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Bósnia e o antinacionalismo das ruas

Por Goran Fejic, na openDemocracy, em 25/2, dica dos companheiros da Euronômade | Trad. UniNômade

O ciclo global de lutas também espocou na Bósnia e Herzegovina. Desde o começo de fevereiro deste ano, os cidadãos ocuparam as ruas e praças, formaram assembleias e começam a democraticamente fissurar os monólitos de conservadorismo com fundo étnico e religioso. É a melhor aposta para reverter um sistema político dominado pelos  senhores da guerra, com base no nacionalismo e nas identidades. Enquanto isso, a União Europeia mantém-se inerte, novamente sinalizando não estar do lado de um emergente processo constituinte.

Bosnia Protest

foto: AP, 7/2/14 – Tática black bloc em Tuzla

Depois das cenas de revolta, o descontentamento dos bósnios está se movendo para formas mais articuladas de ação política. As pessoas estão se reunindo nas ruas de Saraievo, Tuzla, Mostar e outras cidades: não apenas para a revolta, mas para se auto-organizarem em fóruns ou plenárias, para discutir e propor pautas político-sociais. Elas querem, por exemplo, a expulsão dos políticos corruptos, a substituição de governos locais baseados em partidos por autoridades com expertise técnica e profissional, a revogação de privatizações pouco transparentes e em ritmo relâmpago da propriedade pública.

As reuniões são pacíficas e “na melhor tradição da democracia direta”, como observado por Srecjo Horvat, em artigo ao New York Times, de 18 de fevereiro. Com clareza, nenhuma das reuniões está organizada com base em filiações étnicas ou religiosas. E de maneira mais importante, nenhuma das reclamações vem expressa e nenhuma proposta é feita em nome de (ou contra) qualquer das “nacionalidades constituintes” da Bósnia. Nas ruas e praças, as pessoas não estão invocando as suas identidades étnicas; elas estão simplesmente dizendo que estão cansadas e enjoadas, e exigem mudança. Como cidadãos. Ponto!

É uma novidade de importância capital para a Bósnia, para todo o espaço iugoslavo, e para a União Europeia (UE) se esta quiser reverter sua credibilidade descendente na região (o que de nenhuma maneira está claro por suas ações, mas sim por sua inação).

Catherine Ashton, a chefe das relações exteriores da UE, convocou os políticos bósnios a “mostrar liderança” e adotar medidas para “resolver não somente as preocupações econômicas, mas também a situação política.” É uma mensagem bem-intencionada, mas bem pouco realista. Considerando seu fino conhecimento da região, , sem dúvida a Sra. Ashton sabe muito bem disso.

A “liderança” hoje da Bósnia e Herzegovina provavelmente não vai cortar o próprio galho onde está sentada, ao disparar reformas que trariam ao estado bósnio a aparência de viabilidade que ele precisa. A “liderança” se alimenta de sua autoproclamada habilidade pétrea, bem como na disposição de bósnios em agir como muçulmanos, servos ou croatas, com base em suas identidades étnicas. Uma “liderança” que cresceu como uma hidra, cujas múltiplas cabeças em vilas, cidades, cantões e nas ditas “entidades” sobrevive apenas cuspindo o veneno do nacionalismo étnico, bloqueando qualquer trabalho sério de reconciliação, e vetando o que quer que seja proposto pelo adversário (o que é sempre apresentado como “étnico”, o adversário estaria sempre tentando impor o “seu” interesse étnico contra o suposto “nosso”, a ser defendido).

Não veja esta crítica como de alguém sonhando acordado. Estou falando de um país onde casamentos, famílias e bairros mistos eram uma ocorrência muito comum — eu admito, antes dos anos 1990. Mas é também um país onde as novas gerações cresceram depois das guerras daquela década, e elas obviamente não compram mais o discurso etnonacionalista. Jovens bósnios urbanos estão, sem dúvida, simultaneamente entre os mais “iugonostálgicos” e mais pró-Europa, dentro do universo dos países da antiga Iugoslávia.

A hidra etnonacionalista provavelmente teria perecido há tempos, não tivesse a chance de ganhar força e, de certo modo, ganhar legitimidade — graças à constituição bósnia. Uma constituição complicada, na verdade única de seu tipo, num mundo hoje de constituições “participativas e inclusivas”. Ela foi martelada em 1995 sob a pesada pressão norte-americana, num encontro entre os senhores da guerra etnonacionalistas, realizado numa erma base aérea dos EUA, e então anexada aos acordos de paz de Dayton.

Slobodan Misosevic, um criminoso de guerra indiciado, e Franjo Tudjman, seu parceiro na tentativa de bipartir a Bósnia & Herzegovina (lamentavelmente não indiciado), estiveram entre os fiadores dos citados acordos. O nível de “propriedade nacional” da constituição da Bósnia & Herzegovina é ainda mais ilustrado pelo fato que a sua tradução na linguagem local (qualquer que seja ela — serva, croata ou bósnia) foi tornada disponível apenas quinze anos depois de entrar em vigor! A primeira tradução foi providenciada por — entre tantas pessoas! — Milorad Dodik, o aparentemente inexpurgável líder da “entidade” servo-bósnia (e empreendida, naturalmente, apenas dentro desse interesse, segundo a maneira como ele oficializa a dita “entidade”).

Embora ninguém possa seriamente negar a contribuição dos acordos de Dayton para o fim da devastadora guerra da Bosnia, em 1995, tem sido argumentado repetidamente, e com argumentos igualmente convincentes, que os acordos de Dayton — e a constituição anexada a ele — trouxe um sistema institucional e legal que é altamente divisionista, inefetivo, extremamente caro, intrinsecamente antidemocrático e ultimamente inviável.

Por quase duas décadas, a UE tem sido tolerante e desalentadoramente engajada em sustentar esse sistema, esperando que o tempo possa curar as feridas da guerra e acalmar o ódio etnonacionalista, enquanto o burro-e-a-cenoura da estratégia de “expansão” da UE gradualmente deslegitima os esquemas incongruentes de governança de Dayton e promove reformas. Essa expectativa não se materializou. A passagem do tempo apenas permitiu aos (pequenos e grandes) governantes parasitas, derivados de Dayton, desenvolverem raízes e forjarem alianças na região além das fronteiras da Bósnia; enquanto a UE, no meio de sua própria crise, e sobrecarregada pelo “desgaste da expansão”, perdeu a vara e continua segurando a cenoura bem alto, fora do alcance da Bósnia de hoje.

No ínterim, os tempos difíceis sofridos pelas pessoas em todas as “entidades étnicas” bósnias — acima de tudo, devido ao desemprego e à corrupção — continuaram a aprofundar-se e se tornarem insuportáveis. A panela de pressão agora explodiu. Aconteceu, obviamente, pelo menos no momento oportuno desde a perspectiva dos sempre-sorridentes membros do Conselho Europeu (aqueles que sempre parecem tão contentes e autoconfiantes em suas recorrentes fotos coletivas sob o pano de fundo de um azul estrelado).

Afinal, a UE não precisa mesmo de uma Bósnia agora. Não com a situação da Ucrânia, ruindo com a sua imagem, e no topo do aparentemente imparável euroceticismo em seus próprios estados-membros.

Nos Balcãs, a UE apenas emergiu de um terrível e laborioso esforço de urdir algum tipo de acordo entre Sérvia e Kosovo — um acordo cuja principal virtude é “normalização de uma relação sem reconhecimento oficial” (de Kosovo pela Sérvia). Em consequência, mantendo o governo populista da Sérvia feliz, enquanto permite a abertura oficial de conversas. As ainda frágeis fundações do acordo (os detalhes permanecem vagos, particularmente na área judicial), e a abordagem das eleições parlamentares (agendada para 16 de março), garantem que a UE presentemente não fará nada para irritar a Sérvia. Afinal, a Sérvia é o mais determinado apoiador dos acordos de Dayton e um infalível patrono e patrocinador da “Republika Srpska” [NT.: ou “República Bósnio Sérvia”, anteriormente referida como “entidade” pelo autor]

Daí o apelo débil aos políticos bósnios atuais para que “mostrem liderança”. O tom enfastiado do apelo não pode ser dissimulado e a mensagem dificilmente vai convencer quem quer que seja. Eu aposto que Catherine Ashton ficaria bastante surpresa se os políticos bósnios conseguirem respondê-lo fazendo algum sentido.

Mas o assunto real não é a falta de liderança dos políticos bósnios. Qualquer um que os conheça pediria a eles, em vez disso, que refreassem exercer qualquer tipo de liderança. O assunto real — e o mais desalentador — é a total falta de liderança da própria Europa. Quem hoje na Europa pode levantar-se em defesa dos cidadãos bósnios nas ruas, deste movimento verdadeiramente antinacionalista de cidadãos, destes indivíduos raros que ainda acreditam em princípios que a Europa, ela mesma, já esqueceu faz tempo?

Abrir as portas

É aqui que não há outra opção senão sonhar:

1) Sonhar sobre a UE apoiando os fóruns e plenárias das pessoas em Sarajevo, Tuzla, Mostar e outras cidades bósnias, ao mesmo tempo em que cancela o apoio aos burocratas etnonacionalistas e corruptos.

2) Sonhar com o crescimento dos movimentos, contando o apoio da UE, até um nível suficiente de organização e força, para unirem-se e se tornarem o novo poder constituinte na Bósnia & Herzegovina.

3) Sonhar com um novo processo/assembleia constituinte ser estabelecido com delegados de todo o país, não importando a origem étnica, filiação nacional ou “entidade” de residência.

Agora, converter esta aspiração em verdade seria de fato um longo processo e poderia provocar algumas novas tensões nos Balcãs. Como em qualquer transformação séria, alguma turbulência e desordem teriam de ser enfrentadas, antes de uma ordem melhor e mais democrática ser instaurada.

Mas, a curto prazo, será a estabilidade o único ideal europeu remanescente?

Vale a pena relembrar alguns pontos básicos da construção contemporânea da democracia, que têm sido consistentemente advogados pela própria “comunidade internacional”, ao apoiar “países em transição”:

a) Boas constituições levam tempo para crescer (a da África do Sul levou seis anos).

b) Elas não podem ser pré-cozidas e impostas de fora.

c) O processo por meio do qual são instaladas é tão importante quanto o conteúdo.

d) Participação inclusiva é uma necessidade, tanto quanto a igualdade de linguagem (em termos de gênero, etnicidade e religião, por exemplo).

Sim, uma constituição “pós-conflito” é um grande desafio por razões óbvias: você faz a paz com os senhores da guerra, enquanto constrói a constituição com os cidadãos. Escalonar as ações com os primeiros e introduzir os últimos no processo é difícil e consome muito tempo.

Mas quase duas décadas se passaram desde os acordos de Dayton. Não chegou a hora?

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