Por Rodrigo Bertamé
Neste dia 31 de agosto saiu uma matéria no portal Outras Palavras intitulada IBGE retrata esvaziamento dos sindicatos no Brasil . Ao apresentar os dados do PNAD a matéria demonstra a queda massiva, em especial ocorrida a partir de 2017, quando houve a grande mudança nas legislações trabalhistas.
Os dados apresentados podem, e devem ser vistos e lidos com a compreensão do tamanho do desmonte dos sistemas de proteção do trabalhador. Porém para um olhar mais rigoroso e aprofundado, precisamos acrescentar outros elementos à questão. Para a melhor compreensão do que temos a nossa frente tentemos desmontar um vício: o olhar institucional perante o sindicalismo. Talvez esse seja o erro da matéria em questão, ela foca no campo institucional e não no sentido real das lutas que fazem o chão deste campo.
O sindicalismo que conhecemos hoje tem bases predominantes, e teve seus maiores avanços entre o intermédio final da ditadura militar e a reabertura democrática. Foi elemento importante na construção do Partido dos Trabalhadores, e de diversas outras lutas. Talvez seu apogeu de representação tenha sido a eleição de Lula, um sindicalista a presidência da república.
Este tipo de sindicalismo por sua vez se referenciava a um determinado escopo de lutas trabalhistas, a um determinado quadro de modelos de trabalho que foram vigentes durante aquelas décadas e que paulatinamente foram sendo desmontados mediante as inúmeras mudanças conjunturais enfrentadas mundo a fora. A automação fabril e a entrada em peso das telecomunicações, junto a grande urbanização do mundo trouxeram novos elementos para as frentes hegemônicas do campo do trabalho. as mudanças na organização global da indústria, a automação (que chegou na chamada indústria 4.0) entre outros fatores desmontou imensa parte da necessidade de mão de obra neste setor na maioria dos países. Não falo com isso que há um fim de postos de trabalho mas uma transformação do mundo do trabalho, que modifica a geografia deste mundo.
Em tempos recentes, o campo do trabalho cruzou uma nova fronteira de ruptura. O que chamamos hoje de uberização, é resultado de um processo histórico contínuo de avanços tecnológicos que foram inseridos em nossa vida cotidiana. Um marco paradigmático das mudanças que vivemos se dá no lançamento do famoso algoritmo da Amazon, que modifica nossas buscas fazendo uma simples leitura de percepção da probabilidade de gostos e desejos. Se antes você comprava um livro de ciências, e os sistemas indicavam outro livro de ciências, agora, com base em dados fornecidos, a probabilidade de você comprar um livro de ciências x e se interessar por um de culinária y é muito maior. Estamos falando aqui de um sistema de aprendizado de máquina que foi inserido na massa do povo por volta de 2004, isso é temos pelo menos 16 anos de aprendizado sobre cada clique nosso.
A chave do que discutimos e vivemos atualmente é a capacidade de se instituir sistemas de confiabilidade que geram elos assertivos (em escala cotidiana) entre desejos e demandas e não necessariamente entre oferta e demanda (claro que sem excluir a relação oferta e demanda da pauta). Este debate não é novo, as leituras marxistas sempre inseriram a questão, de Marx a Foucault, Benjamin, Bourdieu e muitos outros cada qual com suas leituras, tendem muito a acrescentar a este debate.
O boom do modelo de negócios que gira em torno de algoritmos e aprendizado de máquinas amplificou as novas relações, antes difíceis de serem lidas. Se por um lado um sistema fabril fordista você tinha um nome forte, um Patrão (Padrinho, Patrono) o pós-fordismo avança o modelo de exploração substituindo o Personalismo do Patrão por um corpo jurídico e pela financeirização do dono (as sociedades anonimas). Hoje, estas ainda residem porém sua face está cada dia mais invisível. A hiper-exploração dos entregadores de aplicativos é um exemplo deste modelo. Um motorista (esteja ele desempregado ou empregado) pode baixar um aplicativo de oferta de veículo e operar semelhante a um taxi, um entregador não precisa mais estar vinculado a uma empresa local. Sua força de trabalho é explorada por uma rede de aplicativos de entrega (das mais diversas), que atuam sem rostos e sem personagens, apenas hubs e algoritmos e tem confiabilidade nas massas para tal.
Tendemos a reduzir a uberização a uma precarização do trabalho formal, o que a meu ver é um equívoco. Talvez pudéssemos falar isso sobre a pejotização que atua como uma precarização do celetista. A uberização é um modelo diferente de exploração do trabalho e que precisa ser aprofundado como tal. O conceito de precarizado portanto é importante a medida em que nos auxilia na compreensão de como cidadão opera diante de um quadro de escassez, mas não resolve por si só os instrumentos e modelos sob os quais o trabalho acontece e é explorado em nossos tempos.
O novo rosto do trabalhador urbano está dado em um tipo de exploração onde o trabalho se torna um elemento difuso e complexo. Nem todo entregador ou motorista de aplicativos estará na mesma condição: uns o fazem para complementação de renda, outros fazem pra garantir a vida, o sustento, há quem faça sazonalmente simplesmente pra pagar o carro ou outro bem. São muitas as faces do explorado. Ao mesmo tempo, se torna mais complexa e sutil a relação do exército de reserva. Se em outrora esta base estava na longa fila de uma vaga de CLT, hoje se encontra com o aplicativo ligado a espera do bip da chamada, ou com o celular ligado a espera do telefonema para o “job” ou o “freela”.
Se antes falávamos com certa tranquilidade em carreira, salários e planos de carreira, na década de noventa isso foi substituído por flexibilização e empregabilidade e hoje em dia nem mais palavras há que defina com certa clareza as múltiplas atividades que podem compor o dia de trabalho de um só cidadão. Também se antes os homens operavam as máquinas, hoje as máquinas (via aprendizado automático) operam os homens. Isso não significa que os homens não tenham como parar esta máquinas, a greve dos aplicativos mostrou que é possível resistir, a medida em que a luta se viralize por dentro das mesmas máquinas, uma greve P2P onde tanto o entregador parou quanto o consumidor se mobilizou no combate a exploração dos aplicativos A ou B.
Vale lembrar que com a pandemia todas estas lutas ganham outros contornos e tons que ainda não temos como prever com certeza, mas já podemos traçar algumas linhas a partir da hiper recessão e da percepção por parte do sistema de como a renda básica universal pode se tornar um elemento de equilíbrio para o mesmo.
Este é o eixo do debate. Retomando: se entendemos que um sindicato é uma associação de trabalhadores que tem como premissa defender seus interesses e direitos e defender sua cidadania, entenderemos que são os modelos de exploração do trabalhador que definirão os modelos de ação ou sentido de um sindicato. E neste sentido estamos no grande laço de hoje.
Um dos grandes problemas do sindicalismo vem deste anacronismo temporal. As lutas sindicais que operam na busca de um passado que já não retorna apontando-o como o futuro, não encontra liga social suficiente no presente para se manter. O grande erro ao seguir esta linha é que tentamos enquadrar o trabalho nas lutas sindicais cristalizadas e não as lutas sindicais ao novo mundo do trabalho. O que é muito passível quando perdemos o sentido do que significa um sindicato, nos aprisionando em seu caráter institucional, como a própria matéria do outras palavras o faz, sua análise é puramente institucional: perda de receita de uma instituição mediante a mudança conjuntural, funcionaria para clubes de bairro, associações da sociedade civil ou escolas de dança de maxixe.
Este reforço é o que precisa ser claro: as lutas sindicais não nascem antes do trabalho, mas em consequência dele e se reorganizam conforme o campo de exploração do trabalho se reorganiza.
Precisamos de um Sindicalismo novo, que seja capaz de contemplar as novas formas de exploração, divisão e organização do trabalho na sociedade. Talvez ele nem venha a nascer de dentro do modelo de sindicalismo vigente, talvez ele nasça de outras relações, mas isso só o tempo dirá. A uberização do sindicalismo não significa seu fim, mas sua necessidade de transformação.
Podemos falar em sindicalismos selvagens, podemos falar lutas sindicais, intersindicais, cybersindicais, biosindicais e muitos outros neologismos para nos fazer pensar a respeito da amplitude do novo campo das lutas que chegam até nós no campo do trabalho. E em nenhum deles a questão classista se exclui, provavelmente se torna mais visceral, mais a flor da pele.