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Barcelona em comum: a cidade como horizonte democrático

Por Manuela Zechner, no reflections on a revolution, 4/3/15 | Trad. UniNômade

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Diagrama organizativo do Guanyem (Barcelona en comú)

Com todos os olhos voltados a Syriza, Podemos e Troika, o foco da atenção da esquerda nesses dias é a possibilidade de reivindicar democracia dentro do estado — e, inshallah, no nível supranacional. Ainda assim, ao mesmo tempo, e de certa maneira menos visível, existe um novo ciclo de lutas pela governança democrática se desdobrando no nível da cidade.

Um desses movimentos municipais é a plataforma Barcelona em comum [NT. do catalão Barcelona en comú]. Pioneira em adotar novos modos e palavras para abordar a cidade a partir do comum(s), a plataforma Barcelona em comum abriu possibilidades para uma política radicada nas experiências do dia a dia, em relações sociais e espaços de reprodução social.

Uma história de horizontes enredados

Em 2011, o movimento do 15-M explodiu o horizonte político na Espanha e inaugurou um ciclo de lutas ao redor de espaços e instituições, que tem crescido e se transformado desde então. Sua história consiste em vários episódios e cenas e seu making of está longe de ser uma narrativa linear. As mobilizações produziram efeitos visíveis internacionalmente, como a ocupação de praças ou o sucesso recente do Podemos, o partido da esquerda radical que emergiu no começo de 2014, ganhando cinco cadeiras nas últimas eleições parlamentares europeias, e que é hoje a força eleitoral mais destacada nas pesquisas eleitorais. O sistema bipartidário que tem paralisado a Espanha desde Franco chega agora ao fim.

Na primavera e verão de 2014, desenvolvendo-se desde a inteligência social e processos que alimentaram as lutas pós-15, desde experimentos em democracia radical, tem sido imaginada na Catalunha uma estratégia para vencer as eleições municipais: chama-se Guanyem Barcelona [NT. do catalão, Ganhemos Barcelona]. No verão, esta plataforma formada por movimentos sociais e a sociedade civil lançou seu chamado de luta contra as políticas corruptas de austerity do Partido Popular (PP), hoje no poder, e do governo local catalão.

Os murmúrios rapidamente se tornaram um rugido permanente. Dentro de um mês, o Guanyem coletou 30 mil assinaturas de apoio ao projeto. Centenas de pessoas se juntaram à plataforma e se envolveram em grupos de trabalho, se engajando num processo longo e complexo. Na medida em que o modelo proliferou pela península, estruturas similares ao “Ganhemos” logo apareceram em Málaga, Madri e outras cidades. Uma vez as assinaturas confirmando que havia apoio o suficiente para uma candidatura, a construir-se desde os bairros e movimentos, representantes da plataforma em Barcelona trabalharam para registrar o novo partido político.

Aí, contudo, surgiu um empecilho curioso. Ao tentar o registro envolvendo-se com a burocracia do ministério do interior, o Guanyem se deparou com uma surpresa: um obscuro conselheiro catalão já tinha registrado o nome “Guanyem Barcelona” apenas dois dias antes. O homem logo apareceu com uma oferta: deixem-me a cargo da coordenação de todas as plataformas na Espanha que eu, então, devolvo o nome. Isso foi ridículo não somente por causa da chantagem, como também porque as iniciativas do Guanyem/Ganhemos são autônomas.

Havia ampla evidência da ilegitimidade desse registro — o homem forneceu um endereço falso, o Guanyem tinha papéis das tratativas prévias onde já era mencionada a intenção por esse nome — de modo que foi protocolada uma apelação. Ainda que esse tipo de sabotagem não seja incomum na paisagem política espanhola, as chances pareciam estar contra o conselheiro desesperado e a favor do Guanyem. Apesar disso, o ministro do interior, controlado pelo PP, rejeitou a reclamação do Guanyem.

Então Guanyem relançou-se como Barcelona em comum, em fevereiro de 2015, agora já tendo crescido num movimento municipal de porte. Sua confluência com uma série de partidos locais de esquerda está garantida e o programa eleitoral vem sendo esboçado coletivamente, aberto à avaliação e opiniões online. Preparado para uma primavera quente, o Guanyem se chama agora Barcelona em comum, entrando numa nova fase, com novos desafios.

Metodologia e organização

Haveria muito a dizer sobre a metodologia do Barcelona em comum, na medida em que uma abordagem radicalmente democrática precisa vir acompanhada de uma hoste de ferramentas, técnicas, mecanismos e estruturas, a fim de garantir uma política municipal desde baixo. São vários níveis de arranjos materiais (bairros, áreas temáticas, coordenação, logística, mídia, comunicação etc) e plataformas online (para se comunicar, votar, trabalhar), em conjunto. O organograma da iniciativa mais parece uma máquina de lavar ou um acelerador de partículas, do que uma hierarquia vertical.

Isso é bem apropriado, porque política e organização giram juntas num ritmo diário aqui, reconsideradas e reconfiguradas num intenso experimento de ação e pensamento coletivos. Tudo isso acontece sem prescrições, instruções, financiadores ou lobbies, com muitas cabeças, braços e pernas no trabalho: certamente diferente do “processo participativo” típico perto de você.

Começar sem uma receita, contudo, não significa que a iniciativa esteja inventando seus próprios termos, condições e práticas do nada. O exemplo mais inspirador da inovação foi o código de ética política do Guanyem, que foi discutido, escrito e ratificado num fim de semana de trabalho aberto em outubro de 2014 — com cerca de 300 pessoas presentes e muitas outras seguindo e comentando online. O código de ética expõe os compromissos básicos da plataforma, acerca de representação, auditoria, responsabilidade, financiamento, transparência, profissionalização e corrupção, e se aplica a qualquer um que queira trabalhar no Guanyem.

No nível das propostas políticas, grupos de trabalho temáticos (saúde, migração, cultura, turismo, trabalho, economia, urbanismo, gênero, governança local, educação, informação) assumiram a tarefa de formular posicionamentos, com critérios mínimos e propostas para cada área. Elas serão negociadas com alguns outros partidos no escopo — ICV, EuIA, Podemos Barcelona, Processo Constituinte e Equo — que se coliguem com o Barcelona em comum na candidatura municipal.

Barcelona em comum é também um experimento em criar, acessar e valorizar recursos e infraestruturas do comum. Tem bem poucos recursos materiais à disposição, e abre as portas para infraestruturas do tipo conselho, visando a uma nova legitimidade e a reivindicações coletivas, além de valorizar infraestruturas políticas organizadas desde os bairros e movimentos, em sistema de auto-organização social. Isto confere ao comum do nome um significado muito concreto.

Um laboratório de inteligência social

Desde a concepção, o Guanyem Barcelona captou o papel dos bairros como protagonistas da mudança. Está claro que o Guanyem aprendeu muito de movimentos como a Plataforma de pessoas afetadas pelas hipotecas (PAH), o movimento de moradia mais forte da Espanha, que também emergiu em Barcelona — e que construiu a sua força por meio de processos de proliferação de redes de grupos locais, cada qual singular em suas próprias inclinações políticas, texturas social-afetivas e estilos. Grupos de bairro são espaços cruciais para desenvolver análises e mobilizar a força coletiva, propiciando contágio e responsividade entre processos locais e grupos temáticos da plataforma, assim como em seus comitês de coordenação.

No verão de 2014-15, cada um dos grupos de bairro trabalhou com um documento de diagnose sobre sua respectiva área.  Os documentos foram elaborados em encontros abertos e analisam problemas e medidas propostas no nível local. O documento de meu bairro, Poble Sec, aborda questões como urbanismo, saúde, economia, trabalho, precariedade, desigualdade e pobreza; sociedade da informação, governança e participação, cultura, migração, moradia, turismo e educação.

As propostas abrangem desde a reapropriação do espaço público até a abertura de centros e serviços de saúde aos idosos, o apoio a pequenos negócios locais e formas de economia solidária, a criação de um centro de educação adulta e vários pontos de Wi-Fi grátis, o encorajamento, planejamento e tradução participativas, o suporte a espaços sociais e culturais auto-organizados, a intervenção nas permissões e planejamentos da prefeitura sobre os espaços, e assim por diante.

Essas assembleias locais são espaços de encontro entre pessoas com diferentes trajetórias de vida, aproximando diferentes níveis de expertise e experiência — conhecimentos locais ou técnicos com a mesma importância. Esses estão se encontrando e se refazendo em novos saberes sociais, conduzidos notavelmente por uma “classe média” movente cada vez mais empobrecida e precarizada. Esta condução é tanto a força (existe um potencial imenso de mobilização desses conhecimentos profissionais ou locais, e da textura social em que se compõem) e um risco (será um desafio manter a pluralidade de sujeitos e escapar das “tiranias” da classe média).

Interações de proximidade e diferença

A crise político-institucional atual nos força a reimaginar os espaços sociais e políticos enquanto espaços de ação coletiva. A cidade é um espaço de experiência e atuação que conhecemos e no qual participamos diariamente, não apenas ao simbolizar, mas também ao incorporarmos o comum social. Existe uma camada chave entre a praça e o parlamento, entre o 15-M e o Podemos, a sua importância não está apenas na escala: uma política para a cidade tem o potencial de propor novas metodologias radicais, para pensar a proximidade e a diferença, e organizá-las. Traçar a política no nível da cidade pode juntar força para explodir binarismos e contradições entre a rua e o estado, o micro e o macro, e mesmo entre o local e o global.

Com o foco no municipal, retomar as instituições (direitos sociais, infraestruturas, mecanismos democráticos), espaços (vitais, sociais e representativos) e autonomia (sobre a riqueza social, bairros, e o dia a dia) se torna algo bastante alcançável e concreto. Como gostaríamos que fosse a nossa escola, a nossa praça, nosso abrigo para sem teto? Não um abrigo qualquer, mas um aqui, na nossa rua, nosso?

Existe uma potência imensa na proximidade e em conhecimentos situados na cidade, tornando a questão da autodeterminação algo concreto, e sem necessariamente passar por assuntos de identidade, seja ela nacional ou cultural. Reivindicações autorreferentes do território são difíceis de sustentar, em face da heterogeneidade de interesses e estilos de vida que moldam a cidade pós-industrial. Na melhor das hipóteses, a cidade é um lugar multicamadas e agonístico que pode existir sem soberania ou identidade. A força dos processos locais pode construir comuns [commons] sem perder de vista os outros, e outros lugares.

O DNA histórico e social da cidade

O que significa pensar a cidade como um processo dirigido pela diferença, e acreditar que ela possa ser retomada coletivamente? A cidade tem muito que ver com a história da democracia, bastando voltar à polis da Grécia Antiga, mas também com a história do colonialismo, que possibilitou estados e grandes centros, e ainda com o desenvolvimento do capitalismo, no crescimento da cidade moderna. A cidade há muito serviu como tecnologia para tornar a diferença algo produtivo, da maneira mais crua à mais sofisticada: então, como pensar a cidade — e a democracia — além das genealogias capitalistas, coloniais e patriarcais?

Três processos históricos e sociais são chave neste ponto: migração e remoção das terras, a história da escravidão e colonialismo, e a subjugação da mulher. Além de quaisquer caixinhas, este é um ponto de partida inevitável para imaginar uma cidade radicalmente diferente — um experimento que tente se aproximar da raiz do problema da democracia e da cidade.

O primeiro desses pontos se refere às reivindicações hegemônicas da cidade em relação ao rural: aqui, a contradição entre cidade e campo não é  menos forte que aquela entre trabalho e capital. Entramos na perspectiva da ecologia, mas também na da classe: com a industrialização, as cidades se tornaram espaços de relação e vida, cuja capacidade de fabricar igualdade e sustentabilidade tem diminuído cada vez mais. A necessidade de reimaginar a ecologia da cidade vai muito além dos modelos de “cidade-inteligente” e de jardins urbanos. Em Barcelona, existe uma multidão de cooperativas e iniciativas ligadas a projetos sustentáveis, agricultura, reciclagem, ocupações urbanas, redes de comércio alternativo — essas iniciativas podem ser um ponto de partida para construir este nível.

Em segundo lugar, nós precisamos enfrentar a questão da cidadania, a fim de recomeçar a cidade, e tentando redefinir direitos sociais em relação à reprodução da sociedade e à cidade pós-industrial. Outros modelos de direitos e responsabilidades, partindo dos espaços vitais compartilhados e dos comuns [commons], são vitais neste ponto (tal qual o buen vivir latino-americano, que afirma a comunidade e a natureza enquanto sujeitos de direitos). Mesmo se questões presentes de direitos e cidadania sejam assunto para o estado, não é tarde o bastante para repensar o sujeito político desde as nossas teias de relações, interdependência e diferença de nossas cidades.

Isto nos traz ao terceiro ponto relacionado: captar a cidade como espaço de reprodução social e o papel do cuidado e dos comuns a partir desse espaço, repensando os sujeitos da política. De um lado, isto significa repensar o sujeito urbano a partir do gênero, pensando o acesso aos direitos para além dos modelos antropocêntricos e androcêntricos que sempre privilegiam o trabalho assalariado e individual, concebendo sujeitos humanos independentes uns em relação aos outros.

Na direção de lutas da interseccionalidade

Mesmo se a precariedade e o desemprego erodiram regularmente a normalidade suposta do trabalho assalariado estável, nós estamos ainda muito distantes de valorizar os trabalhos reprodutivos e os comuns que sustentam a cidade. A esse respeito, Cuidadania é um neologismo que os movimentos espanhóis feministas puseram em circulação a fim de ressituar a cidadania em termos de cuidado. A cidade é o campo de batalha par excellence para isso. Por outro lado, isto obviamente diz respeito à necessidade de romper com a visão da política como um clube de sujeitos privilegiados — não se trata apenas de um assunto de cotas de participação, mas de transformar a própria cultura política.

Abordar tais níveis de sobreposição requerem não apenas debate e boas políticas, como também um trabalho cuidadoso de mobilização e composição, de maneira a produzir o que, com Angela Davis, nós podemos chamar de interseccionalidade — não de identidades, mas de lutas. Os movimentos municipalistas se defrontam com o desafio tanto de respeitar a sua própria composição — isto é, quem está falando para quem, e isso poderia ser algo mais do que a rebelião das classes médias desencantadas? — bem como quais assuntos vão ser priorizados.

Aqui é preciso ser claro que a política não é um campo moral de jogo e que as estratégias de decisão nem sempre parecem puras, como alguém poderia preferir. Entretanto, prioridades não devem ser traídas no prazo mais longo: Barcelona em comum certamente se defrontará com situações similares àquelas que hoje permeiam a Syriza. E o seu sucesso será graças à composição transversal, a sua matriz ética e aos movimentos.

O que é empolgante sobre Barcelona em comum é que ele se propõe não apenas a pensar estrategicamente, mas também em termos de processos e relações. Porque as transformações que podem produzir mudanças radicais — mudanças que atuem na raiz dos problemas — precisam necessariamente ter um caráter relacional.

Como David Harvey diz:

A questão do tipo de cidade que queremos não pode ser separada do tipo de vínculos sociais, relação com a natureza, estilos de vida, tecnologias e valores estéticos que desejamos. O direito à cidade é muito mais do que a liberdade individual de ter acesso aos recursos urbanos: é o direito de mudar a nós próprios no processo de mudar a cidade. É, além disso, um direito comum e não individual, uma vez que essa transformação inevitavelmente depende do exercício do poder coletivo para remoldar os processos de urbanização.

É por isso que a metodologia certa para trabalhar na e sobre a cidade está baseada no processo democrático e na ética, começando da diferença e da heterogeneidade produtiva, capaz de fazer sem uma identidade unitária, moralismo e monoculturas do conhecimento. Barcelona em comum desabrocha coordenadas fundamentais para esse trabalho da diferença, enquanto ao mesmo tempo constrói conexões transversais. Barcelona em comum abriu, — irreversivelmente e a despeito de eventuais resultados eleitorais, — ainda outro rasgo do horizonte.

 

Manuela Zechner é pesquisadora, trabalhadora da cultura e tradutora.

Outras traduções da UniNômade sobre  Guanyem/Barcelona en comú:

15M das eleições“, entrevista com Javier Toret

Cimentar a revolução democrática“, artigo de Ada Colau

Ver também o Dossiê Podemos e Syriza, organizado pela UniNômade.

 

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