por Cora Novirus
Para comemorar seu vigésimo aniversário da existência, a revista Multitudes[1] confiou a elaboração de seu número 80 para Cora Novirus, uma intelectual coletiva que apareceu em Bolonha em 1977, uma segunda vez em Seattle em 1999, em Porto Alegre em 2001, em Tunis em 2011, e incontáveis outros lugares no mundo desde então e como antes.
Cora escolheu escrever um « Abecedário de bifurcações » para sondar as múltiplos maneiras pelas quais, neste ano de aniversário de 2020, uma entidade minúscula e invisível chamada Sars – Cov2 ou Covid-19, lembrou a necessidade de resistir às mudanças climáticas, ao colapso da biodiversidade e às acelerações econômico, sob pena de morte. De passagem por uma Amazônia em apuros e um Pantanal em chamas, Cora Novirus trocou uma prosa com Alexandre Mendes e Barbara Szaniecki.
No dia 9 de abril, um jovem Yanomami morreu de Covid 19 no estado de Roraima. Essa morte reacendeu uma dor profundamente enraizada na memória e nos corpos dos Yanomami: as epidemias ligadas aos projetos de colonização e, mais tarde, de modernização do Brasil. Essa dor é relatada em A Queda do Céu. Nessa obra, o xamã Yanomami Davi Kopenawa conta ao antropólogo Bruce Albert sua infância, sua iniciação no xamanismo e sua vivência de uma série de epidemias. Com efeito, a presença de brancos na floresta já era notada desde a década de 1950. Kopenawa os viu pela primeira vez quando criança em Marakana. Tratava-se de agentes das comissões responsáveis pela demarcação das fronteiras do Brasil em território Yanomami. Após esse contato, muitos de seus familiares foram acometidos de tosse e febre, entre outros sintomas de doenças exantemáticas, e morreram logo depois.
Mais tarde, já na década de 1960, Kopenawa observou no seu território o estabelecimento de missionários. Insistentemente, ao rejeitar os espíritos da floresta, gritavam as palavras de Deus. Um deles, ao voltar de Manaus com sua filha doente, trouxe sarampo para a floresta. Um avião com médico e remédios chegou a ser chamado, mas a tragédia da contaminação não pôde ser evitada. Os Yanomami choraram mais uma vez a perda dos mais velhos e dos espíritos que os curavam e, a partir desse episódio, tornou-se evidente mesmo para aqueles que haviam se tornado “crentes” que as palavras de Deus eram mentiras. Na década de 1970, após contrair tuberculose e ser curado em um hospital de Roraima, Kopenawa voltou a Manaus para trabalhar como agente de saúde e, após um período, retornou ao convívio familiar. Algum tempo depois, chegaram oficiais da luta contra a malária e a oncorcecose, além de funcionários da Fundação Nacional do Índio. Ofereceram a Kopenawa um emprego como intérprete no posto à beira da estrada Perimetral Norte que atravessa o Amazonas de leste a oeste. Lá ele testemunhou o rasgo da terra, a destruição da floresta por enormes tratores e, novamente, uma epidemia de sarampo.
Na contemporaneidade, o caso particular dos Yanomami faz ainda mais sentido dentro das atuais dinâmicas e desafios da globalização: o cruzamento das fronteiras entre nações, povos e até entre espécies requer a capacidade de cruzar as fronteiras entre disciplinas e, sobretudo, entre modos de conhecimento. Todas as epidemias vivenciadas por Kopenawa foram precedidas de “sinais”: imagens, rumores de motores, cheiros e, principalmente, diferentes fumaças desde cigarros queimados até dinamite explodida. Essa longa história de sucessivas “fumaças epidêmicas” é a história da dor dos Yanomami diante dos “males dos brancos” trazidos por mercadorias e máquinas, mas também por “seres maléficos” tais como agentes do poder nacional ou religioso. Diante dessas doenças, os xamãs muitas vezes se sentiram impotentes e, como resultado, perderam o controle sobre a comunidade que, em parte, aderiu à fé dos missionários ou se interessou por outras formas de conhecimento. O próprio Kopenawa viu-se várias vezes tratado por médicos brancos e dessas experiências nasceu o desejo de aprender medicina pois, na visão terapêutica Yanomami, as curas xamânicas com Yakoana e plantas medicinais não são incompatíveis com as práticas médicas e seus remédios.
A sequência de epidemias entre os Yanomamis é certamente muito mais longa e é atualizada pela pandemia do coronavírus, decorrente de uma zoonose específica. Trabalhando com crises de saúde desde 2005, no artigo “Do Purgatório à Sentinela” de 2014, o antropólogo Frédéric Keck relacionou três desses eventos epidêmicos: a influenza H3N2 de 1968, a influenza aviária H5N1 de 1997 e a Síndrome Respiratória Aguda Grave SARS de 2003. A partir dos estudos feitos pelo microbiologista Kennedy Shortridge do Departamento de Microbiologia da Universidade de Hong Kong, Keck afirma que em 1997 (epidemia de H5N1) o mundo estava a uma distância de um ou dois eventos mutacionais de uma pandemia, enquanto em 2002 (epidemia de SARS) essa distância aumentou para três ou quatro. Ou seja, alertas precoces permitiram adquirir uma significativa segurança. A partir desse trabalho, o microbiologista Kennedy Shortridge projetou Hong Kong como uma “porta” onde os vírus poderiam ser rastreados ao se deslocar da China para o resto do mundo. E os próprios pesquisadores da Microbiologia passaram a funcionar como “sentinelas” ou mesmo como “caçadores de vírus”. Isso significa que, ao nível micro, eles podem observar as células que a partir do contato com os agentes infecciosos procuram produzir anticorpos enquanto, ao nível macro, eles se encarregam de emitir os sinais visíveis desta ameaça invisível.
Como caçar esse vírus terrível? Keck indica o poder pastoral concebido por Michel Foucault. Porém, concebido como um poder de vigilância do pastor sobre suas ovelhas, esse poder não leva em consideração as relações entre predador e presa necessárias para entender as dinâmicas que, no quadro de zoonoses, se estabelece entre humanos e não humanos, neste caso os vírus. Para apreendê-las, devemos introduzir a ideia de um poder cinegético, ou seja, um poder ligado à caça. Keck se baseia principalmente no trabalho de ornitólogos que observam como os pássaros se comunicam entre si e contra seus predadores. Este poder de caça está, portanto, essencialmente ligado a um poder de comunicação – transmissão e recepção de signos – particularmente importante no surgimento das zoonoses, elas próprias caracterizadas pela passagem de células entre organismos, de corpos em corpos e, quase simultaneamente, entre territórios políticos. No entanto, há que se considerar, segundo ele, que “os patógenos não são inimigos fora da fronteira, e sim ‘operadores particulares’ no sentido em que Lévi-Strauss entendia, ou seja, que vinculam diferentes níveis de comunicação entre entidades vivas”. O reservatório animal não é, portanto, um rebanho que exige vigilância segundo o modelo pastoral, mas uma fonte de distinções e signos que caçadores escrutinam e ordenam dentro do que Lévi-Strauss chamou de “pensamento selvagem”.
Retornemos a Kopenawa e Albert para refletir sobre esse momento em que o céu parece cair sobre nós. Na ecosofia característica de alguns povos indígenas da região amazônica, encontramos relações entre humanos e não humanos que abrem possíveis caminhos para caçar o vírus. Kopenawa fala de agenciamentos entre xamãs e caçadores para se abastecer de caça. Os xamãs são responsáveis por atrair os animais por meio de canções e imagens dos espíritos da floresta, bem como pela presença de outros animais. A primeira coisa a fazer é deixar o animal feliz e, só então, flechá-lo de uma só vez. A caça aqui é uma verdadeira ação de comunicação entre diferentes entidades, com técnicas sofisticadas. Tudo o que se segue é feito com o máximo cuidado, desde cozinhar até comer e, por fim, processar as sobras para não atrair a vingança dos animais. Porque os animais também são seres humanos. No caso da Covid-19, o morcego e o pangolim são vendidos e consumidos no famoso mercado de Wuhan, na China, reconhecido como o foco inicial da pandemia global. Eles são o hospedeiro principal e o hospedeiro intermediário na cadeia de infecção pelo novo coronavírus que recentemente atingiu os homens mas que é, ela mesma, plenamente de fabricação humana.
A antropóloga Els Lagrou lembra que os Huni Kuin são chamados de “povo morcego” por seus inimigos Kaxinawa porque caminham à noite. Mas, atenção, eles nunca comem esses animais, pois atribuem a eles um poder real de transformar a forma, o yuxin. Não se trata aqui de recorrer a metáforas e sim de realizar que a caça ao vírus exige um pensamento selvagem que não se opõe ao pensamento científico, podendo haver articulações entre ambos. Os dois pensamentos diferem em suas operações e aplicações, sendo o primeiro mais relacionado ao sensível, o segundo à abstração. Ousemos pois, com a ciência, pensar de modo selvagem. A superação das fronteiras entre as espécies no mercado de Wuhan exige a superação de muitas outras fronteiras do pensamento, em particular daquelas estabelecidas entre natureza e cultura, entre florestas e cidades. Contudo, para cruzar essas fronteiras com cuidado, devemos prestar atenção aos sinais, à vida em todas as suas significações.
As pesquisas do antropólogo Frédéric Keck indicam que uma mudança paradigmática ao nível da biossegurança global está em curso: para além da “prevenção”, é a “antecipação” por sentinelas e “preparação” por muitos dispositivos (novos ou tradicionais) que estão emergindo. Urgentíssima, essa preparação consiste na simulação de cenários, no armazenamento de medicamentos e equipamentos de proteção individual, bem como no desenvolvimento de novas vacinas, testes e aplicativos. Do ponto de vista comportamental e cultural, consiste em contínua avaliação dos riscos e atenção consigo e com os outros. Vacinas, testes e aplicativos: o que esta preparação requer é uma capacidade aumentada e aguda de apreensão de sinais – DNA, mRNA, PCR e BITS entre outros – na sua passagem entre os níveis biológico e tecnológico, na sua própria mutação ontológica, por corpos-mentes alertas. Aumentada e aguda significa que, se há multiplicação de sinais e perigos, deve haver intensificação da atenção e da intenção. Para as sentinelas que a rastreavam, essa pandemia era de fato previsível … 1997, 2003, 2020. Todos os sinais já eram perceptíveis, em muitos artigos científicos e, mais recentemente, no aumento anormal do número de pneumonias.
Algumas preocupações vem sendo manifestadas ultimamente: e se essa caça ao vírus se tornar uma caça ao homem? Os aplicativos são efetivamente baseados em tecnologias de geolocalização do usuário e tecnologias de rastreamento dos contatos entre usuários. O perigo reside então na possibilidade de que a luta contra a Covid-19 acelere a vigilância digital. Este é um risco ao qual devemos permanecer sensíveis. Contudo, ser vigiado não impede vigiar por sua vez: os recentes levantes em Hong Kong contra Pequim indicam que, apesar dos celulares que deduram, a multidão metropolitana segue caçando abusos de poder. Enquanto isso, do outro lado do mundo, na Amazônia, a Covid-19 segue atingindo populações indígenas extremamente vulneráveis ao coronavírus em tempos de recrudescimento do desmatamento e do garimpo. Todo um ecossistema é abalado e clama fortemente por uma ecosofia para recuperá-lo. Em tempos e termos de saúde mundial, responsabilidades, reorganizações e reparos deverão ser considerados. Nossa caça ao vírus e nossa atenção ao vivo se tornarão mais amplas e agudas somente quando os xamãs e os caçadores da Amazônia forem chamados a se juntar às sentinelas e virologistas de Hong Kong e assim, juntos, preparar o mundo inteiro.
[1]https://www.multitudes.net/category/l-edition-papier-en-ligne/80-multitudes-80-automne-2020/