deliberativas reais a fim de que uma vanguarda revolucionária os guiasse, estes que agora tomam as ruas prescindem de tudo isto. E mais, colocam isto tudo também no centro do problema a ser combatido.

Não é de pequena importância uma discussão que presenciei numa das manifestações do Rio em julho recente. Um rapaz, de não mais que 20 anos, discutia apaixonadamente com um senhor, de uns 50 anos, sobre o termo “massas”. Quando este senhor reclamou a falta de objetivos claros pela massa, eu fiquei pensando “que objetivos este senhor consideraria claros?”, mas o rapaz prontamente retrucou: “Massas? Não somos massas! Se estamos juntos é porque temos afinidades de pensamento, de ideias, porque sentimos a mesma coisa. Ninguém nos manobrou aqui. Ninguém me disse o que era claro pra eu querer. O senhor está aqui por motivos diferentes do meu, mas está aqui. Se fôssemos massas, nunca estaríamos aqui juntos!”. Infelizmente não peguei contato de nenhum dos dois, pois fiquei minutos parado, pensando nas implicações daquela discussão.

A fala deste rapaz dá ideia do que estamos vendo. Não são mesmo massas, muito menos de manobra, mas sim multidões que vão às ruas protestar por aquilo que as indigna, que lhes parece injusto, urgente de se mudar. Insisto que não existe nenhuma contradição nisso. A clareza de objetivos que exigia o militante senhor, está ali, para ser apreendida. Mas ela não vem didaticamente soletrada nos cartazes, está nos discursos, nas entrelinhas, brotando da análise social necessária. E enquanto se buscar as lideranças para negociar, as instituições para disputar-lhe o controle, não se entenderá nada do movimento, pois sua maior e primeiríssima bandeira é exatamente contra lideranças e institucionalidades alienantes do indivíduo.

Sou fiador da tese de que a passagem do medo paralisante para a esperança mobilizadora se dá na capacidade de muitos indivíduos conseguirem criar identidade e reconhecer nos outros o mesmo motivo de medo e indignação que possui. Não é o fetichismo de poder do sindicato, com seus cargos, instâncias, colegiados e toda estrutura que lhe faz ser uma entidade útil à luta. O que confere eficácia para a luta é o fato de congregar inúmeros indivíduos, na mesma situação, com os mesmos temores e revoltas, comungando indignação e identificando-se mutuamente. Este sentimento comum, este compartilhar de indignações traz consigo a esperança, pois rompe-se o isolamento do medo. Não se está mais sozinho na indignação. Se muitos revoltam-se com as mesmas coisas, é justo, necessário e possível lutar contra elas. E esta possibilidade vem do rompimento com o medo conferido pela sensação de força conferida pela multidão que se soma. O sindicato é isso. Não a estrutura eleitoral, o edifício físico, as cartas e jornais impressos, os indivíduos que se apresentam como lideranças. Não, tudo isso não passa de estratégias de organizar a indignação coletiva (e individual, ao mesmo tempo), às vezes positivas, as vezes contraproducentes, alienantes, divisionistas.

O sindicato então “bebe” da mesma fonte que os movimentos multitudinários. Qualquer oposição entre eles não passa de construções interesseiras, partidas daqueles que preocupam-se com o controle e gerenciamento das revoltas alheias, e não com a luta em si. Quando cantamos “o sindicatos somos nós, nossa força e nossa voz”, cantamos em louvor à essa fonte instituinte, que não está na liderança, no programa revolucionário, na instituição (pura lógica, instituição vem depois daquilo que institui) e sim em cada um de nós, potencializando o indivíduo, sem castrá-lo em prol de uma alienação coletiva.

Nesse contexto, é dispensável detalhar as lamentáveis investidas de parte das lideranças sindicais, ou dos intelectuais orgânicos que há muito deixaram de fazer jus a estas alcunhas. Cabe apenas destacar que no desenrolar desta guerra fratricida, importante ideóloga da esquerda preferiu unir-se à repressão oficial do poder instituído do que reconhecer que inevitavelmente está se entrando numa era onde as lideranças estão sendo trocadas pelos fluxos. Também, fui testemunha de tramas de porão a fim de construir táticas de guerrilha contra os black blocs, ou, “esses fascistas, vândalos”. Como se lá atrás, os hoje sindicalistas não tivessem sido chamados de terroristas, arruaceiros, intolerantes, etc. O novo assusta quem apenas quer conservar, não revolucionar.

Mas a consciência aos poucos brota, e os estratagemas de divisão das lutas populares vão sendo desmascaradas. As redes de poder possuem a vantagem de conferir a qualquer processo uma versão oficial, até então praticamente inexpugnável. Mas eis que um dos diferenciais destas lutas horizontais é que elas não só se originam no espaço da quase anarquia da internet, como se mantêm e se comunicam através dela, contando em paralelo sua versão, que acaba por fim constrangendo e rompendo a versão oficial. Assim, trabalhadores, populares e indivíduos em geral são diariamente confrontados com a inconciliável oposição dos relatos, e a sede por justiça, que origina qualquer mobilização, também impulsiona para a rejeição da versão oficial, distorcida e criminalizante. Sindicalizados ou não, todos estão confrontados com a desconstrução do discurso vertical, editado, alienante.

Dessa forma, lutas populares e sindicais acabaram por ir formando um híbrido, que à revelia do interesse das direções sindicais, ou em consonância com o brilhantemente captado e planejado por elas, reunificam as lutas contra as injustiças sociais. Black blocs e professores, bombeiros e anonymous, bancários e “vândalos”. Nas últimas duas semanas, a greve dos profissionais de educação do Rio tem se mostrado fruto desta indignação que irrompeu no caldo cultural brasileiro. Há 20 anos os professores municipais (do Rio) não entravam em greve, e fazem-no agora, chegando já ao fim do segundo mês de paralisação. E quando a repressão violenta se apresentou como cartada final para desmantelar a revolta, eis que a união entre sindicalizados e não-sindicalizados, os acordados e os que nunca dormiram, os vândalos e os esquerdistas tradicionais, os trabalhadores e os black blocs, esta união criou uma resistência tão forte e coesa que tornou possível enfrentar a ação criminosa e descontrolada da repressão estatal. Resistência que se deu no espaço físico, no espaço virtual e principalmente no simbólico. A divisão entre os dois “tipos” de lutadores, os organizados e os independentes, favorecia e municiava o poder instituído.

Assim também, os bancários adotaram uma postura diferente em relação aos movimentos multidudinais de Junho pra cá. Se existem categorias organizadas, tradicionais e com forte capacidade de mobilização e enfrentamento no país, os bancários certamente são uma delas. Sua história de luta, resistência e combate contra diversas formas de cooptação, seu enfrentamento contra o principal segmento do sistema capitalista, o sistema financeiro, onde os princípios injustos desta forma de organizar a sociedade se mostram mais clara e violentamente na organização do trabalho, tudo isto faz da categoria bancária uma das mais bem estruturadas e institucionalizadas do sindicalismo brasileiro. A estrutura, ramificada em sindicatos, federações e confederação nacional, cria um gigantesco sistema representativo interno, onde as pautas são exaustivamente debatidas, construídas e, obtém, em relação às demais categorias, alta taxa de sucesso. Toda essa estrutura, no entanto, parecia apontar para que os bancários fossem ponta de lança na argumentação “anti-vândalos”, “antifascista”, “antianarquista”, etc. Parecia, mas foi o contrário.

A CONTRAF/CUT, confederação nacional que representa cerca de 95% dos bancários do país, definiu, em congresso nacional anual, fruto de congressos regionais e setorizados por bancos que o precedem, uma estratégia de campanha e marketing que usa os slogans “#vem pra luta bancário, vem!”, “meu salário não me representa”, “não é só por salário, é por condições de trabalho no padrão Fifa”, em claras referências aos gritos de guerra advindos dos movimentos de rua. Além disso, a retomada das passeatas com interdição de ruas, para reclamar suas pautas, há algum tempo evitadas por considerar que desgastavam o diálogo com a sociedade, demonstram uma absorção deste novo momento político. Podemos apontar também a intensificação do uso das redes sociais, do facebook e twitter, o compartilhamento de imagens com alto teor questionador, como a que compara 20 anos de retorno de uma poupança com 20 anos de uma dívida de cartão de crédito, a fim de conscientizar a população para as pautas sociais dos bancários. As referências e mimetismos se multiplicam, mas o mais importante está na práxis.

As assembleias deste ano, as ações do sindicato e a receptividade da população são os maiores termômetros desse sincretismo rua – sindicato. As assembléias, no geral, passaram a ter um teor mais gregário do que de disputa por espaço de poder. O uso do microfone deixou de ser um elemento fetichista, e houve quem, depois de muito tempo, prescindiu dele para estar participando de GT organizativos. A adoção de medidas menos cautelosas com o xadrez político partidário, também parecem guardar relação com os gritos de “sem partido” das ruas, tais como a inaudita união entre bancários, cutistas, com os profissionais da educação, de outras centrais sindicais, independente da direção de um sindicato ser oposição do outro, e vice-versa. Neste mesmo dia em que escrevo, logo mais à noite, uma grande passeata foi convocada pelas redes sociais, em defesa dos professores e com apoio declarado e mobilização dos bancários.

E assim também, como destaquei, a receptividade da população à greve, foi outra. Os bancários tem feito greves anualmente, há mais de uma década, e os veículos de imprensa lograram êxito, nestes últimos anos, em jogar a maior parte da população contra o movimento paredista. Os destaques midiáticos aos prejuízos dos serviços paralisados são habilidosamente imputados aos bancários, nunca ao contexto da luta, e as insatisfações perenes contra a exploração financeira, como altos juros, filas, taxas indecentes, etc, são mobilizadas contra a greve, como se estes problemas constantes fossem culpa de um momento de paralisação, que no fundo, luta contra esses problemas. A categoria está ciente desse desafio, e tem discutido, ainda sem solução, como reverter esta situação. Mas neste ano, a população tem demonstrado uma outra relação com a greve.

Para militantes desta categoria, como eu, a função de estar nas portas das agências, convencendo da necessidade de adesão aos colegas bancários e conscientizando a população quanto à nossas demandas e a importância do direito de greve, é normalmente estressante e desgastante. O cliente do banco concorda com todas as nossas críticas, mas sempre pareceu resignado quanto à imutabilidade desta situação, recriminando qualquer ação que contrariasse a ordem vigente, mesmo que esta lhe fosse prejudicial. Mas este ano, se nem tudo são ainda rosas, a quantidade de clientes que demonstram apoio à greve e que se dispõem até mesmo a compartilhar nossos materiais de denúncia tem surpreendido a todos. Não só deixaram de recriminar o movimento, como diversas vezes disseram: “Até que enfim! É isso mesmo, tem que parar tudo!”. Outros, nos declaravam que sentiam-se vingados quando viam agências depredadas após as manifestações de rua. Inegavelmente, há uma identificação entre os oprimidos contra o opressor, rompendo com o discurso divisionista que colocava bancários e clientes em confronto, para deleite dos banqueiros.

Assim, os levantes de junho (por falta de um termo definidor ainda consagrado) têm deixado legados fundamentais para a luta social no Brasil. Não só no questionamento das estruturas de poder, que penetram e aprisionam até mesmo as organizações de luta, como sindicatos, mas também na criação de uma cultura cidadã, onde questionar não é mais pecado, onde insurgir-se não é mais condenável, onde a ordem e a paz aparente podem ser questionadas se não representam justiça social. O homem cordial vai dando lugar ao vândalo. Este, tão exaustivamente identificado pejorativamente aqui e ali, como forma de amedrontar e criminalizar, acabou tornando-se um elemento identitário, de contracultura, onde uma mesma palavra assume um sentido questionador, ressignificando-a.

E as entidades sindicais, legítimas organizações de luta dos indivíduos, compartilhando as indignações e criando as condições para o enfrentamento coletivo do medo, tem muito a aprender e ensinar, num processo colaborativo, com os levantes populares multitudinais. Acredito mesmo que as estruturas hierárquicas, centralizadas e dogmáticas dos sindicatos terão que se adaptar às demandas por democratização e respeito às individualidades que se expressam nestes levantes. E isso só tem a fortalecer as lutas populares.

Não existe oposição entre a rua e o sindicato. Existe apenas o interesse de alguns (muitos) em opor-lhes a fim de manter suas reservas de mercado político e gerenciamento da miséria alheia. A construção das pontes entre estas duas formas de mobilização configura-se como mais uma das lutas que devemos encampar.

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