Por Maria Luisa Boccia, Ida Dominijanni e Tamar Pitch | Trad. UniNômade Brasil
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Lampedusa não é apenas a ponta extrema da Itália e da Europa, a dita porta da península e do continente, defronte a outra costa do Mediterrâneo, a costa africana. É também, como sabe quem quer que por poucas horas tenha posto os pés lá, um microcosmo para as contradições ferozes da globalização. É um lugar onde a presença espectral de imigrantes presos e amontoados uns sobre os outros no centro de recepção coabita, em muitos meses do ano, com a presença descontraída dos turistas de férias. Onde a incumbência cotidiana da morte convive com o presente eterno da indústria recreativa. Onde acontece — e aconteceu, tantas vezes — de os corpos dos banhistas se encontrarem com os cadáveres que o mar empurra para a praia ou atira às rochas. É o lugar onde os corpos que contam, — e que se contam um por um porque se equivalem, enquanto consumidores de hotéis, bares, cremes bronzeadores e repelente de mosquito, — são contíguos àqueles que não contam, que se contam em cachos, às dezenas ou centenas quando do mar aparecem vivos ou mortos, sem singularidade sem nome sem história. É um lugar onde nós, europeus, chegamos de carro carregados de todos os nossos (vacilantes) direitos. E eles, os imigrantes, chegam sequer sem o direito de ser velados e enterrados.
Chamada “fronteira da Europa” por nossos políticos, mas eles não sabem do que falam. Lampedusa é precisamente o lugar onde a ideia de fronteira se torna vã. Está dissolvida no mar. Obedecendo a um nome mais antigo da geopolítica, o Mediterrâneo — mar do meio, e de mediação, o mare nostrum — mistura o que os confins da política e da lei pretendem separar. Não existe soberania estatal que se sustente, em Lampedusa. Não há lei de imigração que valha, no mar do meio. Não há barreira possível à cidadania, onde o próprio do direito se perde no nostrum do mare. Onde o mar restitui a contiguidade entre vida e morte, aí onde a política de distribuição hierárquica e aniquiladora dos direitos, — cem para nós e zero aos imigrantes, –0 tira a máscara e mostra aquilo que ela é: uma tanatopolítica baseada, nada mais nada menos, do que em Auschwitz, na pretensão sádica de dividir os humanos em mais humanos, “nós”, e menos humanos, “eles”.
Nenhuma retórica do horror, nenhuma moral da vergonha, nenhum elogio do heroísmo dos lampedusanos, nenhuma proclamação de luto nacional têm credibilidade se não forem acompanhados de uma clara e explícita autodenúncia da convivência da política italiana com essa tanatopolítica de tristes raízes europeias, jamais extirpadas por completo. O papa, que não legisla, pode envergonhar-se e apelar a nossa vergonha, a um sentido coletivo de culpa, a um desejo coletivo de expiação; já o governo, o parlamento, a presidência da república não podem. Se se envergonham, como é auspicioso, têm o dever de demonstrá-lo com atos. Em primeiro lugar, desfazendo o que fizeram até aqui. A revogação imediata da Lei Bossi-Fino e a descriminalização da imigração clandestina são premissas necessárias, urgentes e improrrogáveis de qualquer discurso sobre a política imigratória, de recepção e asilo político.
A tendência do discurso público sobre os fatos de Lampedusa, no entanto, vai num sentido completamente contrário, e não somente da parte da direita. O Ministro do Interior, diante dos cadáveres alinhados, surdo às palavras inequívocas da prefeita de Lampedusa e do governador da Sicília, diz e repete que o problema não é a lei Bossi-Fini, no que com toda evidência não pretende mexer, mas o envolvimento de toda a Europa “na partilha da responsabilidade pela tragédia”. Aqui, se está falando da Europa numa perspectiva duplamente errada: primeiro, ao invocar em termos meramente repressivos a soberania que as migrações desafiam, como se para superar a crise do estado soberano bastasse alargar os confins das nações singulares da União Europeia; segundo, ao invocar a lógica da redução de danos diante de um fenômeno que nunca foi um dano e nem pode ser reduzido. A União Europeia precisa, em vez disso, impor a derrocada da lógica da “fortaleza-Europa”, a revogação das leis que consentem a circulação livre de mercadorias, mas impedem a dos humanos, a abertura de corredores humanitários, e a promoção de políticas de asilo ao lidar com as massas de refugiados vindos daqueles mesmos países onde a Europa fomenta a guerra. E uma total virada do discurso sobre os imigrantes, para que finalmente possam ser vistos como um recurso necessário num continente destinado ao declínio demográfico, e não mais como um dano a ser controlado, uma tragédia a ser reprimida.
Retemos que, ao redor dessas questões, os partidos de centro-esquerda devam desenvolver ações parlamentares claras e vinculantes, com vistas à valorização e continuação do atual experimento de governo.